DOIS TEXTOS-DOCUMENTOS DA MUSICA POPULAR BRASILEIRA: RAPAZ FOLGADO e HOMENAGEM AO MALANDRO
- Por Itaney Francisco Campos (no face)
Para efeito comparativo e de situação de dois documentos que servirão como fonte para o trabalho de monografia de final de curso de especialização em História cultural, da Universidade Federal de Goiás, selecionei dois textos referenciais da Música Popular Brasileira: RAPAZ FOLGADO, do compositor e cantor Noel Rosa (Noel de Medeiros Rosa) e HOMENAGEM AO MALANDRO, do também compositor e cantor CHICO BUARQUE, nome artístico de Francisco Buarque de Hollanda. Tanto Noel Rosa quanto Chico Buarque são nomes estelares na história da Música Popular Brasileira, considerados ambos como ícones e insuperáveis letristas em suas respectivas épocas, tendo o primeiro atuado no Rio de Janeiro, nas décadas de 1920 e 1930, e o segundo, naquela mesma cidade, a partir dos meados da década de 1960, até a presente data, quando alcança os 70 anos de idade, em plena criatividade.
O gênero musical que cultivaram (e que os identifica) é o samba, na sua vertente urbana. O samba, no dizer de Juliana Lessa, “se desenvolveu como uma manifestação cultural da classe trabalhadora. (...) E se é verdade que os negros representavam grande parcela da classe, também devemos atentar para o fato de que os trabalhadores de outras matrizes culturais – sujeitos, em grande medida, às mesmas condições de vida dos negros, também foram criadores desse ritmo, em cujas letras podemos perceber elementos de uma consciência de classe”. O Rio de Janeiro figurava desde o século XVIII como um dos maiores redutos da população negra no Brasil, observa o crítico musical José Ramos Tinhorão, possivelmente pela sua condição de cidade portuária e, por isso, centro distribuidor de mão de obra.
O que se pretende, através dos textos escolhidos, é constatar a representação, nos textos da música popular, da postura estatal de repressão e perseguição a esse tipo de manifestação cultural, e bem assim se existem registros nesses textos de origem popular da resistência oposta a atitude repressiva do Estado, ou ainda se a representação dessa atividade repressiva é incorporada, aceita e até reproduzida pelo segmento social mencionado. Indaga-se se há, no contexto das composições populares, denúncias desse preconceito oficial em relação aos sambistas e artistas da música popular, em suas várias vertentes.. O texto ficcional, gênero em que se enquadra a composição literária voltada à música , é, por essência, uma representação.
Na sua construção, ingressam elementos do imaginário e representações da experiência de vida do compositor, de sorte que, para além dos aspectos intrínsecos ao texto, podem se averiguar registros relativos à condição social do seu autor. No caso vertente, o primeiro texto é de autoria de um compositor de classe média carioca – Noel Rosa – nascido no Bairro de Vila Isabel, em 11 de dezembro de 2010. O texto é uma exortação ao malandro-sambista para que mude o estilo de vida, abandone a malandragem e a contravenção e se dedique à composição de sambas. O compositor propõe que não se designe como malandro o compositor de sambas, mas sim de rapaz folgado, que não teria conotação pejorativa. Esse samba de Noel é uma resposta ao samba de Wilson Batista, intitulado Lenço no pescoço, em que se jactava de ser malandro, provocativo e vadio, sempre com sua navalha no bolso. Noel, jovem branco, de classe média, embora circulando pelos morros cariocas e estreitando amizade com os sambistas negros, assimilava o movimento de valorização do samba, que se inseria “no circuito das grandes gravadoras e das emissoras de rádio”, no dizer de Juliana Lessa em “Samba e consciência de classe no Rio antigo”.
Segundo essa historiadora, “a partir da década de 1930 o samba passou a ser incorporado ao projeto de construção de uma identidade brasileira e foi elevado à condição de símbolo nacional – o que foi viabilizado através de sua domesticação e cooptação pelas classes dominantes representadas no Estado de Getúlio Vargas”. Noel percebe que o momento é de valorização do samba, como traço típico da cultura carioca e brasileira, e, consequentemente, do sambista, erigido a condição de artista, e cuja imagem deveria ser desvinculada dos protótipos do malandro, do vadio, tido como contraventor, e, portanto, alvo da perseguição da Polícia. Alguns compositores preferiam a marginalidade, negando-se a adotar o modelo burguês, pois não se identificavam com a classe média, ao contrário de Noel, originário desse segmento social.
Em sua composição, gravada em 1938, por Araci de Almeida, o sambista da Vila (cognome de Noel) adverte o compositor que se vangloria da imagem de infrator e boêmio: “Deixa de arrastar o teu tamanco/ pois tamanco nunca foi sandália/ tira do pescoço o lenço branco, / compra sapato e gravata/ joga fora essa navalha, que te atrapalha.” Aconselha o incauto a arranjar um amor e um violão, e conclui que “malandro é palavra derrotista/ que só serve pra tirar todo o valor do sambista/. Proponho ao povo civilizado/ não me chamar de malandro/ e sim de rapaz folgado.
Já o texto de Chico Buarque, elaborado para o musical “ Ópera do Malandro”, em 1977, em pleno período do regime militar, reflete justamente sobre a mudança social do conceito de malandragem, observando que a figura original do malandro, do contraventor, característica do bairro boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro, foi completamente absorvida e, a rigor, já não existia. O malandro da modernidade tem aparato oficial e é candidato a malandro federal, numa alusão aos espertalhões da política. No texto de Chico Buarque, o malandro se aburguesou, tem mulher e filhos e tralha e tal, e, segundo as más línguas, até chacoalha no trem da central.
O texto de Chico é irônico, sarcástico mesmo, descrevendo o malandro moderno como personagem das colunas sociais, portador de contrato, gravata e capital, e, ao contrário do malandro marginal, oriundo da periferia e das favelas, o malandro regular, profissional, nunca se dá mal. Ao contrário do outro malandro, daquela figura típica, do imaginário da Lapa, sempre fugindo da polícia, o malandro atual aposentou a navalha e tem seu retrato na coluna social.
Assim, enquanto Noel, no período precedente ao Estado Novo, no Governo de Vargas, sonha com a valorização social do samba e renega a identificação do sambista com o contravenção, pregando a absorção do modelo burguês, Chico Buarque ironiza a figura atual do malandro, que abandonou a Lapa e enquadrou-se na classe média, buscando a ascensão social, as vantagens da política e os benefícios do sistema capitalista, conseguindo escapar sempre das malhas do sistema legal. Ambos os textos, pródigos de representação e imaginário, constituem-se em documentos que permitem ricas assertivas sobre os valores sociais vigentes ao tempo de sua construção.
BIBLIOGRAFIA
HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. S.P: Leya. 2009.
MAXIMO, João; DIDIER Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasilia. Editora UNB. Linha Gráfica Editora. 1969.
TINHORÃO, José Ramos. Historia Social da musica popular brasileira. 2. Ed. S.P. Editora 34.2010.
http//blogconvergencia.org./blogconvergencia. Juliana Lessa. Samba e consciência de classe no Rio antigo. Junho, 10th, 2013.
WERNECK, Humberto. Chico Buarque. Tantas palavras. SP: Companhia das Letras. 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário