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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O medo como instrumento de poder


Por Roberto Savio, no site Carta Maior:

Recentemente, os britânicos se deram conta de que votaram pelo brexit a partir de uma campanha de mentiras. Mas ninguém foi cobrar publicamente os líderes da mesma, como Boris Johnson e Nigel Farage, pelo fato de a Grã-Bretanha ter que pagar 45 bilhões de euros, um dos muitos custos do divórcio, algo muito diferente da “economia de 20 bilhões” prometida por esses promotores. Há pouca análise, e pouco profunda, sobre o porquê de o comportamento político ser cada vez mais um mero cálculo, sem preocupação pela verdade nem pelo bem dos países.

O presidente estadunidense Donald Trump pode ser um bom estudo de caso sobre as relações entre política e populismo. Há alguns dias, os Estados Unidos declararam que se retiravam do Pacto Mundial sobre Migração, da ONU (Organização das Nações Unidas). Isso não tem nada a ver com os interesses ou com a identidade dos Estados Unidos, um país de imigrantes, mas sim com o fato de essa decisão é muito bem vista pelos setores sociais que votaram por Trump, como os evangélicos.

Tenho guardada a mensagem difundida quando reconheceram Jerusalém como capital de Israel: “isto é o que diz a Bíblia, e se recriamos o mundo descrito por ela Jesus retornará pela segunda vez à Terra, e somente os justos serão recompensados”. Por isso, eles acreditam que Trump aproxima o mundo do retorno de Cristo, e portanto age em favor de suas crenças.


Os evangélicos estadunidenses são cerca de 30 milhões e acreditam fortemente na profecia do retorno de Jesus, e que quando isso aconteça somente eles serão reconhecidos, por serem os que acreditaram e os que andaram pelo caminho correto.

Trump não é evangélico, tampouco demostra interesse pela religião. Mas, como cada uma de suas ações, ele é coerente com a visão de sua campanha, e tenta reunir todas as pessoas insatisfeitas – que são as que o catapultaram à Casa Branca. Suas atitudes não têm a ver com o interesse do mundo ou dos Estados Unidos. Ele só se concentra em manter o apoio dos seus eleitores, que não são necessariamente os que vivem nas grandes cidades, nem os grandes acadêmicos, ou os colunistas dos grandes diários, ou os profissionais do Vale do Silício.

São procedentes, principalmente, de sectores empobrecidos e desinformados, que se sentem marginalizados da globalização. Acreditam que os benefícios ficaram com a elite, nas grandes cidades e em poucas mãos. E creem que há um complô internacional para humilhar os Estados Unidos. Por isso acham que a crise climática é uma falácia, e Trump os representa também nesse aspecto. Em seu primeiro ano, o magnata tem 32% de aprovação, a mais baixa de um presidente estadunidense, e ainda assim seria reeleito por 92% dos seus eleitores se 2020 fosse hoje. Como só 50% dos estadunidenses vota, ele pode ignorar comodamente a opinião pública geral. E sem querer aprofundar mais nas tendências políticas norte-americanas, mas Trump é um perfeito exemplo de porque um grande número de europeus, de países como Polônia, Hungria e República Checa, ignoram as decisões da União Europeia em matéria de imigração, e por que cresce o populismo, a xenofobia e o nacionalismo em todas as partes.

O medo se transformou num instrumento para chegar ao poder. Os historiadores concordam em dizer que os dos motores da mudança na história são a cobiça e o medo.

Desde o colapso do comunismo, passou-se a ensinar que a cobiça é um valor positivo. Os mercados (não os homens nem as ideias) passaram a ser o novo paradigma. Os Estados se tornaram um obstáculo para o livre mercado.

A globalização, diziam, beneficiará a todos. Mas os mercados desregulados se mostraram autodestrutivos: nem todos ficaram de pé e só os mais ricos melhoraram de vida. O processo foi tão rápido que há 10 anos as 528 pessoas mais ricas concentravam a mesma riqueza que 2,3 bilhões. Este ano, são apenas 8 os que reúnem todo esse poder, e esse número tende a diminuir em breve. As estatísticas são claras: a globalização baseada no livre mercado perde parte do seu brilho.

Enquanto isso, perdemos muitos códigos de comunicação. O debate político já não faz referência a valores como justiça social, solidariedade, participação, igualdade, presentes nas constituições modernas e sobre as quais se construíram as relações internacionais. Agora, os códigos são: competição, sucesso, benefícios individuais.

Em minhas conferências universitárias eu me assusto ao ver uma geração materialista, a qual não interessa votar nem mudar o mundo. A distância entre os cidadãos e as instituições políticas aumenta a cada dia. As únicas vozes que falam de justiça e solidariedade são as dos líderes religiosos, como o Papa Francisco, o Dalai Lama, Desmond Tutu, Muhammad Hussein, para citar alguns dos mais destacados. E com os meios de comunicação também seguindo a cartilha do mercado como único critério, essas vozes se tornam cada vez más incipientes.

Da geração da cobiça, passamos a uma marcada pelo medo. Antes da grande crise econômica de 2008 – provocada pela ganância dos bancos, que pagaram até agora 280 bilhões em multas –, os partidos xenófobos e populistas eram sempre minoritários, salvo exceções como a de Le Pen na França). A crise trouxe medo e incerteza, enquanto as migrações aumentaram, especialmente após as invasões do Iraque e da Líbia.

Já estamos no sétimo ano do drama sírio, que levou ao êxodo de 45% da população do país. A chanceler alemã Angela Merkel paga o preço político de aceitar os refugiados sírios, e é interessante notar que dois terços dos do partido xenófobo Alternativa para a Alemanha são de pessoas da antiga Alemanha Oriental, onde há poucos refugiados. A renda média dessa região é quase 25% menor que no resto do país. O medo, outra vez, foi o motor da mudança na história da Alemanha.

A Europa é diretamente responsável por essas migrações. O famoso caricaturista espanhol El Roto fez uma charge onde bombas voam enquanto barcos com imigrantes chegam pelo mar: “nós mandamos bombas e eles nos mandam imigrantes”, diz o desenho. Mas isso não é reconhecido. Os que fogem da fome e da guerra agora são considerados invasores. Países que há pouco tempo eram considerados sinônimos de virtudes civis, como os nórdicos, e que gastavam uma proporção considerável de seus orçamentos em cooperação internacional, agora constroem muros.

A cobiça e o medo foram muito bem explorados pelos novos partidos nacionalistas, populistas e xenófobos, que agora crescem em cada eleição, da Áustria à Holanda, da República Checa à Grã-Bretanha, agora na Alemanha e logo o farão também na Itália. Os três cavaleiros do Apocalipse, que foram a base da Segunda Guerra Mundial (1939-1945): nacionalismo, populismo e xenofobia. Eles agora regressam com maior apoio popular e com dirigentes políticos que sabem usá-los.

Mas o surpreendente agora é que temos um novo elemento: a religião, amplamente utilizada contra os imigrantes, quando deveria ser fator de união. A religião sempre foi usada para dar poder e legitimidade política. Houve guerras por religião na Europa, mas nunca iniciadas ou fomentadas pelas pessoas comuns, e sim pelos príncipes e reis. Há muitos anos, comemoramos a expulsão, primeiro dos judeus, depois dos mouros na Espanha, onde viviam em harmonia e paz com os cristãos, formando uma civilização de três culturas. Há poucas semanas houve uma marcha em Varsóvia, ignorada pelos meios, com 40 mil pessoas, procedentes de distintas partes da Europa de os Estados Unidos. Protestaram em nome de Deus, pedindo a morte de judeus e muçulmanos.

Enquanto líderes religiosos protestantes, católicos, muçulmanos e judeus participam de um diálogo positivo pela paz e a cooperação, numerosos autoproclamados defensores da fé instalam o medo, o sofrimento e a morte. E sejamos claros, não há no mundo de atual um choque de religiões. É um choque entre os que usam a religião para conseguir poder e legitimidade, promovendo um sonho histórico irreal. Retornar a um mundo que já não existe, no qual os países retornariam a antigas glórias. No fundo, não é o sonho de um mundo melhor, e sim o de um passado melhor.

A África duplicará sua população e 80% dela será de menores de 35 anos, enquanto na Europa essa cifra será de 20%. Não há esperança de que a Europa seja viável numa economia global e num mundo competitivo sem uma imigração crescente. E no entanto, falar disso no debate político é como aceitar o beijo da morte. Enfrentamos uma triste realidade que já não se pode ignorar, mesmo que não seja politicamente correto. Sempre se usaram os ideais para conseguir apoio, até dos que que não acreditam neles.

Os historiadores nos ensinam que, nos tempos modernos, a humanidade caiu em três armadilhas: 1) em nome de Deus, dividir e não dialogar; 2) em nome da nação, reunir apoio para levar os cidadãos à guerra; e 3) o mesmo, agora em nome do mercado. É hora de realizar novas alianças, de lançar uma poderosa campanha de conscientização sobre os falsos profetas, com mobilização dos meios, da sociedade civil, dos políticos legítimos, com o fim de educar a cidadania sobre o fato de que a imigração deve ser regulada, pois é uma necessidade com a que a Europa precisa conviver.

Devemos criar políticas para que, mesmo com Trump retirando os Estados Unidos do Pacto Global sobre Migração ou dos Acordos Climáticos de Paris, ele siga sendo uma voz isolada, enquanto os cidadãos lutam por um mundo melhor, sem medos, baseado em valores comuns. Devemos empreender ações impopulares, porém vitais para a educação e a participação. Serão impopulares e difíceis, mas se não tomamos esse caminho, os seres humanos, os únicos “animais” que não aprendem com seus erros, voltarão a enfrentar uma era de sangue, sofrimento e destruição.

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