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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A verdade não tem dono: a ascensão do Judiciário e a indeterminação do Direito no mundo contemporâneo

Republicado de JOTA*
Notícias jurídicas



 Publicado 22 de Setembro, 2014

Luís Roberto Barroso**

Nota Prévia

O texto que se segue constitui o fragmento inicial de um trabalho maior, dedicado ao estudo do papel do Supremo Tribunal Federal na consolidação das instituições democráticas e na promoção do avanço social no Brasil. 
Trata-se de uma reflexão acerca das relações entre as cortes supremas e os outros Poderes e, particularmente, de sua contribuição para o governo da maioria. Pretendo concluí-lo em breve.
Os capítulos aqui publicados cuidam de dois temas distintos e relevantes, que fazem parte da compreensão das mudanças institucionais e dogmáticas que redesenharam a paisagem institucional nos últimos tempos: 
(i) a evolução da teoria constitucional no Brasil e a ascensão do Judicário; 
e (ii) o fenômeno da indeterminação do Direito e a discricionariedade judicial. 
Ambos assentam as bases teóricas e empíricas do capítulo que falta, no qual procuro organizar algumas ideias acerca de um processo histórico do qual o Brasil se tornou um exemplo paradigmático:
 o desempenho de uma função majoritária e representativa pelas cortes supremas, motivado por um conjunto singular e heterogêno de razões.
Publico esse texto em homenagem aos editores do JOTA, boa parte dos quais conheço de longa data, desde quando atuava ainda como advogado perante o Supremo Tribunal Federal.
 Quase todos eram setoristas que cobriam o dia a dia do Tribunal com talento e integridade, desempenhando o árduo papel de converter o juridiquês em uma linguagem acessível às pessoas em geral. 
Como essa tem sido a minha ambição na vida – democratizar o debate público de temas jurídicos –, mantenho com eles uma afinidade que vem de longe. Daí a antecipação desse texto ainda inédito e inconcluso.

Introdução

A história é um carro alegre, Cheio de um povo contente Que atropela indiferente Todo aquele que a negue.Chico Buarque
Dois professores debatiam acerca do papel do Poder Judiciário e das cortes supremas em uma democracia, em uma das mais renomadas universidades do mundo. Ambos eram progressistas e tinham compromissos com o avanço social.
 O primeiro achava que só o Legislativo poderia consagrar direitos e conquistas. 
O segundo achava que o Legislativo deveria ter preferência em atuar. Mas se não agisse, a atribuição se transferia para o Judiciário. Eis uma síntese do diálogo entre ambos:
  • Professor 1:
  •  “A longo prazo as pessoas, por meio do Poder Legislativo, farão as escolhas certas, assegurando os direitos fundamentais de todos, aí incluídos o direito de uma mulher interromper a gestação que não deseja ou de casais homossexuais poderem expressar livremente o seu amor. É só uma questão de esperar a hora certa”.
  • Professor 2:
  •  “E, até lá, o que se deve dizer a dois parceiros do mesmo sexo que desejam viver o seu afeto e seu projeto de vida em comum agora? Ou à mulher que deseja interromper uma gestação inviável que lhe causa grande sofrimento? Ou a um pai negro que deseja que seu filho tenha acesso a uma educação que ele nunca pôde ter? Desculpe, a história está um pouco atrasada; volte daqui a uma ou duas gerações?”.
O texto que se segue lida, precisamente, com essa dualidade de perspectivas. Nele se explora o tema do papel representativo das cortes supremas, sua função iluminista e as situações em que elas podem, legitimamente, empurrar a história.
 Para construir o argumento, são analisados os processos históricos que levaram à ascensão do Poder Judiciário no mundo e no Brasil, o fenômeno da indeterminação do direito e da discricionariedade judicial, bem como a extrapolação da função puramente contramajoritária das cortes constitucionais. 
A conclusão é bastante simples e facilmente demonstrável, apesar de contrariar em alguma medida o conhecimento convencional: em alguns cenários, em razão das múltiplas circunstâncias que paralisam o processo político majoritário, cabe ao Supremo Tribunal Federal assegurar o governo da maioria e a igual dignidade de todos os cidadãos.
A premissa subjacente a esse raciocínio tampouco é difícil de se enunciar: a política majoritária, conduzida por representantes eleitos, é um componente vital para a democracia. 
Mas a democracia é muito mais do que a mera expressão numérica de uma maior quantidade de votos.
 Para além desse aspecto puramente formal, ela possui uma dimensão substantiva, que abrange a preservação de valores e direitos fundamentais. 
A essas duas dimensões – formal e substantiva – soma-se, ainda, uma dimensão deliberativa, feita de debate público, argumentos e persuasão. A democracia contemporânea, portanto, exige votos, direitos e razões. Esse é o tema do presente ensaio.



A evolução da teoria constitucional no Brasil e a ascensão do Poder Judiciário

Capítulo I

O Direito Constitucional na ditadura: entre a teoria crítica e o constitucionalismo chapa branca

O regime militar se estendeu de 1º de abril de 1964, com o início do golpe que destituiria o Presidente João Goulart do poder, até 15 de março de 1985, quando o General João Baptista Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, recusando-se a passar a faixa presidencial a seu sucessor. 
Foram pouco mais de vinte anos de regime de exceção, com fases de maior ou menor repressão política, que incluíram censura, prisões ilegais, tortura e mortes. 
Vigoraram no período as Constituições de 1946 e de 1967, assim como a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, considerada uma nova Constituição do ponto de vista material. 
Simultaneamente à ordem constitucional, já por si autoritária, foram editados diversos atos institucionais, que criavam a legalidade paralela dos governos militares, cujo símbolo maior foi o Ato Institucional nº 5, de 15.12.1968.
 Com base nele, era facultado ao Presidente, ao lado de outras arbitrariedades, decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos e aposentar compulsoriamente servidores públicos.
Ao longo desse período, a teoria e o direito constitucional oscilaram entre dois extremos, ambos destituídos de normatividade. 
De um lado, o pensamento constitucional tradicional, capturado pela ditadura, acomodava-se a uma perspectiva historicista, puramente descritiva das instituições vigentes, incapaz de reagir ao poder autoritário e ao silêncio forçado das ruas. 
De outro lado, parte da academia e da juventude haviam migrado para a teoria crítica do direito, um misto de ciência política e sociologismo jurídico, de forte influência marxista. 
A teoria crítica enfatizava o caráter ideológico da ordem jurídica, vista como uma superestrutura voltada para a dominação de classe, e denunciava a natureza violenta e ilegítima do poder militar no Brasil.
 O discurso crítico, como intuitivo, fundava-se em um propósito de desconstrução do sistema vigente, e não considerava o direito um espaço capaz de promover o avanço social.
 Disso resultou que o mundo jurídico tornou-se um feudo do pensamento conservador ou, no mínimo, tradicional. 
Porém, a visão crítica foi decisiva para o surgimento de uma geração menos dogmática, mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos compromissos com o status quo
A redemocratização e a reconstitucionalização do país, no final da década de 80, impulsionaram uma volta ao direito.

A construção de um Direito Constitucional democrático: a busca pela efetividade da constituição e de suas normas

Na ante-véspera da convocação da constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de direito no país: a falta de seriedade em relação à lei fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever-ser previsto na norma. 
Dois exemplos emblemáticos: a Carta de 1824 estabelecia que “a lei será igual para todos”, dispositivo que conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata.
 Outro: a Carta de 1969, outorgada pelo Ministro da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liberdades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco elenco de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam “colônias de férias e clínicas de repouso”. 
Além das complexidades e sutilezas inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica, havia no país uma patologia persistente, representada pela insinceridade constitucional.
 A Constituição, nesse contexto, tornava-se uma mistificação, um instrumento de dominação ideológicarepleta de promessas que não seriam honradas. Nela se buscava, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce.
A disfunção mais grave do constitucionalismo brasileiro, naquele final de regime militar, encontrava-se na não aquiescência ao sentido mais profundo e conseqüente da lei maior por parte dos estamentos perenemente dominantes, que sempre construíram uma realidade própria de poder, refratária a uma real democratização da sociedade e do Estado.
 Com a promulgação da Constituição de 1988, teve início a luta teórica e judicial pela conquista de efetividade pelas normas constitucionais. 
Os primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 envolveram o esforço da teoria constitucional para que o Judiciário assumisse o seu papel e desse concretização efetiva aos princípios, regras e direitos inscritos na Constituição. 
Pode parecer óbvio hoje, mas o Judiciário, mesmo o Supremo Tribunal Federal, relutava em aceitar esse papelNo início dos anos 2000, essa disfunção foi sendo progressivamente superada e o STF foi se tornando, verdadeiramente, um intérprete da Constituição. 
A partir daí, houve demanda por maior sofisticação teórica na interpretação constitucional, superadora da visão tradicional de que se tratava apenas de mais um caso de interpretação jurídica, a ser feita com base nos elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Foi o início da superação do positivismo normativista e de sua crença de que a decisão judicial é um ato de escolha política.

Neoconstitucionalismo, constitucionalização do Direito e a ascensão do Judiciário

“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”   Albert Enstein
Ao final da Segunda Guerra Mundial, países da Europa continental passaram por um importante redesenho institucional, com repercussões de curto, médio e longo prazo sobre o mundo romano-germânico em geral. 
O direito constitucional saiu do conflito inteiramente reconfigurado, tanto quanto ao seu objeto (novas constituições foram promulgadas), quanto no tocante ao seu papel (centralidade da Constituição em lugar da lei), como, ainda, com relação aos meios e modos de interpretar e aplicar as suas normas (surgimento da nova hermenêutica constitucional). 
Ao lado dessas transformações dogmáticas, ocorreu igualmente uma notável mudança institucional, representada pela criação de tribunais constitucionais e uma progressiva ascensão do Poder Judiciário. 

No lugar do Estado legislativo de direito, que se consolidara no século XIX, surge o Estado constitucional de direito, com todas as suas implicaçõesEsse novo modelo tem sido identificado como constitucionalismo do pós-guerra, novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo.
O neoconstitucionalismo identifica uma série de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, nas últimas décadas, que tem

 (i) como marco filosófico, o pós-positivismo, que será objeto de comentário adiante; 

(ii) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2a. Guerra Mundial, e, no caso brasileiro, a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988;

 e (iii) como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à Constituição (inclusive, e sobretudo, aos princípios constitucionais), a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação.

 O termo neoconstitucionalismo, portanto, tem um caráter descritivo de uma nova realidade. Mas conserva, também, uma dimensão normativa, isto é, há um endosso a essas transformações. 

Trata-se, assim, não apenas de uma forma de descrever o direito atual, mas também de desejá-lo. Um direito que deixa a sua zona de conforto tradicional, que é o da conservação de conquistas políticas relevantes, e passa a ter, também, uma função promocional, constituindo-se em instrumento de avanço social.

 Tão intenso foi o ímpeto das transformações, que tem sido necessário reavivar as virtudes da moderação e da mediania, em busca de equilíbrio entre valores tradicionais e novas concepções.
A constitucionalização do Direito, por sua vez, está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico.

Os valores, fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. 

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia –, mas também um modo de olhar e interpretar todos os ramos do Direito.

 A constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.
Por fim, simultaneamente a esses novos desenvolvimentos teóricos, verificou-se, também, uma vertiginosa ascensão do Poder Judiciário. 

O fenômeno é universal e também está conectado ao final da Segunda Grande Guerra. A partir daí, o mundo deu-se conta de que a existência de um Poder Judiciário independente e forte é um importante fator de preservação das instituições democráticas e dos diretos fundamentais. 

No Brasil, sob a vigência da Constituição de 1988, o Judiciário, paulatinamente, deixou de ser um departamento técnico especializado do governo para se tornar um verdadeiro poder político. Com a redemocratização, aumentou a demanda por justiça na sociedade e, consequentemente, juízes e tribunais foram crescentemente chamados a atuar, gerando uma judicialização ampla das relações sociais no país.

 Este fato é potencializado pela existência, entre nós, de uma Constituição abrangente, que cuida de uma vasta variedade de temas. No fluxo desses desenvolvimentos teóricos e alterações institucionais, e em parte como consequência deles, houve um importante incremento na subjetividade judicial. A este tema se dedica o próximo capítulo.

Indeterminação do Direito 

e discricionariedade judicial

Capítulo II

As Transformações do Direito Contemporâneo

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. Nesse arranjo institucional se condensam duas ideias que percorreram trajetórias diferentes: o constitucionalismo, herdeiro da tradição liberal que remonta ao final do século XVII, expressa a ideia de poder limitado pelo Direito e respeito aos direitos fundamentais.

democracia traduz a ideia de soberania popular, de governo da maioria, que somente se consolida, verdadeiramente, ao longo do século XX. 

Para arbitrar as tensões que muitas vezes existem entre ambos – entre direitos fundamentais e soberania popular –, a maior parte das democracias contemporâneas instituem tribunais constitucionais ou cortes supremas. 

Portanto, o pano de fundo no qual se desenvolve a presente narrativa inclui: (i) uma Constituição que garanta direitos fundamentais, (ii) um regime democrático e (iii) a existência de uma jurisdição constitucional.
O século XX foi cenário da superação de algumas concepções do pensamento jurídico clássico, que haviam se consolidado no final do século XIX. 

Essas transformações chegaram ao Brasil no quarto final do século, sobretudo após a redemocratização. Novos ventos passaram a soprar por aqui, tanto na academia quanto na jurisprudência dos tribunais, especialmente do Supremo Tribunal Federal. 

Identifico, a seguir, três dessas transformações, que afetaram o modo como se pensa e se pratica o Direito no mundo contemporâneo, em geral, e no Brasil das últimas décadas, em particular:
  1. Superação do formalismo jurídico. O pensamento jurídico clássico alimentava duas ficções: 
  2. a) a de que o Direito, a norma jurídica, era a expressão da razão, de uma justiça imanente; 
  3. e b) que o Direito se concretizava mediante uma operação lógica e dedutiva, em que o juiz fazia a subsunção dos fatos à norma, meramente pronunciando a consequência jurídica que nela já se continha. 
  4. Tais premissas metodológicas – na verdade, ideológicas – não resistiram ao tempo. Ao longo do século XX, consolidou-se a convicção de que:
  5.  a) o Direito é, frequentemente, não a expressão de uma justiça imanente, mas de interesses que se tornam dominantes em um dado momento e lugar; e
  6. b) em uma grande quantidade de situações, a solução para os problemas jurídicos não se encontrará pré-pronta no ordenamento jurídico. Ela terá de ser construída argumentativamente pelo intérprete.
  7. Advento de uma cultura jurídica pós-positivista.
    A doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão práticana teoria da justiça e na legitimação democrática. 
  8. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. 
  9. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e aética.
  10. Nesse ambiente em que a solução dos problemas jurídicos não se encontra integralmente na norma jurídica, surge uma cultura jurídica pós-positivista.
  11.  Se a solução não está toda na norma, é preciso procurá-la em outro lugar. E, assim, supera-se a separação profunda que o positivismo jurídico havia imposto entre o Direito e a Moral, entre o Direito e outros domínios do conhecimento. 
  12. Para construir a solução que não está pronta na norma, o Direito precisa se aproximar da filosofia moral – em busca da justiça e de outros valores –, da filosofia política – em busca de legitimidade democrática e da realização de fins públicos que promovam o bem comum e, de certa forma, também das ciências sociais aplicadas, como a economia e a psicologia.

  13. Ascensão do direito público e centralidade da Constituição. 
  14. Ao final do século XX, essa publicização do Direito resulta na centralidade da Constituição. Toda interpretação jurídica deve ser feita à luz da Constituição, dos seus valores e dos seus princípios. Toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação constitucional.
  15. Interpreta-se a Constituição diretamente quando uma pretensão se baseia no texto constitucional (uma imunidade tributária, a preservação do direito de privacidade); e interpreta-se a Constituição indiretamente quando se aplica o direito ordinário, porque antes de aplicá-lo é preciso verificar sua compatibilidade com a Constituição e, ademais, o sentido e o alcance das normas infraconstitucionais devem ser fixados à luz da Constituição.
  16. Por fim, o século XX assiste a ascensão do direito público. A teoria jurídica do século XIX havia sido construída predominantemente sobre as categorias do direito privado. 
  17. O Século, que começara com o Código Civil francês, o Código Napoleão, de 1804, termina com a promulgação do Código Civil alemão, de 1900. 
  18. Os protagonistas do Direito eram o contratante e o proprietário. Ao longo do século XX assiste-se a uma progressiva publicização do Direito, com a proliferação de normas de ordem pública. 
  19. Não apenas em matéria de direito família, como era tradicional, mas em áreas tipicamente privadas como o contrato – com a proteção do polo mais fraco das relações jurídicas, como o trabalhador, o locatário, o consumidor – e a propriedade, com a previsão da função social da propriedade.

Sociedades complexas, diversidade e pluralismo: os limites da lei no mundo contemporâneo

A sociedade contemporânea tem a marca da complexidade. Fenômenos positivos e negativos se entrelaçam, produzindo uma globalização a um tempo do bem e do mal. 

De um lado, há a rede mundial de computadores, o aumento do comércio internacional e o maior acesso aos meios de transporte intercontinentais, potencializando as relações entre pessoas, empresas e países. 

De outro, mazelas como o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo e a multiplicação de conflitos internos e regionais, consumindo vidas, sonhos e projetos de um mundo melhor.

 Uma era desencantada, em que a civilização do desperdício, do imediatismo e da superficialidade convive com outra, feita de bolsões de pobreza, fome e violência. 

Paradoxalmente, houve avanço da democracia e dos direitos humanos em muitas partes do globo, com redução da mortalidade infantil e aumento significativo da expectativa de vida. Um mundo fragmentado e heterogêneo, com dificuldade de compartilhar valores unificadores. 

Os próprios organismos internacionais multilaterais, surgidos após a Segunda Guerra Mundial, já não conseguem produzir consensos relevantes e impedir conflitos que proliferam pelas causas mais diversas, do expansionismo ao sectarismo religioso.
No plano doméstico, os países procuram administrar, da forma possível, a diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, marcada pela multiplicidade cultural, étnica e religiosa.

O respeito e a valorização das diferenças encontra-se no topo da agenda dos Estados democráticos e pluralistas. 

Buscam-se arranjos institucionais e regimes jurídicos que permitam a convivência harmoniosa entre diferentes, fomentando a tolerância e regras que permitam que cada um viva, de maneira não excludente, as suas próprias convicções. 

Ainda assim, não são poucas as questões suscetíveis de gerar conflitos entre visões de mundo antagônicas.

 No plano internacional, elas vão de mutilações sexuais à imposição de religiões oficiais e conversões forçadas. 

No plano doméstico, em numerosos países, as controvérsias incluem o casamento de pessoas do mesmo sexo, a interrupção da gestação e o ensino religioso em escolas públicas. 

Quase tudo transmitido ao vivo, em tempo real. A vida transformada em reality show.
Sem surpresa, as relações institucionais, sociais e interpessoais enredam-se nos desvãos dessa sociedade complexa e plural, sem certezas plenas, verdades seguras ou consensos apaziguadores.

 E, num mundo em que tudo se judicializa mais cedo ou mais tarde, tribunais e cortes constitucionais defrontam-se com situações para as quais não há respostas fáceis ou eticamente simples. 

Alguns exemplos:
  1. pode um casal surdo-mudo utilizar a engenharia genética para gerar um filho surdo-mudo e, assim, habitar o mesmo universo existencial que os pais?
  2. uma pessoa que se encontrava no primeiro lugar da fila, submeteu-se a um transplante de fígado. Quando surgiu um novo fígado, destinado ao paciente seguinte, o paciente que se submetera ao transplante anterior sofreu uma rejeição e reivindicava o novo fígado. Quem deveria recebê-lo?
  3. pode um adepto da religião Testemunha de Jeová recusar terminantemente uma transfusão de sangue, mesmo que indispensável para salvar-lhe a vida, por ser tal procedimento contrário à sua convicção religiosa?
  4. pode uma mulher pretender engravidar do marido que já morreu, mas deixou o seu sêmen em um banco de esperma?
  5. pode uma pessoa, nascida fisiologicamente homem, mas considerando-se uma transsexual feminina, celebrar um casamento entre pessoas do mesmo sexo com outra mulher?
Nenhuma dessas questões é teórica. 

Todas elas correspondem a casos concretos ocorridos no Brasil e no exterior, e levados aos tribunais. 

Nenhuma delas tinha uma resposta pré-pronta e segura que pudesse ser colhida na legislação. 

A razão é simples: nem o constituinte nem o legislador são capazes de prever todas as situações da vida, formulando respostas claras e objetivas

Além do que, na moderna interpretação jurídica, a norma já não corresponde apenas ao enunciado abstrato do texto, mas é produto da interação entre texto e realidade.

 Daí a crescente promulgação de constituições compromissórias, com princípios que tutelam interesses contrapostos, bem como o recurso a normas de textura aberta, cujo sentido concreto somente poderá ser estabelecido em interação com os fatos subjacentes. 

Vale dizer: por decisão do constituinte ou do legislador, muitas questões têm a sua decisão final transferida ao juízo valorativo do julgador. Como consequência inevitável, tornou-se menos definida a fronteira entre legislação e jurisdição, entre política e direito.
As hipóteses referidas acima constituem casos difíceis, isto é, casos para os quais não existem respostas pré-prontas à disposição do intérprete.

 A solução, portanto, terá de ser construída logica e argumentativamente pelo juiz, à luz dos elementos do caso concreto, dos parâmetros fixados na norma e de aspectos externos ao ordenamento jurídico.

 Daí se fazer referência a essa atuação, por vezes, como sendo criação judicial do direito. Em rigor, porém, o que o juiz faz, de verdade, é colher no sistema jurídico o fundamento normativo que servirá de fio condutor do seu argumento.

 Toda decisão judicial precisa ser reconduzida a uma norma jurídica. Trata-se de um trabalho de construção de sentido, e não de invenção de um Direito novo.

Casos difíceis podem resultar da vagueza da linguagem (dignidade humana, moralidade administrativa), de desacordos morais razoáveis (existência ou não de um direito à morte digna, sem prolongamentos artificiais) e colisões de normas constitucionais (livre iniciativa versus proteção do consumidor, liberdade de expressão versus direito de privacidade). 

Para lidar com uma sociedade complexa e plural, em cujo âmbito surgem casos difíceis, é que se criaram ou se refinaram diversas categorias jurídicas novas, como a normatividade dos princípios, a colisão de normas constitucionais, o uso da técnica da ponderação e a reabilitação da argumentação jurídica.
Não é o caso de voltar a explorar o tema, já objeto de outros estudosFaz-se apenas breve menção às situações de colisão entre princípios constitucionais ou de direitos fundamentais. 

Para lidar com elas, boa parte dos tribunais constitucionais do mundo se utiliza da técnica da ponderação, que envolve a valoração de elementos do caso concreto com vistas à produção da solução que melhor realiza a vontade constitucional naquela situação.

As diversas soluções possíveis vão disputar a escolha pelo intérprete. Como a solução não está pré-pronta na norma, a decisão judicial não se sustentará mais na fórmula tradicional da separação de Poderes, em que o juiz se limita a aplicar, ao litígio em exame, a solução que já se encontrava inscrita na norma, elaborada pelo constituinte ou pelo legislador. 

Como este juiz se tornou co-participante da criação do Direito, a legitimação da sua decisão passará para a argumentação jurídica, para sua capacidade de demonstrar a racionalidade, a justiça e a adequação constitucional da solução que construiu. 

Surge aqui o conceito interessante de auditórioA legitimidade da decisão vai depender da capacidade do intérprete convencer o auditório a que se dirige de que aquela é a solução correta e justa. O tema apresenta grande fascínio, mas não será possível fazer o desvio aqui.

Discricionariedade judicial 
e resposta correta

“Creia nos que procuram a verdade. Duvide dos que a encontram”Andre Gide
Em relação a inúmeras questões, como ficou assentado, a solução dos problemas não se encontra pré-pronta no sistema jurídico. Ela precisará ser construída argumentativamente pelo juiz, a quem caberá formular juízos de valor e optar por uma das soluções comportadas pelo ordenamento. 

Não é incomum referir-se a essa maior participação subjetiva do juiz como discricionariedade judicialNão haverá maior problema na utilização da expressão, desde que seu sentido seja previamente convencionado. 

Discricionariedade judicial é um conceito que se desenvolve em um novo ambiente de interpretação jurídica, no qual se deu a superação da crença em um juiz que realizaria apenas subsunções mecânicas dos fatos às normas, lenda cultivada pelo pensamento jurídico clássico.

O juiz contemporâneo, sobretudo o juiz constitucional, não se ajusta a esse papel, para desalento de muitos. Mas de nada adianta quebrar o espelho por não gostar da imagem.
O fato inafastável é que a interpretação jurídica, nos dias atuais, reserva para o juiz um papel muito mais proativo, que inclui a atribuição de sentido a princípios abstratos e conceitos jurídicos indeterminados, bem como a realização de ponderações. 

Para além de uma função puramente técnica de conhecimento, o intérprete judicial integra o ordenamento jurídico com sua próprias valorações, sempre acompanhadas do dever de justificação. 

Discricionariedade judicial, portanto, traduz o reconhecimento de que o juiz não é apenas a boca da lei, um mero exegeta que realiza operações formais. 

Existe uma dimensão subjetiva na sua atuação. Não a subjetividade da vontade política própria – que fique bem claro –, mas a que inequivocamente decorre da compreensão dos institutos jurídicos, da captação do sentimento social e do espírito de sua época.
Discricionariedade, porém, é um conceito tradicional do direito administrativo, no qual está embutido o juízo de conveniência e oportunidade a ser feito pelo agente público

Nessa acepção, discricionariedade significa liberdade de escolha entre diferentes possibilidades legítimas de atuação, uma opção entre “indiferentes jurídicos”.

Ora bem: nesse sentido, inexiste discricionariedade judicial. O juiz não faz escolhas livres nem suas decisões são estritamente políticas. 

Esta é uma das distinções mais cruciais entre o positivismo e o não-positivismo. 

Para Kelsen, principal referência do positivismo normativista romano-germânico, o ordenamento jurídico forneceria, em muitos casos, apenas uma moldura, um conjunto de possibilidades decisórias legítimas. A escolha de uma dessas possibilidades, continua ele, seria um ato político, isto é, plenamente discricionário.

 A concepção não-positivista aqui sustentada afasta-se desse ponto de vista. Com efeito, o Direito é informado por uma pretensão de correção moralpela busca de justiça, da solução constitucionalmente adequada. 

Essa ideia de justiça, em sentido amplo, é delimitada por coordenadas específicas, que incluem a justiça do caso concreto, a segurança jurídica e a dignidade humana. Vale dizer: juízes não fazem escolhas livres, pois são pautados por esses valores, todos eles com lastro constitucional.
Surge aqui uma questão interessante e complexa. Ronald Dworkin, no seu estilo ousado e provocativo, sustentou, em diferentes textos, a tese da existência de uma única resposta correta, mesmo nos casos difíceis, isto é, em questões complexas de direito e moralidade política.

Trata-se de uma construção que se situa no âmbito de sua crítica geral ao positivismo jurídico e ao uso que dois dos seus maiores expoentes – Kelsen e Hart – deram à discricionariedade judicial. 

A tese sempre foi extremamente controvertida, tendo produzido um rico debate pelo mundo afora, com repercussões no Brasil

Não tenho a pretensão de reeditá-lo, embora creia que a minha visão do tema ofereça uma solução na qual não há vencedores nem vencidos. 

A discussão em torno da existência de uma única resposta correta remete à imemorial questão acerca da verdade, sua existência em toda e qualquer situação e os métodos para revelá-la.

 Se existe uma única resposta correta – e não diferentes pretensões de resposta correta –, é porque existiria, então, uma verdade ao alcance do intérprete.

 Mas quem tem o poder de validar a verdade proclamada pelo intérprete? 

Se houver uma força externa ao intérprete, com o poder de chancelar a verdade proclamada, será inevitável reconhecer que ela é filha da autoridade. 

Portanto, a questão deixa de ser acerca da efetiva existência de uma verdade ou de uma única resposta correta, e passa a ser a de quem tem autoridade para proclamá-la. Cuida-se de saber, em última análise, quem é o dono da verdade.
Dois exemplos, um literário e outro real, exibem as dificuldades na matéria.

O primeiro. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: “Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida".

Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar”. 

E o ateu responde: “Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida”. Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.
O segundo exemplo envolve uma questão de largo alcance político e moral, relacionado à chamada justiça de transição.

Há uma recorrente discussão acerca do tratamento a ser dado aos crimes que foram praticado por agentes do Estado durante o regime militar no Brasil, aí incluídos homicídios, tortura e sequestros. 

Como se sabe, a Lei de Anistia, de 1979, tornou impossível a responsabilização de todos quantos houvessem cometido crimes políticos ou conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. 

Decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada por 7 votos a 2, considerou válida essa lei, em julgamento realizado em 28 de abril de 2010

Posteriormente, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar um caso envolvendo desaparecidos na guerrilha do Araguaia, considerou que a lei brasileira de anistia era incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, por impedir a apuração de graves violações de direitos humanos, a responsabilização dos culpados e a reparação às vítimas.

No debate público, há duas posições contrapostas em relação a essa matéria, que podem ser assim enunciadas:
  1. a lei de anistia foi uma decisão política legítima, tomada pelos lados contrapostos para conduzirem uma transição pacífica para a democracia;
  2. a lei de anistia foi uma inaceitável imposição dos que detinham a força, para imunizarem-se dos crimes que haviam cometido.
Nos dois exemplos, tanto no fictício como no real, pessoas esclarecidas e bem intencionadas podem tomar partido por um lado ou outro.

 Qual a resposta correta? Onde está a verdade? 

O fato inegável é que mesmo quem se oponha ao relativismo moral e reconheça a existência de um núcleo essencial do bem, do correto e do justo, há de admitir que nem sempre a verdade se apresenta objetivamente clara, capaz de iluminar a todos indistintamente. 

Dependendo de onde se encontre o intérprete, do seu ponto de observação, será noite ou será dia, haverá sol ou haverá sombra.

 É preciso conjurar o risco do stalinismo jurídico, em que algum “farol dos povos” de ocasião venha a ser o portador da verdade revelada, com direito a promover o expurgo dos que pensam diferentemente.
Dito isso, porém, um intérprete judicial jamais poderá chegar ao final do exame de uma questão e afirmar que não há uma solução própria para ela. Vale dizer: não pode dizer que há empate, que tanto faz um resultado ou outro, ou que o caso pode ser decidido por cara e coroa. 

Assim, embora não se possa falar, em certos casos difíceis, em uma resposta objetivamente correta – única e universalmente aceita –, existe, por certo, uma resposta subjetivamente correta.

 Isso significa que, para um dado intérprete, existe uma única solução correta, justa e constitucionalmente adequada a ser perseguida. 

E esse intérprete tem deveres de integridade– ele não pode ignorar o sistema jurídico, os conceitos aplicáveis e os precedentes na matéria – e tem deveres de coerência, no sentido de que não pode ignorar as suas próprias decisões anteriores, bem como as premissas que estabeleceu em casos precedentes.

Um juiz não é livre para escolher de acordo com seu estado de espírito, suas simpatias ou suas opções estratégicas na vida. Um juiz de verdade, sobretudo um juiz constitucional, tem deveres de integridade e de coerência.
O próximo capítulo – que fica faltando, por ora – cuidará do Supremo Tribunal Federal e sua função representativa e majoritária.
*http://jota.info/academia/academia1-a-verdade-nao-tem-dono-a-ascensao-do-judiciario-e-a-indeterminacao-do-direito-no-mundo
** Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal.


- formatação do texto e alterações de parágrafos feitas por este blogdoorro.

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