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Estado Islâmico
Estados Unidos, condenados à repetição
Treze anos de luta contra Bin Laden trouxeram um fundamentalismo ainda mais brutal
Se forem somados os países que participaram das duas “Conferências Internacionais sobre Paz e Segurança no Iraque”, nos dias 11 (em Jeddah, Arábia Saudita) e 14 (em Paris), chega-se a 30, mas é prematuro considerá-los parte de uma nova “coalizão dos dispostos” à maneira de George W. Bush e Tony Blair.
Os únicos governos dispostos a lutar com tropas terrestres contra o Estado Islâmico, os do Irã e da Síria, foram explicitamente desconvidados.
Se os próprios Estados Unidos e Reino Unido pretendem se limitar a ataques aéreos, o papel dos demais é ainda mais nebuloso.
A única consequência até agora foi os EUA dispensarem o pretexto de proteger seu pessoal e instalações, invocado ao atacar as forças jihadistas perto de Erbil, no Curdistão, para bombardear os fundamentalistas perto de Bagdá.
A coalizão de 2003 reuniu-se com alarde e entusiasmo para cometer um ato de banditismo internacional contra um governo falsamente acusado de terrorismo contra o Ocidente e de possuir “armas de destruição em massa”.
A atual é muito mais tímida contra uma ameaça real e explícita, marcada pelo massacre e execução cruel de milhares de sírios e iraquianos e agora também pela decapitação de reféns ocidentais.
Para isso, no caso da vítima mais recente, o trabalhador humanitário britânico David Haines, contrariou a própria Al-Qaeda, que tentou persuadi-lo a suspender a execução.
A relutância de Washington explica-se pela resistência a admitir que, republicana ou democrata, sua política no Oriente Médio, da Líbia ao Afeganistão e também no Egito, Síria e Palestina, é um fracasso.
Um acordo com Teerã e Damasco seria a resposta mais eficaz, mas a meia-volta equivaleria a confessar ter criado a atual situação com décadas de erros políticos e estratégicos que plantaram o caos na região e impuseram um enorme sofrimento em nome de ideais abstratos que, aos olhos dos povos muçulmanos, nunca foram mais que folhas de parreira para defender os interesses militares e petrolíferos do Ocidente e de Israel à sua custa.
A irrupção do Estado Islâmico foi um efeito colateral que os estrategistas ocidentais não previram e por isso subestimaram o quanto puderam, como quem se esforça por ignorar os sintomas cada vez mais alarmantes de uma doença grave, cujo tratamento exigiria uma mudança drástica de planos e hábitos.
Só quando ameaçou as reservas curdas de petróleo começou a ser levado a sério.
Ainda é possível ler analistas e políticos protestarem que o califado “não ameaça o Ocidente” e foi “superdimensionado” para insistirem em mais recursos a seus planos e apadrinhados para destituir Bashar al-Assad, pedir bombardeios ao Irã ou reforços ao sistema de vigilância da NSA, tão eficiente na espionagem de cidadãos e aliados quanto inútil contra o terrorismo real.
Daí a insistência em treinar e armar “rebeldes sírios moderados” que se sabe terem vendido ao califado armas, munições e pelo menos um dos reféns decapitados, aprisionado tropas da ONU perto do Golã e se transferido em bandos para a folha de pagamento de Al-Baghdadi à medida que este conquista mais vitórias e recursos e levam consigo armas, equipamentos e treinamento pagos pelo Ocidente.
Os EUA aproveitaram a Primavera Árabe para tentar um golpe estratégico e derrubar um aliado de Teerã e Moscou.
Não importa se o impulso democrático nesse movimento tenha sido sufocado há muito, Washington vê como questão de credibilidade continuar a pintar Bashar al-Assad como a encarnação do Mal, embora na prática tenha recuado de uma intervenção direta ante as advertências de Vladimir Putin.
Voltou a ouvi-las ao dar a entender que atacaria o Estado Islâmico na Síria sem consultar Damasco: isso será considerado “um ato de agressão”.
É compreensível, depois de uma mera autorização da ONU para impor uma “zona de exclusão aérea” na Líbia ter sido usada por Barack Obama como carta-branca para intervir no país.
A própria obsessão com isolar e enfraquecer os aiatolás depois de décadas de normalização do regime e fim de seu impulso revolucionário é sintoma da dificuldade de ajustar o curso e o discurso a novas realidades, tanto quanto os mais de 50 anos do embargo a Cuba.
Em nome da “credibilidade” e da satisfação de lobbies internamente importantes, Washington tem um longo histórico de persistir em políticas externas não só fracassadas, como cada vez mais disfuncionais.
Enquanto isso, a organização de Al-Baghdadi, que em 2013 era estimada em 5 mil combatentes, cresce para 31,5 mil segundo a CIA.
Muitos são sírios e iraquianos sunitas, mas 15 mil vieram de outros países e esse número continua a crescer.
Apesar do extremo conservadorismo islâmico, a organização atrai milhares de mulheres, algumas das quais recrutadas no próprio coração dos EUA, em Minneapolis-St. Paul, aponta investigação recente, e pessoal suficientemente culto e capacitado para permitir ao califado usar tecnologias avançadas, administrar um Estado do século XXI e promover nas redes sociais uma campanha de propaganda e recrutamento mais eficaz que aquela de qualquer outra organização islâmica.
A peça mais recente, um vídeo com o título Flames of War, com ameaças aos EUA e à Casa Branca, poderia ser um trailer hollywoodiano.
O antigo ISIS não apenas controla militarmente, mas governa de fato um território considerável, onde exerce poderes de polícia e mantém em funcionamento agricultura, mercados, padarias, infraestrutura e assistência social.
Mesmo se os EUA conseguirem cortar o fluxo de doações de simpatizantes nas monarquias árabes e de resgates pagos por aliados europeus, a organização não depende mais desses recursos. Exporta de 1 milhão a 2 milhões de dólares diários em petróleo e arrecada impostos nos seus domínios.
Recebeu adesões e juramentos de lealdade de grupos fundamentalistas da Argélia, Afeganistão e Filipinas e do nigeriano Boko Haram, que se apoderou de uma parte do noroeste de seu país e o transformou em extensão do califado.
Com o anúncio da coalizão pelos EUA, recebeu o apoio moral da rival Al-Qaeda (que controla territórios na Somália, Iêmen, Síria e Mali), e afirmou ante seus admiradores a imagem de principal adversário de um Império odiado e inimigo do Islã, o que atrai mais militantes, une seu pessoal e previne dissenções.
O preço da teimosia pode ser contrariar mais frontalmente a promessa com a qual Obama foi eleito, a da retirada definitiva do Iraque.
Em depoimento ao Congresso na terça-feira 16, o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, explicou que, se a atual estratégia falhar e o Estado Islâmico se revelar uma ameaça aos EUA, recomendará o uso de forças terrestres ao presidente.
Sem uma mudança de postura, isso apontaria não o caminho da vitória, mas o de outro Vietnã, ou muitos, se os focos jihadistas continuarem a se multiplicar.
Tanto quanto seus antecessores, o governo Obama age como se acreditasse que os povos muçulmanos abraçariam o liberalismo, se submeteriam aos EUA e às transnacionais e se tornariam felizes consumidores de produtos ocidentais se não fossem impedidos por um punhado de líderes malvados e anacrônicos.
A eliminação de Saddam, Kaddafi, Bin Laden e 13 anos de “guerra ao terror” que só aumentaram o ódio a Washington e tornaram o fundamentalismo cada vez mais popular e poderoso não bastaram para dissipar a ilusão.
A cada inimigo caído, os EUA voltam a proclamar “missão cumprida” e a vitória definitiva, apenas para vê-lo ser sucedido por um grupo ainda mais impiedoso e intransigente.
De nada adianta eliminar mensageiros. Se as massas tiverem motivos para dar ouvidos à mensagem, ela encontrará portadores.
*Reportagem publicada originalmente na edição 818 de CartaCapital, com o título "Condenados à repetição"
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