20 de Outubro de 2016 - 12h34
Se não houver interrupção desta trajetória perversa, serão multiplicados os déficits reais e imaginários tanto na Seguridade quanto da Previdência Social.
1-A partir de 1998, foi desmontada a integração financeira entre Previdência e Seguridade Social.
Sete teses sobre o desmonte da Previdência Social
Se não houver interrupção desta trajetória perversa, serão multiplicados os déficits reais e imaginários tanto na Seguridade quanto da Previdência Social.
Por Ceci Juruá**
Ao longo dos governos tucanos, na década de 1990 e seguinte, Executivo e Legislativo promoveram medidas sucessivas de desmonte da Seguridade Social, através de Emendas Constitucionais e de leis complementares.
A EC N. 20 introduziu modificações na previdência social em dezembro de 1998, organizando-a sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória. Determinou o valor máximo de R$ 1.200,00 para os benefícios do regime geral, reajustável para fins de preservação do valor real. Autorizou a constituição de um fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza para, em adição à receita própria arrecadada, garantir os recursos necessários ao pagamento dos benefícios do Regime Geral.
A LRF-Lei de Responsabilidade fiscal criou, em maio de 2000, o FUNDO DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (FRGPS), destinando-lhe apenas as contribuições de patrões e de empregados calculadas sobre a folha de salários e outros rendimentos do trabalho.
2-Na sequência a Previdência Social foi fragmentada em ilhas e arquipélagos previdenciários.
Uma primeira grande ilha foi construída separando-se os assalariados do setor produtivo privado dos servidores do setor público estatal através do Fundo do Regime Geral. Depois, em novembro de 1998, a Lei 9.717 autorizou a formação de regimes próprios de previdência social para os servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal.
Em 2001, através de duas Leis Complementares, de números 108 e 109, foi criada a previdência complementar, também designada como previdência privada, da qual fazem parte os fundos de pensão, imenso arquipélago formado por entidades fechadas e abertas.
3-No Regime Geral de Previdência Social (RGPS), ao final de 2012 os beneficiários representavam pouco mais de 20% da população ativa na economia brasileira.
O anuário de 2013 da Previdência Social informou os percentuais de distribuição dos benefícios pagos pelo RGPS: 35%, aposentadorias por idade; 19%, obtidas por tempo de contribuição; 26%, pensões por morte; os restantes 20% eram decorrentes de aposentadorias por invalidez e outros benefícios (salário-maternidade e auxílios diversos). Assim, em 2012 apenas 9,2 milhões de segurados eram aposentados por idade, cerca de 5 milhões estavam aposentados por tempo de contribuição, outros 7,3 milhões recebiam pensão por morte do cônjuge.
Cabe então observar que é pequena a parcela de trabalhadores incluídos no RGPS como aposentados por idade ou por tempo de contribuição, e os pensionistas. Apenas 21,5 milhões de uma população ativa próxima dos 100 milhões naquele ano de 2012. Os “mais bem pagos” haviam sido aposentados por tempo de contribuição, absorviam 30% da despesa do RGPS e constituíam 19% da população beneficiária (mas sujeitos ao teto fixado, R$ 4.663 no ano de 2015).
Pessoas maiores de 65 anos, com deficiência e/ou não passíveis de inclusão no Regime Geral, obtiveram o chamado beneficio de prestação continuada, de caráter assistencial. É uma população restrita, pouco superior a 4 milhões de pessoas.
4-Com fonte única de financiamento das aposentadorias e pensões do setor privado da economia, foi rompido o modelo universal de financiamento tripartite inaugurado na Era Vargas e consolidado pelos regimes militares.
O modelo tripartite consistia em obter recursos de três fontes: as contribuições do trabalhador, deduzidas do próprio salário, as contribuições do patronato, calculadas sobre os rendimentos pagos aos trabalhadores, e a parcela socializada, devida pelo Governo e financiada por tributos.
Descomprometido assim de financiar pensões e aposentadorias de trabalhadores do setor privado, o Governo pôde ir ampliando a dívida pública e comprometer-se com o tal de “superávit primário” a partir do final de 1998, modelo que recebeu o aval do FMI-Fundo Monetário Internacional. Logo, a base da cálculo das contribuições mensais ao INSS passaram a ser da competência do Mercado, local de troca de uma certa quantidade de trabalho por remuneração monetária. Em consequência, a arrecadação do Regime Geral de Previdência Social passou a depender das oscilações, e dos humores, do deus Mercado!
Logicamente o Regime Geral passaria a operar com déficits em tempos de recessão, desemprego e arrocho salarial. Abriu-se ao mesmo tempo a oportunidade – política – para nova onda de privatizações, pois a LRF determinara que os déficits do FRGPS deveriam ser cobertos por alienação de bens, direitos e outros ativos (do Estado)!
Não fosse isso o bastante, dois meses antes da LRF, dita Lei de Responsabilidade Fiscal, o Governo fez aprovar Emenda Constitucional desvinculando 20% das receitas da União, incluídas as contribuições sociais, de suas finalidades constitucionais. Surgia ali a DRU, vista então como recurso provisório para aliviar o caixa do Tesouro. No atual Governo já foi aprovada dupla ampliação da DRU: não mais 20 mas 30% das receitas tributárias da União, e sua extensão às esferas regionais, Estados e Municipios.
5.Nas sendas e picadas abertas pelos poderes Legislativo e Executivo, os senhores do Mercado puderam dispor sobre os recursos destinados ao Regime Geral de Previdência Social.
Não foram apenas a DRU e os fundos que a antecederam que desviaram recursos de contribuições sociais para a dívida pública. Houve também desonerações fiscais, que reduziram as contribuições calculadas sobre a folha de salários, utilizando como argumento a crise econômica mundial/local e a necessidade de reduzir os custos empresariais para defender o nível de emprego.
Houve também o SIMPLES, o SIMPLES FEDERAL, o SIMPLES NACIONAL, o SUPER SIMPLES, denominações que sinalizam um regime tributário diferenciado para empresas individuais, micros e pequenas empresas. Sua ocorrência vem de 1996, e desde então há ampliações sucessivas do universo empresarial beneficiado.
No governo Lula, foi a Lei Complementar 123/2006 que deu os últimos retoques ao Super Simples, autorizando recolher mensalmente, através de documento único, vários impostos (IRPJ, IPI, ICMS e ISS) e contribuições sociais (CSLL, COFINS, PIS, e INSS). Esta lei sendo complementar e, portanto, reguladora de cláusula constitucional, significou desviar recursos do Sistema de Seguridade Social, recursos que deveriam ser apropriados como receita do Ministério de Previdência e Assistência Social passaram a ser recolhidos para o Ministério da Fazenda.
Consolidava-se assim a imagem amplamente vendida pela mídia comercial para a opinião pública, de existência de um déficit gigantesco na Seguridade Social. O debate sobre Seguridade e Previdência assemelha-se desde então a uma “Torre de Babel”. Acabou o diálogo, cada um passando a defender a tese que lhe era conveniente.
6.O debate sobre o déficit previdenciário é inócuo e irrelevante, frente às inconstitucionalidades do processo de desmonte da Previdência Social.
É irrelevante porque trata de um Sistema de Seguridade Social já destruído, de uma Previdência Social dispersa em ilhas e arquipélagos. Inócuo porque desconhece o caminho percorrido pelos recursos destinados à Seguridade e à Previdência Social através de decisões quase monocráticas, e certamente oligárquicas, de deputados e de senadores. Em um Parlamento que desde 1997 passara a receber generosas contribuições dos senhores de um Mercado em franca desnacionalização.
É difícil entender a ausência de reflexão sobre as inconstitucionalidades passíveis de verificação ao longo do período. Seu desfecho foi o golpe parlamentar de agosto de 2016, como resultado do acúmulo de forças dos poderes Legislativo e Judiciário durante três décadas.
Como exemplo não único, porém o maior, destaca-se a vigência até nossos dias, do artigo 167 da Constituição da República.
Artigo 167. São vedados:
...........
XI – a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art.195, I.a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art.201.
Consultando o portal do Planalto, verificamos que a vedação estabelecida no artigo 167 refere-se a: i) contribuições do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; ii) contribuições do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o artigo 201.
No caput do artigo 201 pode-se ler: a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a ... (seguem-se vários incisos e parágrafos sobre condições de filiação ao Regime Geral e a qualificação dos benefícios distribuído).
Fica a pergunta: São compatíveis as cláusulas constitucionais ainda vigentes com as medidas até agora tomadas desviando recursos do INSS para o Ministério da Fazenda, sendo estes recursos provenientes das contribuições sociais de patrões e empregados sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho?
7.O desmonte da Previdência Social pode implicar a desagregação do Estado e da própria Nação, o Brasil !
Há poucos estudos sobre a relação entre a formação da Previdência Social brasileira e a construção da Nação e do Estado no Brasil. Mas eles existem, foram redigidos nas Academias e Universidades de nosso país, foram lidos e analisados até a década de 1990.
A Previdência Social foi o suporte institucional da construção nacional, representou o elo central de coesão entre os diferentes espaços sociais graças ao modelo tripartite de financiamento solidário, transferiu poder financeiro das multinacionais para os sindicatos de trabalhadores, alimentou o setor empresarial com recursos destinados à formação técnica de trabalhadores.
Produto da mente brilhante do maior estadista do Brasil, e de sua equipe formada por pessoas de ideologias distintas mas unidas pelo amor à Pátria, a Previdência Social não foi destruída pelos governos militares, ao contrário – foi ampliada! Em seguida reunida a um sistema mais amplo de Seguridade Social, escrito com bravura por todos que lutaram pela volta da democracia plena e por eleições diretas. São estas Seguridade e Previdência Social, capítulo nobre da Constituição Cidadã de 1988, primeira Carta e Pacto Social rascunhados democraticamente, nas ruas, por movimentos sociais que reuniram trabalhadores e classes médias, que vêm sendo destruídas sistematicamente no Poder Legislativo sem qualquer reação pública dos nobres integrantes do Poder Judiciário.
Se não houver interrupção desta trajetória perversa, serão multiplicados os déficits reais e imaginários tanto na Seguridade quanto nas ilhas e arquipélagos da Previdência Social. Este parece ser um dos objetivos da PEC 241, de limitação por 20 anos do gasto público social. A ela deverá seguir-se outra PEC, de Reforma da Previdência, já anunciada.
Poderá haver então a guerra de todos contra cada um, e de cada um contra todos. Na luta humana e desumana pela sobrevivência material. Estarão assim recompensados os esforços das Altas Finanças Internacionais visando a mercantilização total e a fragmentação da sociedade brasileira e do espaço territorial que nos abriga.
É este o futuro que sonhamos?
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*Teses construídas com base em estudo realizado sobre O desafio da Previdência Social. Rio de Janeiro, outubro de 2016.
** Ceci Juruá é economista e doutora em políticas públicas, tendo sido professora universitária na área de Finanças Públicas, conselheira do CORECON-RJ por dois triênios e vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas. Atualmente é membro do Conselho Consultivo da CNTU.
Fonte: Carta Capital
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