quarta-feira, 19 de outubro de 2016
Batalha de Aleppo, de Dresden, de Massada e de Bosworth Field – Quem mente mais, só mente por mais tempo
13/10/2016, John Hellmer, Dances with Bears
Na guerra, é lugar comum que é o vencedor quem conta a história. Menos bem compreendido e aceito é o fato de que história não vence guerras. Em outras palavras, guerra é coisa que se vence pela força, em campo. A guerra de informações, infoguerra, decide o que pensará da guerra, depois da guerra, o pessoal que não luta, não vota e não conta. "Depois da guerra" sempre é muito tempo.
Na Batalha de Aleppo (imagem 1) aconteceu que forças russas e sírias, combatendo a favor do governo da Síria em Damasco, derrotaram as forças dos EUA e da aliança da OTAN, cujos combatentes eram mercenários contratados para derrubar o governo em Damasco. É a mais decisiva derrota de armas e estratégia dos EUA, desde 1975, quando forças vietnamitas venceram a segunda Batalha de Saigon.
A propaganda pró-governo dos EUA – disseminada, que seja, nos EUA ou pelos agentes alugados à distância, ingleses, canadenses, turcos ou holandeses – está tentando explicar a derrota dos EUA no campo de batalha na Síria, alegando que as forças vencedoras teriam cometido crimes de guerra contra mulheres e crianças. A propaganda ignora os crimes de guerra dos que iniciaram a guerra na Síria, sem qualquer provocação, e a ocupação de Aleppo, onde a guerra começou. Como em toda a história reescrita das guerras dos EUA que destruíram e continuam a destruir Iugoslávia, Afeganistão, Paquistão, Iraque, Líbia, Geórgia, Ucrânia etc., derrota é uma coisa em campo; e é outra na página em que não faz diferença alguma.
Em narrativas desse tipo, o massacre de inocentes não é novidade. Aliás, fomentar e divulgar por meios de comunicação de massa o ódio aos russos, apresentados como assassinos de crianças, como fomentar e divulgar o ódio aos judeus como sacrificadores de crianças, ou aos afro-norte-americanos como estupradores de crianças, também é crime.
O campo de concentração, como arma, que Adolf Hitler usou para matar milhões de mulheres e crianças foi inventado pelos britânicos na África do Sul em 1899 e no Iraque em 1920, e novamente pelos italianos na Líbia, em 1911. Calcule a proporcionalidade de mortos entre os boers, líbios e iraquianos, nas respectivas populações civis em que as vítimas viviam, e chega-se a número que é tão genocida no resultado, quanto já era na intenção. A política britânica contra os boers foi genocida; e também foi genocida a política italiana contra os líbios.
No genocídio de armênios que executaram os turcos fizeram economia dos custos de construir campos de concentração, porque fizeram as vítimas caminharem para a própria morte (foto abaixo).
O genocídio de judeus por Hitler cobrou custo mais alto em capitais e registros, que tornaram possível compreender depois o que então se passou, e cobrou também alguns responsáveis condenados.
O relatório US Strategic Bombing Survey (USSBS) permite analisar o custo militar e também o custo em vidas de civis, dos bombardeios contra civis alemães e japoneses. A parte relativa a civis alemães mortos está aqui; para o Japão, aqui.
Leiam cuidadosamente: o relatório contabiliza mortes e custos econômicos. Mas o relatório alemão não conclui que mulheres e crianças mortas dentro de casa teriam contribuído de algum modo para a derrota dos exércitos em campo. É o contrário, isso sim: ali se admite que o bombardeio aéreo não teve qualquer efeito sobre a ideologia ou a moral das tropas: fortaleceu ainda mais a resistência, não a enfraqueceu. "A reação mental do povo alemão contra ataque aéreo é significativa. Submetidos ao feroz controle nazista, [os alemães] mostraram surpreendente [sic] resistência ao terror e às dificuldades geradas por seguidos ataques aéreos, à destruição de suas casas e de seus bens, e às condições sob as quais passaram a ter de viver. A moral, a fé na vitória final ou em concessões finais razoáveis, e a confiança nos líderes caíram; mas os alemães continuaram a trabalhar com eficiência, enquanto houve meios físicos de produção. O poder de um estado policial sobre o próprio povo não pode ser subestimado."
O relatório sobre o Japão é um pouco diferente. Conclui que o bombardeio contra civis – com número de baixas mais alto do que exércitos aliados poderiam infligir em campo – foi "complexo". Por um lado, "moral progressivamente sempre mais baixa foi marcada pela perda da fé nos líderes, tanto militares como civis, falta de confiança na força militar do Japão e crescente desconfiança nas notícias e na propaganda distribuídas pelo governo. As pessoas tornaram-se irritadiças, com tendência a gritar críticas contra o governo, a guerra e os negócios em geral." Por outro lado – não esqueçamos que essa é a história que os vencedores estão contando – a ideologia em campo era mais forte que a ameaça estrangeira que vinha dos céus. "Até o final, contudo, as tradições nacionais de obediência e conformismo, reforçadas pela organização policial, mantiveram-se ativas e efetivas, no controle do comportamento da população (...). É provável que muitos japoneses enfrentassem passivamente a morte numa continuação da luta sem esperança, se o Imperador assim o tivesse ordenado."
Aí estão as provas de que os bombardeios contra Alemanha e Japão são crimes de guerra cometidos pelo lado vencedor; foram atos que satisfazem os testes de intencionalidade, destruição desmedida e ausência de necessidade militar, os três testes que a Procuradoria deve fazer, conforme o Estatuto da Corte Criminal Internacional, artigo 8.
O que o art. 8 não esclarece é como se definem "civis", "pessoa protegida", "necessidade militar" e "objetivos militares" numa guerra entre civis, financiada e armada de fora do país, com o objetivo de tomar território, cidades e população de um país, arrancando-os da jurisdição do governo cuja derrubada é a meta dos fabricantes e alimentadores externos da guerra. O art. 8 acrescenta que é crime "utilizar a presença de civis ou de pessoa protegida para tornar alguns pontos, áreas ou forças militares imunes a operações militares". Numa guerra entre civis e supostos civis, não é possível demarcar essas distinções, porque todos são parte do conflito – quero dizer: iniciar e alimentar com armas, soldados e dinheiro uma guerra entre civis é crime de guerra? Resistir contra tudo isso seria crime de guerra?
Os dois lados oferecem respostas a essas perguntas. Fora dos campos de morte, contudo, mais frequentemente as respostas são lembradas, se oferecidas pelos vencedores, não pelos derrotados. As grandes armas de propaganda fracassam se não vencem em campo; quanto mais longe estão do campo de combates, quanto mais grandiloquentes soam, menos vencem guerras.
Mesmo assim, a história é mais duradoura que nós, e os pontos de interrogação que os crimes de guerra deixam para trás podem ser virados de ponta cabeça muitas e muitas vezes. Assim também nossa compreensão do que seja verdade.
A história de duas das maiores batalhas jamais lutadas pela conquista de um único local ilustra que, se a história avança por tempo suficiente, sempre há tempo para reinterpretar e não raras vezes inverter o resultado dos combates. Tomem por exemplo a Batalha de Massada (imagem 3) e a Batalha de Bosworth Field (4). A primeira, data da primavera dos anos 73 ou 74 (não se conhece exatamente a data) e até hoje é interpretada como a corajosa derradeira resistência de judeus na guerra de oito anos que lutavam contra legiões do Império Romano. A segunda aconteceu dia 21/8/1485, e marcou a derrota (e a morte) do Rei Ricardo III da Inglaterra, por Henrique Tudor, que subiu ao trono como Henrique 7º.
A primeira batalha é um ícone da ideologia sionista e da identidade nacional israelense, fundada sobre a ideia de que mil defensores de Massada se autodefenderam por mais de um ano, antes de cometerem suicídio coletivo, com os combatentes homens matando a mulher e os filhos antes de se suicidarem. A segunda é uma peça de Shakespeare sobre um assassino corcunda matador de crianças, cujo exército recusa-se a lutar por ele, e cujas últimas palavras no campo de batalhas foram – "Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!" – são palavras de um covarde que ainda tenta subornar alguém, para ver se escapa.
Essas histórias de batalhas que aconteceram há 1.942 e 531 anos são todas falsas, não importa quanta gente acredite que sejam verdadeiras. As provas, reunidas por arqueólogos, historiadores e patologistas forenses que até hoje trabalham sobre os cadáveres, retratam eventos completamente diferentes. Detalhes podem ser lidos nesses dois novos livros.
Capa da esquerda: http://www.cambridge.org/au/academic/subjects/classical-studies/ancient-history/history-jewish-war-ad-6674?format=HB&isbn=9780521853293
Massada, como hoje se sabe, sequer foi uma batalha. No final, havia algumas dúzias de homens em idade de combater e menos de 500 pessoas, na fortaleza. O sítio dos romanos durou semanas, não meses nem anos; a guerra na Judeia já terminara mais de um ano antes. A verdade é que Massada foi um campo para pessoas sem teto, que tomaram uma residência real abandonada depois de fugirem de batalhas reais, ao norte, em torno de Jerusalém. Sem meios para plantar ou colher ou negociar qualquer coisa de valor, os homens que viviam em Massada ganhavam a vida como salteadores, que atacavam as colheitas e o gado dos acampamentos da Judeia nas planícies abaixo da fortaleza. Em termos contemporâneos não foram nem terroristas ou jihadistas. Quando Silva, governador da Judeia e comandante das legiões que sitiavam a fortaleza, ofereceu os termos exigidos para a rendição, os homens supuseram que gângsteres como eles não estariam incluídos. E não deram às mulheres e crianças qualquer chance. Os discursos de desafio dos últimos momentos são o que chegou até nós da lenda que se criou. Ancestral de bellingcat.
A batalha de Bosworth Field aconteceu, mas não onde durante meio milênio o mundo supôs que tivesse acontecido. Ricardo e seu exército lutaram bem, mas foram superados, cegados por um sol inglês de verão, inusualmente brilhante. Ricardo viu Henrique, desmontado, por trás de suas linhas. E lançou toda a linha de vanguarda de sua cavalaria, com ele próprio à frente, para matar Henrique.
Ricardo e sua cavalaria acabaram por entrar numa manobra e tecnologia militar que eles jamais tinham visto. Era uma formação de lanceiros franceses treinados na Suíça, que Henrique contratara, pagando com um empréstimo que lhe fez o rei francês. Quando os cavalarianos de Ricardo iniciaram a carga adiante, os lanceiros franceses recuaram e reagruparam-se em torno de Henrique, criando três círculos de lanças de aço. Foi essa formação que interrompeu a carga da cavalaria de Ricardo e criou escudo efetivo. Pois Ricardo mesmo assim enfrentou a formação dos soldados de Henrique, cortou-a ao meio e isolou o rei dos que o guardavam. Ricardo chegou a poucos pés de distância de Henrique, à distância de um golpe de espada. Foi quando a cavalaria de Henrique chegou pela retaguarda dos cavaleiros de Ricardo. Naquele ponto, a batalha podia tender para um lado, ou para o outro, dependendo de quem, Ricardo ou Henrique, fosse morto antes. O felizardo foi Henrique.
O vencedor pôs-se imediatamente a fazer circular a história do crime de guerra – bellingcat medieval. Henrique decidiu despir o cadáver de Ricardo; mutilá-lo; exibi-lo amarrado ao lombo de um cavalo que foi levado para a cidade mais próxima; em seguida, enterrado em cova anônima. Os retratos de Henrique foram embelezados; os de Ricardo, desfigurados (detalhes se encontram aqui). A recente descoberta do túmulo de Ricardo, caixão e restos mortais, começou a aumentar a credibilidade dos sinais do que realmente aconteceu.
Há muito tempo para que a verdade afinal vença, por mais que a versão de Shakespeare ainda seja best-seller, e a maioria dos ingleses queiram acreditar em qualquer tolice sobre o último Tudor, a primeira Elizabeth, a Boa Rainha Bess. Precisa mais do que um Black Adder para corrigir os malfeitos dela.
Na foto: Rowan Atkinson (à direita) faz o papel de cortesão da rainha corrupta e loucamente cheia de caprichos, cuja má conduta foi muito pior do que permite, até, a comédia. Vejam isso; depois leiam essa nova história do que realmente aconteceu, de John Guy). |
Tudo isso considerado, não nos sentemos sobre os calcanhares a contar histórias tristes da morte dos reis; de como alguns foram depostos; outros, massacrados em guerra. Se você não é alemão, ainda não transcorreu tempo suficiente para decidir se o bombardeio de Dresden (quadro 2, na imagem da abertura) foi crime de guerra anglo-norte-americano. O mesmo vale para a Batalha de Aleppo, que marca a vitória do governo do presidente Bashar al-Assad.
Mas, caro leitor, caso sinta-se ou muito generoso ou muito doído no que tenha a ver com esses eventos, deixe passar 500 anos, 1.000 anos. Nesse meio tempo, com absoluta certeza, a importância da Batalha de Aleppo já será muito claramente evidente para muitos. Há um vencedor, e há um derrotado. Sorte e infoduelos nada têm a ver com guerras.*****
"O campo de concentração, como arma, que Adolf Hitler usou para matar milhões de mulheres e crianças foi inventado pelos britânicos na África do Sul em 1899 e no Iraque em 1920, e novamente pelos italianos na Líbia, em 1911." Só uma pequena correção: o campo de concentração foi inventado na Espanha, em 1810, para aprisionar as tropas francesas derrotadas numa batalha na Andaluzia, quando da invasão napoleônica. Foi instalada na ilha de Cabrera, do arquipélago das Baleares, no Mediterrâneo. E por mais estranho que possa parecer, sua criação obedeceu a um objetivo humanitário! As autoridades espanholas vencedoras não tinham condições de segurança para manter os prisioneiros no território da Península e sabiam que o povo - o real elemento do combate aos franceses e seu vencedor - acabaria por massacrar os prisioneiros, tamanho ódio a invasão e a ocupação provocou. Daí terem optado por essa solução, que teve o mérito de impedir massacres. Sobre o tema há um romance da atual literatura espanhola, de nome "Cabrera". Infelizmente, me esqueci do nome do autor.
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