Economistas e cientistas sociais têm falado em uberização para abordar as transformações contemporâneas nas relações de trabalho. Quais as mudanças que esse processo implica?
Uberização é o nome que estamos dando para a emergência de um novo padrão de organização do trabalho.
Para dar uma visão histórica, podemos separar, na chamada sociedade urbana industrial, três formas de organização do trabalho: a primeira ganhou relevância a partir de 1910, o chamado fordismo, que representou a organização do trabalho em grandes plantas industriais. Isso dizia respeito à existência de um empregador com quantidades grandes de trabalhadores vinculados àquela empresa, em linhas de montagem que produziam do parafuso ao automóvel.
Nesse sentido, há certa homogeneização das condições de trabalho e das lutas dos trabalhadores, porque eles passavam a se encontrar sob o mesmo teto, submetidos às mesmas condições de opressão e exploração do trabalho.
Isso vai gerar um tipo de sindicalismo, que representa todos os trabalhadores, que vai construir os contratos coletivos de trabalho.
Esses sindicatos vão construir também partidos políticos que levarão aos legislativos as conquistas anteriormente estabelecidas no contrato de trabalho: o piso salarial estabelecido em contrato de trabalho vai se tornar posteriormente o salário mínimo na forma de lei para todos os trabalhadores, por exemplo.
A partir da década de 1970 temos um esgotamento do fordismo e o avanço do toyotismo, que também tem como referência a montagem de um automóvel.
A empresa vai se fragmentando no interior do processo produtivo de tal forma que no mesmo local de trabalho você passa a ter diferentes contratos de trabalho, reunindo empresas especializadas nessa parcialização da produção.
O importante, do ponto de vista das consequências para o trabalho, é que agora há uma prevalência da heterogeneidade, desigualdades das condições de trabalho.
Uma realidade são os trabalhadores contratados pela montadora, outra é a realidade dos que são contratados por empresas cujos sindicatos são menores, não têm a mesma capacidade de pressão e luta, como é o caso dos vigilantes, da limpeza, da segurança e outras partes constitutivas das peças [automotivas].
A partir da década de 1970, esse se torna um modelo hegemônico de organização do trabalho. Isto é verificado nos serviços também.
Um hospital que anteriormente contratava todos os trabalhadores de diferentes categorias cada vez mais passa a trabalhar com a terceirização, que é a fragmentação dos contratos: uma coisa são os contratados diretamente pelo hospital, outro são os prestadores de serviço.
O que estamos denominando de uberização é uma nova fase, que é praticamente a autonomização dos contratos de trabalho.
É o trabalhador negociando individualmente com o empregador a sua remuneração, seu tempo de trabalho, arcando com os custos do seu trabalho.
É um processo que na sua opinião representa uma transformação no mesmo patamar do que foi o fordismo e o toyotismo, em termos históricos?
Acredito que sim. O tempo vai dizer se isso se confirma, porque também depende das reações dos partidos, dos movimentos sociais.
É mais a emergência do que o padrão de fato. Vem de uma empresa de prestação de serviços que se coloca com sucesso em um período muito curto de tempo com a substituição da antiga forma de organização do trabalho no transporte individual, que é o táxi.
No meu modo de ver isso é apenas a ponta do iceberg, mas há uma grande possibilidade de se generalizar para todos os demais setores de atividade econômica.
Isso se vê mais claramente em alguns países, não? Na Inglaterra, por exemplo, há até pilotos de aeronaves que trabalham sob esse tipo de contrato...
Sim. Na Inglaterra tem o chamado contrato a zero hora, que diz que você tem que ficar disponível 24 horas para a empresa, que pode usar nada, mas você tem que estar disponível para ela e sua remuneração depende da sua disponibilidade.
No transporte é isso: você tem um contrato com a Uber e fica lá, disponível, porque quando surgir um chamado você se apresenta disputando com outros motoristas.
Nesse contrato a zero hora eu posso ser piloto de avião e, se surge a possibilidade de viajar, não está garantido que serei eu, tem outros que são concorrentes, dependendo da localidade.
Na Inglaterra existem espécies de agências de contratação onde as pessoas se inscrevem a partir das suas qualidades ocupacionais e ficam aguardando demandas que aparecem pela internet. Por exemplo: eu sou economista especializado em orçamento público.
De repente há uma demanda de uma definição comparativa de orçamento e eu me apresento e negocio as condições de trabalho e remuneração para um determinado momento.
Ou seja, o trabalhador passa a estar disponível para o exercício do trabalho sem mais a garantia que havia no fordismo, em que o salário independia das vendas da empresa.
Quando a empresa contrata o trabalhador, independentemente de ela produzir o automóvel e vendê-lo, decorrendo 30 dias o trabalhador tem direito a receber aquela remuneração.
O toyotismo já é outra circunstância em que o trabalhador vai se tornando associado ao ritmo de produção e venda, e sua remuneração e condições de trabalho dependem da produção e da venda. Se a empresa produziu menos, a sua remuneração é menor.
E com a uberização?
Neste caso não há garantia alguma. Se houver trabalho, você terá uma parte daquilo que você veio a realizar.
É uma total instabilidade, que não vai permitir ao trabalhador contribuir com o sistema de proteção social como no passado foi possível pelo fordismo e em grande medida ainda pelo toyotismo.
Agora ele não tem condições de garantir o pagamento da previdência se não sabe nem se vai receber salário.
Está exposto a um contrato de zero hora que pode ter uma hora, duas horas, dez horas, sem garantia alguma. Isso está ganhando uma dimensão crescente nos serviços, mas não deve ficar circunscrito a eles.
Como esse processo se relaciona com as mudanças que estão sendo propostas no bojo da reforma trabalhista atualmente no Brasil?
Eu acredito que o projeto de regulamentação da terceirização é a grande porta no Brasil para que se tenha a possibilidade de aquilo que hoje está quase circunscrito ao transporte individual ganhar maior espaço nas atividades como um todo.
O projeto que está no Senado generaliza a terceirização e, portanto, desobriga as empresas a contratarem da forma como conhecemos, que é o regime CLT. A ideia do fordismo é a ideia de que o salário se transforma num custo fixo, o trabalhador, exercendo ou não, tem direito à remuneração.
Com a uberização, o salário se torna um custo variável, ele só existe se de fato houver a realização daquele trabalho.
Em setembro o ministro do trabalho, Ronaldo Nogueira, anunciou que o governo pretende incluir na proposta de reforma trabalhista a ampliação das modalidades permitidas de contrato de trabalho pela CLT, com a criação dos contratos por produtividade e por tempo. Como a proposta se encaixa nesse processo?
É o mesmo padrão da flexibilização dos contratos de trabalho que nós tivemos nos anos 1980 e anos 1990.
Tivemos na gestão do Fernando Henrique Cardoso algumas experiências de flexibilização da jornada, do tempo de trabalho.
Agora é uma sofisticação, é um novo patamar da flexibilização em que você não estabelece mais a jornada de trabalho, mas sim critérios específicos, como é o caso da produtividade.
Se não consegue atingir aquele determinado patamar estabelecido previamente, você não faz jus ao valor completo, ganha uma parte dele.
Que consequências isso traz para a organização dos trabalhadores?
Ela leva a uma intensificação do trabalho e a um acirramento da competição entre os trabalhadores. É um processo que vem se dando ao longo do tempo com as transformações que o capitalismo opera.
Uma fábrica de margarina, por exemplo: no fordismo, em linhas gerais, havia uma esteira que ia passando e enchendo os potes com a margarina e os trabalhadores ficavam do lado, pegavam os potes e colocavam nas caixas. Havia supervisores que iam avaliando o trabalho de cada um. Se alguém precisa ir ao banheiro, o supervisor autorizava, ele ia, voltava e pronto.
Com o toyotismo, essa produção passa a ser dividida em equipes de quatro ou cinco trabalhadores que concorriam entre si: as que enchiam mais caixas ao final de um período eram beneficiadas.
Com isso, deixou-se de ter a necessidade de um supervisor – portanto o custo de alguém supervisionar – porque uma equipe concorria com outra.
Se você está numa equipe e começa a ir muito ao banheiro, a sua equipe vai ter menos eficiência do que as outras com as quais ela está competindo.
A equipe vai sugerir que você seja demitido e que seja trazido alguém que tenha condições de trabalhar no mesmo ritmo.
Com a uberização, há uma competição ainda maior entre os trabalhadores e quem estabelece ou avalia a sua continuidade nesse tipo de trabalho é o cliente, o comprador.
Ao invés da união buscando o acordo coletivo, o trabalhador está orientado para o acordo individual, a competição com seus pares.
Obviamente isso torna ainda mais fracos os trabalhadores diante daqueles que os contratam. Esse rebaixamento não é só econômico, mas também moral e ético.
Em que sentido?
No fordismo e até mesmo no toyotismo havia uma concepção de classe trabalhadora, a consciência de que, quer seja eu um médico, um operário, um jornalista ou um professor, sou antes de tudo um trabalhador.
O que nós passamos a ter na verdade é uma transição para esta ideia não mais de trabalhador, mas de empreendedor.
Você pode ganhar como trabalhador, mas tem os anseios de classe média consumista. É uma disputa ideológica.
Se você não admite ser trabalhador, as lutas dos trabalhadores vão se perdendo. Você é da classe média e é o seu esforço que vai fazer com que você alcance os resultados.
A propaganda ideológica mostra que alguns de fato ficarão em situação melhor, mas serão uma exceção num conjunto grande, legitimando um grau de desigualdade ainda mais intenso.
Mesmo sob o fordismo, a ética da meritocracia leva a uma legitimação de salários diferenciados apenas porque alguns têm anos de estudo a mais do que outros.
Agora, a legitimação não se dá porque você estudou mais do que eu, mas porque você se esforça mais. No passado, o rebaixamento das condições de trabalho levou a uma reação, um estranhamento dos trabalhadores.
Com esta dimensão individual de hoje, o resultado não é a rebeldia, mas a depressão que vai se acomodando nessa profunda precarização.
Isso termina não levando a uma luta organizada, salvo por explosões de caráter anárquico. Essa explosão de manifestações que se deram de forma coletiva na primeira metade dessa década no Brasil, no Oriente Médio, nos Estados Unidos, na Espanha surge espontaneamente, de uma profunda insatisfação, mas do ponto de vista organizativo não resulta em nada, não encaminha esta insatisfação para alguma solução.
Quais as possibilidades de espaços de representação dos trabalhadores neste cenário?
Do ponto de vista histórico, eu vejo com dificuldade as instituições que temos hoje – partidos políticos, sindicatos, associações de maneira geral, instituições do nascimento da sociedade urbana industrial – responderem a essa nova forma de organização do trabalho.
Hoje temos quase que uma oligarquia sindical. Há uma elite, que são os trabalhadores sindicalizados de grandes empresas, que reproduzem, guardadas as devidas proporções, o traço do fordismo do passado.
São instituições importantes, que têm instrumentos de mobilização, mas não têm massa a mobilizar. Chegamos a ter até o final dos anos 1980 quase um milhão de trabalhadores bancários e tínhamos algo em torno de 200 mil trabalhadores terceirizados que serviam aos bancos.
Hoje temos ao redor de 400 mil bancários e 1,6 milhão de trabalhadores terceirizados. Quem está organizado são os bancários, que fazem greves, mas é algo que ocorre sem a capacidade de envolver o conjunto de todos os trabalhadores que estão vinculados aos serviços financeiros e bancários. É uma parcela muito pequena.
Um exemplo aqui de Campinas: a cidade tem dez shopping centers que reúnem 21% da força de trabalho, 170 mil pessoas.
Esses 21% não têm nenhuma forma de organização e estão reunidos no mesmo espaço, com não sei quantos contratos diferentes. Isso não dá organização porque são contratos individuais praticamente.
Esses trabalhadores estão submetidos a um regime de profunda intensificação e extensão do trabalho, estão trabalhando mais e de forma mais intensa.
Eles têm uma série de anseios, doenças profissionais, e isso não faz parte da pauta das instituições tradicionais de representação de interesses. Por isso não tem diálogo e por isso a dificuldade de representá-los.
Este me parece que é o principal desafio. Quem conseguir encontrar a fórmula que vai permitir chegar a esses trabalhadores terá a chave de um patamar muito superior de mobilização.
Tendo em vista os resultados das eleições municipais, que favoreceram partidos como o PMDB e o PSDB, bem como a ampla maioria obtida pelo governo na recente aprovação da PEC 241 na Câmara dos Deputados, que projeção você faz para a possibilidade de mobilização contra a reforma trabalhista que o governo Temer pretende apresentar no segundo semestre de 2017?
A esquerda no Brasil certamente sofreu uma derrota, percebida pelos fatos do próprio impedimento da Dilma [Rousseff] e os resultados das eleições de 2016.
Mas essa derrota não é o fim da historia, é um capítulo. Essa derrota poderá ser permanente ou apenas pontual dependendo de como a esquerda terá a capacidade de entender esse movimento e responder a ele.
A resistência a essa nova direita que se estabelece no Brasil se dará de forma muito desigual e por isso acredito que, mais do que a resistência, cabe à esquerda a constituição de um receituário diferente do que esse governo representa, que é o neoliberalismo.
Um programa econômico que diga não à recessão, que estabeleça o mais imediato possível retorno ao crescimento econômico.
O impedimento da Dilma em 2016 representou o encerramento de um ciclo político da Nova República, marcado basicamente por governos de conciliação de classe, uns mais do que outros.
A imagem que eu tenho do governo Temer é o estabelecimento de uma forma de governo classista, com pouco apelo a conciliar com mais classes.
Mas sua própria força é também sua fraqueza porque os resultados que ele busca atingir dificilmente se apresentarão na segunda década do século 21.
Não há condições de o país voltar a crescer com essas opções que estão sendo feitas.
Por quê?
O tempo vem confirmando as teses que avaliavam previamente os equívocos da ortodoxia.
De certa maneira já foi chamada atenção em dezembro de 2014 que a opção pela recessão não levaria ao equilíbrio das contas públicas. Pelo contrário: o que temos visto é um aprofundamento desse quadro.
O governo Temer não abandonou a política que já vem do governo Dilma e aposta numa piora, porque a aprovação da PEC 241 não levará a uma recuperação econômica, mas possivelmente a uma depressão.
Ao cortar o custeio e o investimento público, especialmente o gasto social, teremos uma redução no dinamismo da economia brasileira.
Hoje, a cada quatro reais que circulam na economia, um real provém do gasto social. O gasto social se traduz em consumo: alguém que ganha Bolsa Família, previdência social, termina transferindo essa renda para o consumo.
Podemos dizer que quase 50% hoje do dinamismo da economia brasileira provêm do gasto social.
Na medida em que você corta o gasto social, vai reduzindo esse componente de dinamismo da economia brasileira, a menos que se coloque outro para ocupar esse espaço.
Mas qual seria o outro? Seria o setor externo? Será que as exportações têm um horizonte de expansão no mundo?
Não é verdade. No capitalismo as empresas não investem porque o custo é baixo. Elas compram se há possibilidade de fazer girar aquele investimento, se vai ter consumo, demanda.
As empresas vão contratar mais trabalhadores se tiver demanda para os seus serviços, se tiver gente querendo comprar. A empresa não vai contratar mais apenas porque o trabalho ficou mais barato. Isso é confirmado pela própria realidade.
Basta ver o que foram os anos 1990, quando a terceirização e a defesa da flexibilização do mercado de trabalho ganharam impulso, houve as privatizações, a Reforma da Previdência.
Essas mudanças não foram acompanhadas de crescimento econômico e geração de emprego, pelo contrário: elas aprofundaram o desemprego e a precarização do trabalho.
O papel da esquerda não é apenas reagir e resistir, mas fundamentalmente dizer o que pode e deve ser feito de forma alternativa. Porque é isso, no meu modo de ver, que vai dar maior capacidade de galvanizar forças políticas contra esse projeto que está em curso no Brasil
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