Tudo era cinzento naquele ambiente politicamente viciado do início dos anos 70.
Desde a implantação do Ato Institucional nº 5, vivíamos sob uma guerra surda e suja, em que nosso lado era vítima de "tiroteios" onde só o inimigo atirava e só a nossa turma morria.
Por Haroldo Lima*, especial para o Vermelho
Foto: Rádio 9 de julhoD. Paulo Evaristo Arns
As casas onde residíamos, os "aparelhos" onde escondíamos gráficas e outros pertences "estouravam" como eles diziam, e na seqüência companheiros "desapareciam". Sabíamos que foram mortos ou estavam nos suplícios das torturas. As torturas passaram a ser o tratamento rotineiro que era dado aos que faziam oposição ao regime ditatorial e que eram presos. O povo vivia atemorizado, amordaçado, encurralado, arrochado. Como diria o Chico Buarque, "falando de lado e olhando pro chão".
E tinha a turma que resistia, apesar disso e por isso mesmo. A natureza humana é assim. Se tem os covardes que tremem quando os blindados ocupam as esplanadas, tem os que se decidem mais ainda a tirá-los de lá, de qualquer jeito, custando o que custar. Estes lutam com diversas armas, mas a principal é sua vontade e determinação.
Não são ingênuos, contudo. Sabem que, se apanhados, a tortura é o mínimo que pode ocorrer, a morte é um talvez.
Por isso o acompanhamento da conjuntura é essencial, o cuidado com a organização, a percepção das novas forças que engordam o caudal dos resistentes.
Como tantos outros, adentrei à década de 1970 nesse ambiente tenebroso.
A noticia de que começara uma resistência guerrilheira na região do Araguaia nos enchia de animação. O Estadão furara o bloqueio da censura e publicara longa matéria sobre o assunto. A repressão recrudescera.
Em março de 1973, um brilhante estudante da USP, que militava na Aliança Libertadora Nacional (ALN), Alexandre Vanucchi, fora preso. A repressão divulgou que fora "atropelado" quando tentava fugir. Na verdade, fora morto na tortura. Era mais um. Mas dessa vez foi diferente.
O Cardeal de S. Paulo D. Paulo Evaristo Arns promoveu na Catedral da Sé de São Paulo um culto que chamou de "Celebração da Esperança", homenageando o estudante morto. Homenageando um "subversivo"? Era uma luz. Uma luz no fim do túnel, uma figura de destaque na sociedade brasileira que se levantava abertamente para dizer "não", para denunciar com seu gesto o terror que estava acontecendo sorrateiramente.
Mas o ambiente de arbítrio continuava. E pouco mais de dois anos depois, em outubro de 1975, novo crime foi perpetrado pela ditadura, com o assassinato do jornalista Wladimir Herzog nas dependências do Doi-Codi de São Paulo. Aí D. Paulo Evaristo elevou o tom do protesto.
Juntamente com o reverendo Jaime Wright, da Igreja Presbiteriana de São Paulo, e com o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, Dom Paulo Evaristo abriu as portas da Catedral Metropolitana de São Paulo e promoveu um Culto Ecumênico que aglutinou milhares de participantes, significando uma ampliação substancial das forças que se opunham à ditadura. O Culto teve enorme repercussão.
A nossa turma, que estava em confronto aberto com o regime, exultou. E eu, atento às possibilidades de que uma prisão pudesse me acontecer, informei à minha companheira Solange, que comigo vivia na clandestinidade: "se qualquer coisa me suceder e eu sumir, procure esse D. Paulo Evaristo e peça que ele ajude".
Não deu outra. Em dezembro de 1976, a repressão desabou sobre uma reunião do Comitê Central do PCdoB e cometeu a Chacina da Lapa. Matou três, prendeu cinco, eu no meio.
Nos dias seguintes, a cidade e o mundo tomaram conhecimento da chacina, souberam dos mortos, mas o Exército não revelava nem os nomes nem o paradeiro dos presos. Providências diversas foram tomadas, pelos familiares, pelos movimentos de defesa de direitos humanos e por políticos democratas. E nada. Os dias iam passando. Agentes da repressão forjaram em minha casa, nas vistas de minha família ali detida, uma "espera" de meu retorno. Eu já estava preso. Como não voltara, criaram a versão de que eu escapara.
Solange se lembrou do que eu dissera. E junto com advogados de fibra, Luis Eduardo Greenhalgh e Márcia, foram a D. Paulo. "Se Haroldo tivesse escapado já tinha dado sinal de vida", dizia Solange. E contudo, o Exército não reconhecia a prisão de ninguém.
D. Paulo, solícito atendeu à minha companheira e advogados. Pensou, balançou os prós e os contra e tomou uma iniciativa destemida e de alta eficiência. Chamou a imprensa e revelou que ele já estava com a lista completa dos que foram presos, que estava aguardando a confirmação oficial do Exército. Pouco depois o Exército divulgou a lista dos presos. Houve comemoração: eu estava preso, não morto.
Por ocasião dos 50 anos de Episcopado de D. Paulo, junto a minha voz com a dos que devem a ele a solidariedade militante na luta pela liberdade nas horas decisivas e desejo: longa, longa vida a D. Paulo Evaristo Arns.
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*Haroldo Lima é preso na Chacina da Lapa, em 1976. Membro do Comitê Central do PCdoB.
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