O blog do Demodê
Este é o espaço em que as integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades - Demodê, da Universidade de Brasília, e suas convidadas refletem sobre as questões do momento. Conheça também nosso website www.demode.unb.br e nossa página no...De onde veio essa abstenção toda?
Carlos Machado, Danusa Marques e Luiz Augusto Campos
Já não é novidade que, apesar do voto ser obrigatório no Brasil, há uma grande quantidade de pessoas que não vota em qualquer das opções disponíveis para contribuir à definição de representantes, seja com o voto nominal em um/a política/o ou com voto na legenda partidária. Mas as eleições de ontem surpreenderam pelo alto valor do alheamento eleitoral, entendido enquanto o total de votos brancos, nulos e de não-comparecimentos para a votação.
Dois casos emblemáticos foram as eleições para prefeitura nos municípios de Rio de Janeiro e São Paulo. Em ambas as cidades, é possível observar um padrão consistente de redução do engajamento eleitoral. Se nas eleições de 2000 cerca de 24% do eleitorado apto a votar não manifestava apoio a qualquer candidatura, em 2016 este valor sobre para 35% em São Paulo e 39% no Rio de Janeiro.
Fonte: elaboração própria, a partir de dados do TSE.
No entanto, são muito diversas as possibilidades de explicação para este aumento. Não se pode afirmar que todos esses votos sejam decorrentes de insatisfação com o sistema político em si. Votos brancos podem externar tanto a resignação ao resultado oficial quanto o descontentamento com as candidaturas apresentadas ou o simples esquecimento do número do candidato na hora da eleição. Votos nulos podem significar desde uma tentativa de expressar um voto de protesto contra o sistema político-eleitoral, mas também podem ser resultado de erros de digitação do/a eleitor/a no momento de interagir com a urna, algo recorrente em municípios com um eleitorado com baixíssimo grau de instrução, por exemplo. Abstenções incluem tanto pessoas que estão em trânsito ou mudaram de cidade, quanto o falecimento de cidadãos cuja família não cancelou o título, ou ainda aquelas que deliberadamente não desejam gastar seu tempo com a participação eleitoral e consideram os custos decorrentes do não-comparecimento baixos o suficiente para não se importarem com multas ou outras penalidades.
Apesar de toda a complexidade sobre as causas subjacentes ao alheamento eleitoral, a análise dessas informações desde 2000 permite-nos suscitar algumas hipóteses. De um lado, se os votos nulos forem em sua maioria dificuldades relacionadas à utilização da urna eletrônica, seria de se esperar que, com o passar dos anos, o eleitorado brasileiro teria tido melhores condições de lidar com essa tecnologia, implicando uma redução nesses valores. Entretanto, isso não se verifica na realidade. Entre 2000 e 2008 a pequena variação, na faixa de 5%, abre margem à interpretação de que se referem a erros no ato de votar. Contudo, o aumento de votos nulos de forma consistente em 2012 e 2016 reforça a tese do aumento do voto de protesto. Vale notar que isso não se passa com os votos brancos, que permanecem constantes, observando, inclusive, uma redução no número absoluto em 2016 nas eleições de São Paulo. Por outro lado, as abstenções têm subido intensamente:
Fonte: elaboração própria, a partir de dados do TSE.
Por se tratar de dados agregados, obviamente podemos dizer pouco sobre as intenções individuais dos eleitores. Este tipo de avaliação qualitativa faz muita falta para a compreensão mais precisa sobre o que ocorre em meio ao eleitorado brasileiro. No entanto, cabe questionar: os eleitores que decidiram deixar de votar em candidaturas nas últimas eleições poderiam ser identificados de alguma forma, através da avaliação do padrão de votação nas candidaturas com o passar dos anos?
Ao que parece, a vitória do candidato João Dória (PSDB) no primeiro turno das eleições para prefeitura da capital paulista foi fruto de dois fatores. De um lado, uma forte capacidade de coordenação dos opositores à prefeitura petista. A candidatura de Dória foi capaz, inclusive, de captar parte da votação que Celso Russomano (PRB) havia obtido em 2012, além de rachar a votação do PMDB local. Efetivamente Dória obteve a maior votação em números absolutos para prefeito em São Paulo desde 2000. Ao mesmo tempo, não se pode minimizar o efeito decorrente da onda antipetista que se observou em São Paulo. Isso pode ter incentivado esses eleitores a escolher Dória a despeito de outras candidaturas próximas ideológica e partidariamente dele, como aquelas de Celso Russomano e Marta (PMDB).
Contudo, quando observamos a distribuição histórica dos votos pelas ideologias políticas dominantes (esquerda e direita), vemos que a última eleição não foi tão distinta assim das anteriores. Com o passar dos anos, é clara a redução da votação em candidaturas à prefeitura identificadas com a esquerda, algo que não ocorre quando consideramos a votação dos demais partidos unidos.
Fonte: elaboração própria, a partir de dados do TSE.
A redução da votação em candidaturas de partidos à esquerda auxilia a compreender de onde tem saído uma parte substantiva dos eleitores que optaram por não contribuir com a eleição de qualquer candidatura. Ao que parece, o crescimento do alheamento eleitoral tem afetado de forma fulminante a votação obtida por partidos à esquerda. Ou seja, os votos anteriormente captados por um partido como o PT não estão sendo convertidos, ou estão sendo convertidos numa taxa muito baixa, para outras vertentes políticas ideologicamente próximas. Enquanto os grupos políticos mais à direita têm conseguido coordenar de forma cada vez mais fácil a votação entre eles, o eleitorado que anteriormente tinha sido mobilizado por partidos à esquerda tem optado por deixar de participar eleitoralmente. Em termos simples, esses dados indicam que a direita e o centro não têm ganhado eleitorado: é a esquerda que tem perdido votos para o alheamento eleitoral. O crescimento da direita tem sido percentual, mas não absoluto, porque o alheamento não entra no cálculo dos votos válidos.
Um padrão parecido também ocorre no Rio de Janeiro, apesar de todas as idiossincrasias peculiares à política carioca, porém com menor intensidade. A redução da votação ocorre entre as candidaturas à esquerda, mas não entre os demais partidos políticos, apesar do impacto ser mais fraco do aquele observado em São Paulo.
Fonte: elaboração própria, a partir de dados do TSE.
Esses dados indicam que, muito possivelmente, o alheamento eleitoral não afeta igualmente os diversos setores da política brasileira. Nessas duas cidades, o não-comparecimento às eleições tem contornos muito mais característicos de um voto de protesto do que algumas vertentes da ciência política recorrentemente enfatizam. Não são apenas erros. Não se pode descartar a hipótese de que uma parte substantiva do alheamento decorre de ações profundamente deliberadas. E mais, essas ações têm perfil, e não se trata de um perfil à direita. A crítica à política feita à direita, com ênfase numa visão de desvalorização da política, não vem resultando em alheamento, mas em mobilização eleitoral desses setores. O moralismo antipolítico se refere apenas à política feita pelos “outros”, pois não se observa uma redução na votação das candidaturas que expressam esse perfil nos partidos mais à direita.
O alheamento é uma forma legítima, ofertada pelo sistema eleitoral, de expressão política. É, inclusive, uma das melhores saídas conservadoras se observadas desde um ponto de vista domesticador da participação popular, já nos diziam autores como Schumpeter, Lipset, Huntington, até mesmo Almond & Verba: o importante para uma democracia é o povo achar que decide, mas bom mesmo é que ele não se envolva muito e decida não decidir. Isso ameniza as pressões sobre o sistema. Em um modelo que envolve pouquíssima participação, a “festa eleitoral” é o momento que legitima o sistema político. Por isso mesmo, não importam os brancos, nulos e não-comparecimentos. A roda continua girando.
O que esse alheamento pode, talvez, querer expressar – a óbvia limitação do potencial eleitoral para a construção de uma sociedade realmente democrática (e nem vamos entrar aqui na questão do efeito da interpretação do golpe sobre o eleitorado) – é que essa forma restrita está falida. O problema é que ela não está falida para o/as agentes políticos/as. Abandonar o jogo eleitoral não está quebrando o sistema, se não há um outro jogo alternativo com impacto sendo jogado.
(3 de outubro de 2016.)
OUTRAS COISAS QUE VOCÊ PODE GOSTAR
Precisamos falar sobre a relação entre os órgãos de controle e as desigualdades sociais
[Foto: Pedro Moraes/GOV-BA]
Mayrá Lima
O papel dos órgãos de controle do Estado e como suas decisões impactam no sistema político ainda são pouco estudados pela Ciência Política. Seja de forma interna, ou externa, estes órgãos têm o papel de fiscalização da administração pública, tal como a aplicação dos recursos federais.
Aqui, falarei sobre o Tribunal de Contas da União (TCU) e um caso que não gerou grandes debates jornalísticos. Em abril de 2016, o TCU, por meio do acórdão 775/2016, suspendeu a concessão de benefícios do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e a seleção de novos beneficiários, após uma auditoria que cruzou dados de pessoas cadastradas neste programa.
O cruzamento realizado pelo TCU é complexo. São dados provenientes da Receita Federal do Brasil, Renavam, beneficiários de auxilio reclusão, sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), Sistema de Controle de Óbitos (Sisibi), Cadastro Nacional de Empregados e Desempregados (Cagede), Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), Cadastro Único para Programas Sociais (CadUnico), Relação Anual de Informações do Ministério do Trabalho e da Previdência Social (RAIS). Não há outros órgãos públicos que tenham tecnologia para realizar cruzamentos deste porte.
O levantamento, realizado em oito estados (Amapá, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia, Roraima, São Paulo e Tocantins), concluiu que 578 mil famílias não poderiam ser beneficiárias do PNRA. Ao manter essas famílias, segundo o TCU, os cofres públicos sofrem o prejuízo da ordem de R$ 2,8 bilhões. No resto do Brasil, todos os processos para novos beneficiários da reforma agrária foram paralisados. Foi a primeira vez que um órgão de controle suspendeu um programa inteiro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a partir de análise de casos em amostragem.
As famílias consideradas irregulares, sem nenhuma notificação anterior, ficaram impedidas de acessar políticas de crédito rural, além de outros direitos sociais, tais como a matrícula escolar e universitária, inscrição em vestibulares ligados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e licença maternidade.
Obviamente, este texto não defende a não fiscalização da política pública. Mas quero destacar pontos do acórdão do TCU que considero passíveis de debate diante de desigualdades sociais – a perpetuação delas - e perspectivas classistas sobre a reforma agrária.
Com pesquisas realizadas apenas nos escritórios das superintendências regionais do INCRA, cuja base precisa de atualizações e reformas no sistema de informação, a análise realizada pelo TCU leva em conta a situação atualdas famílias beneficiárias pelo PNRA, e não a condição pela qual elas foram inscritas no programa e assentadas em algum município.
Desta forma, a partir da condição atual de cada beneficiário, perfis foram identificados como não aptos ao PNRA, tais como proprietários/as com área maior do que um módulo rural; aposentados por invalidez; portadores/as de deficiência física ou mental; titulares de mandatos eletivos; pessoas com idade inferior a 18 ou maior que 60; pessoas com renda superior a três salários; pessoas cujo lote recebido fica em local diferente do de residência; servidores/as públicos.
Estes perfis apresentariam, ou restrições para o trabalho no campo, ou “sinais exteriores de riqueza”, conforme o TCU, o que não poderia constar em um beneficiário da reforma agrária. Ou seja, uma pessoa já assentada não poderia ter mobilidade econômica, política e social e deveria apresentar um tipo de condição física e mental determinado.
Em casos concretos, se tomarmos o acórdão do órgão de controle, uma pessoa beneficiária da reforma agrária não poderia vir a ser um/a servidor/a público/a, não poderia concorrer a nenhum cargo eletivo, não poderia ter um automóvel de mais de R$ 70 mil - vale lembrar que tratores e colheitadeiras custam bem mais que isso no mercado.
Dois casos apontados pelo TCU chamam mais atenção: a proibição ao cargo público e a impossibilidade de ascender economicamente. São apontados 145.638 beneficiários irregulares por possuírem algum cargo público, seja ele de caráter administrativo, ou político. Aqui se incluem os professores, agentes de saúde e merendeiras que são beneficiários e atendem ao município, ou mesmo ao estado.
No caso da representação política, o TCU considerou irregular todos os/as assentados/as que passaram a ser vereadores/as, deputados/as, prefeitos/as, etc. Ou seja, seria proibida a estas pessoas a oportunidade da disputa eleitoral, de atuar politicamente em espaços institucionais, o que fere frontalmente o sentido da igualdade de oportunidades para a ação política.
O outro caso se trata da ascensão econômica de um assentado. O TCU considerou irregular os 26.818 beneficiários que possuíam quotas e ações em sociedades empresariais de qualquer natureza. Deste modo, pessoas cooperadas em agroindústrias, ou que possuam algum tipo de estrutura de processamento industrial de sua produção estariam fora do PNRA por ser caracterizado como composição de empresa. Foi também vedado a execução de qualquer outra atividade de complementação de renda, a não ser a agropecuária.
Há uma compreensão sobre a forma de vida do/a assentado/a, onde a referência parece ser a pobreza, não a possibilidade de crescimento econômico e melhoria de vida. A limitação da organização econômica dos/as assentados/as os destina à produção para própria subsistência, ou a uma produção que não possui valor agregado, passível a atender mercados locais, ou mercados maiores.
Ao questionar “sinais exteriores de riqueza”, o TCU nos diz que a pessoa beneficiária da reforma agrária deve ter restrições de ascensão econômica e financeira, o que o destina a um modelo de vida específico para o/a trabalhador/a do campo, fazendo uma segregação a quem tem direito a ter determinados bens e serviços, e quem não tem.
O acórdão do Tribunal de Contas da União ainda não levou em conta situações cotidianas da vida social. Jovens e idosos também são excluídos dos beneficiários, mesmo que eles estejam em condições para o trabalho no campo, ou estejam emancipados, conforme o Código Civil Brasileiro. Aposentados/as por invalidez, ou portadores/as de deficiência física ou mental, beneficiários do INSS, também estariam fora do PNRA. O órgão considerou irregulares as famílias que permaneceram nos lotes após o falecimento do beneficiário, ponto já pacificado através da lei 13.001/2014, que estabelece direitos sucessórios. Os/as que recebem auxílio reclusão também foram excluídas, por terem “mal antecedentes”.
O INCRA, ainda durante o Governo Dilma, chegou a contestar por três vezes a decisão drástica do TCU com a proposição de correções de possíveis irregularidades por meio de planos de trabalho. Mas os apelos foram sumariamente negados.
No entanto, os ventos mudaram após o golpe de Estado: no último dia 21 de setembro, o TCU suspendeu por 120 dias o bloqueio de 400 mil famílias beneficiárias, o que mostra uma condescendência do órgão com o novo governo. Ficaram de fora os casos que envolvem jovens e idosos, pessoas consideradas sem bons antecedentes, pessoas que apresentam “sinais exteriores de riqueza”, dentre outros.
(29 de setembro de 2016.)
As manifestações de 15 de março
Flávia Biroli
Os dados da pesquisa do Datafolha sobre os manifestantes que estiveram na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, no dia 15 de março dão algumas indicações sobre o clima político atual. Segundo o relatório apresentado pelo instituto de pesquisa, a idade média dos manifestantes era de 40 anos, 69% deles declarou ser de cor branca, 76% tinham ensino superior completo e 41% tinham renda maior do que 10 salários mínimos.
Segundo a mesma pesquisa, 96% dos presentes avaliaram o governo de Dilma Rousseff como ruim ou péssimo, 3% o avaliaram como regular e 1% não opinou. Entre os que estiveram na Paulista no domingo, 82% disseram ter votado em Aécio Neves no segundo turno das eleições de 2014 e 37% declararam preferência partidária pelo PSDB (51% declararam não ter um partido preferido), partido que foi o único que ganhou destaque entre os 3% que declararam ter filiação partidária.
Além disso, como foi bastante noticiado, 47% declararam estar na Paulista para protestar contra a corrupção, 27% para pedir o impeachment ou a “saída” de Dilma Rousseff e 20% para protestar contra o PT. Houve equilíbrio, portanto, entre a temática da corrupção e a oposição a Dilma e PT em conjunto, mas o saldo anti-PT certamente contabiliza muitas das motivações focadas na corrupção se pensamos que, no ambiente político-midiático atual, é ao PT que ela tem sido vinculada.
Entendo que há pelo menos três frentes para as reflexões sobre as manifestações, sobre as quais faço breves comentários.
Quem são os manifestantes
A população presente à Paulista, na maior manifestação ocorrida no 15 de março, é mais branca e mais rica do que a maior parte da população brasileira e faz parte da camada da população que tem acesso a posições relativamente escassas no Brasil.
Segundo os dados mais recentes do IBGE, 4,8% das famílias brasileiras tinham em 2013 salário mensal per capita superior a 5 salários mínimos – na Paulista, 68% declararam ter renda superior a 5 salários mínimos. Também em 2013, indo para a outra ponta, entre os 10% mais pobres da população, 75% eram pretos ou pardos, o que mostra porque os manifestantes da Paulista, que estão na faixa superior da renda, eram também brancos.
Enquanto 76% dos manifestantes tinham ensino superior, os dados do IBGE mostram que bem menos gente tem chegado lá. A fatia das pessoas entre 18 e 24 anos que frequentava o ensino superior em 2013 era de 16,3% (cerca de 6 pontos percentuais a mais do que os 10,4% que, nessa faixa etária, cursavam o ensino superior em 2004). Vale lembrar o outro lado da moeda: no mesmo ano de 2013, 31% dos jovens na mesma faixa etária não haviam concluído o ensino superior e não estavam estudando – aproximadamente o dobro dos que estavam na universidade no mesmo período. Entre os manifestantes da Paulista, agora de volta ao Datafolha, eram 2% os que tinham apenas o ensino fundamental.
Não pretendo ou tenho condições de dar explicações finais para as razões de serem esses os manifestantes. Mas a população pobre e negra foi a que se beneficiou das políticas sociais – políticas de acesso direto a renda, como o Bolsa Família, mas também de acesso a moradia, ao ensino superior e ao crédito – e da valorização do salário mínimo durante os governos do PT.
O fato de PT e, de maneira mais aguda, o governo de Dilma Rousseff terem desagradado tão intensamente a fatia mais rica da população, a ponto de levá-la às ruas, não está necessariamente entre os erros e defeitos dos governos petistas.
A conjuntura eleitoral de 2014 e o acirramento dos antagonismos
O anti-petismo (penso que é possível incluir nele as manifestações pelo impeachement de Dilma Rousseff) foi espinha dorsal nas manifestações em São Paulo, como mostram os dados do Datafolha.
A população que foi às ruas na cidade de São Paulo parece não ter aceito a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2014. Como vêm dizendo as lideranças tucanas, é hora de “sangrar” a presidente. Para alguns, valeria à pena construir um ambiente político favorável a um impeachment, para outros trata-se de reduzir a possibilidade de que a presidente tenha condições de conduzir seu próprio governo, evitando que acertos possam ser convertidos em créditos eleitorais para o PT e na melhora da sua popularidade.
As razões pelas quais o PT desagrada precisam, mais uma vez, ser consideradas. Se a corrupção está entre as temáticas de destaque, na mídia e nas manifestações, pode ser importante considerar o fato de que parcela significativa dos manifestantes não apenas expressou sua adesão ao PSDB, mas também se identificou como de direita (um em cada quatro manifestantes, segundo o Datafolha, se situou nas posições mais à direita, 6 e 7, em um espectro de 1 a 7). Também não deve ser ignorado o fato de que uma pessoa em cada dez, isto é, 10% dos que estiveram na Paulista naquele domingo, indicou que “em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que um regime democrático”.
Nessa conjuntura, o alvo não é apenas o PT, nem o PT mais Dilma Rousseff, mas também aqueles que votaram em Dilma para presidente, o que pode ser visto nas declarações – muitas delas abertamente racistas, direcionadas aos eleitores do Nordeste – que se seguiram às eleições. Os que protestaram no domingo parecem ter dificuldades para aceitar o resultado das urnas, o que aparece seja quando se expressam mais diretamente contra a democracia, seja quando defendem, ou insuflam os que defendem, o impeachment da presidenta.
O PT, Dilma Rousseff e a crise
Mobilizando de maneira bastante solta a análise feita por André Singer em Os sentidos do lulismo (São Paulo, Companhia das Letras, 2012), podemos entender que a acomodação entre o “reformismo fraco” representado pelo lulismo, com os avanços que significou para as camadas mais pobres da população, e as políticas que beneficiaram os mais ricos e evitaram confrontos com o capital, pode ter se esgotado. Uma conjuntura econômica desfavorável, aliada a maiores dificuldades na construção das alianças políticas e a tropeços nas relações com o Congresso, colaboraria para esse esgotamento.
Muito tem sido dito, também, sobre a falta de habilidade política de Dilma Rousseff se comparada a seu antecessor. Mas vale a pena, acredito, redobrar a atenção sobre o tipo de pressão que Rousseff vem sofrendo. Ela vem daqueles que querem garantir que a conta da crise econômica não será paga por eles – penso nos setores financeiro e empresariais – e dos grupos políticos para quem a fragilidade da presidenta e de seu governo pode significar a ampliação do seu protagonismo na política ou um trânsito mais livre pelas práticas de sempre, nas quais a ocupação de espaços significa controle de recursos convertidos em benefícios pessoais e partidários.
Dilma Rousseff, portanto, não pode ser lida fora desse quadro mais amplo. Por outro lado, nesse quadro, houve a escolha deliberada por desagradar a base social e a militância petista, seguindo no cumprimento de metas da agenda mais compatíveis com seu adversário eleitoral do que com suas promessas de campanha. A base social petista existe, não se diluiu, mas não tem sido mobilizada ou vista como potencial para os enfrentamentos agudos que se apresentam na crise atual.
E há a corrupção. É certo que ela ganha as páginas dos jornais em um enquadramento no qual o PT é colocado como protagonista, enquanto outros escândalos e, em especial, as denúncias que envolvem o PSDB são tratados aos cochichos. Isso, no entanto, não apaga o fato de que o PT parece ter feito opções que expõem, claramente, a acomodação a práticas políticas que não se tornam aceitáveis por serem comuns e antigas.
Essas práticas consolidam o acesso diferenciado os recursos do Estado, segundo a posição econômica e o poder de influência dos atores. Para os grandes empresários, como os que estão à frente das construtoras envolvidas no escândalo da Petrobrás, o Estado é poroso: seus interesses encontram caminhos que estão longe de serem possíveis para a maior parte da população.
Sem qualquer intenção de concluir, deixando um tanto de fios sem arremate, a política levada a cabo pelo PT não foi capaz de romper com práticas que fazem com que os mais ricos – justamente aqueles que fizeram a maioria na Paulista – tenham acesso privilegiado ao Estado. Para romper com elas, é preciso mais, e não menos, democracia. É preciso avançar na construção de uma democracia na qual sejam reduzidas, e mesmo ultrapassadas, as assimetrias no exercício da influência e na possibilidade de participação direta na política.
(22 de março de 2015.)
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