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terça-feira, 22 de setembro de 2015

O Papa que dá à crise o seu nome



Editorial
Carta Maior
20/09/2015

Francisco afirma que o mundo vive uma terceira guerra mundial, e resume o que entende por paz: 'nenhuma família sem teto, nenhum ser humano sem pão'. 


por: Saul Leblon


Wikipedia

Uma das características que impressionam no Papa, pelo ineditismo em relação à norma dominante, é a sensação de que ele está sempre chegando.  
 
Francisco é o dado novo na mesa rasa, previsível, da policrise do nosso tempo, ao mesmo tempo uma crise do capitalismo e da civilização, cujo vórtice ambiental ameaça a própria sobrevivência da humanidade.
 
É disso que ele trata em sua primeira encíclica ‘Laudato si’. 
 
E o faz de forma desabrida, como nas suas primeiras declarações ao chegar em Cuba, neste sábado (leia a cobertura de Carta Maior nesta pág; direto de Havana). 
 
Poucos minutos depois de seu desembarque, como o terceiro papa a pisar em solo cubano, mas o primeiro a abraçar a luta pelo fim do embargo norte-americano, disparou: ‘O mundo vive uma terceira guerra mundial por etapas. Precisamos de conciliação’.
 
A conciliação que ele tem pleiteado é aquela baseada na maior igualdade, na menor obsessão consumista, no fim do fetiche do dinheiro, no resgate dos excluídos, na repartição da riqueza, na reconciliação entre as formas de viver e de produzir e a natureza.
 
O nome da crise é capitalismo turbinado, diz o idioma religioso de Francisco.
 
Em outubro de 2014, ele promoveu um Encontro Mundial de Movimentos Populares nas dependências do Vaticano.
 
O desassombro não ficou na forma. 
 
Ao falar aos participantes, entre eles o líder do MST, João Pedro Stédile, que saiu convencido de que o Papa estava à esquerda dos presentes, resumiu o que entende por conciliação e reconciliação: ‘Nenhuma família sem teto; nenhum agricultor sem terra; nenhum ser humano sem pão’. 
 
Mas foi além.
 
Como se fora uma espécie de Polanyi de batina, criticou o comércio dos recursos essenciais: o solo e a água, por exemplo,
 
O filósofo e economista húngaro Karl Polanyi (1886/1964) autor de ‘A grande transformação’, advertiu pioneiramente para esse risco.
 
Elementos essenciais ao equilíbrio da vida e à construção do bem comum, como o trabalho, a terra --e também o dinheiro, disse Polanyi, filho de húngaros, nascido em Viena, não deveriam ser submetidos a um liberalismo subordinado à cobiça do interesse privado. 
 
As evidências do nosso tempo mostram que ele tinha razão.
 
Nesse mundo onde tudo o que é rentável deve ser desregulado, para a livre mastigação dos mercados, os recursos que formam as bases da vida na terra, e o ‘recurso’ humano, encontram-se ameaçados pela inconciliável relação entre o capitalismo, a temperança e o equilíbrio ambiental. 
 
Há dois anos e meio do seu Papado, iniciado em março de 2013, Francisco parece que acabou de entrar na sala.
 
É a visita que a qualquer momento pode trazer novidades.
 
Não é truque, nem miragem.
 
Ao contrário daquilo que se ouve da maioria dos líderes convencionais, seu discurso escapa à circularidade dos interesses e reiterações paralisantes.
 
A renovação que expressa ganha interesse ecumênico, para além das fronteiras dos vaticanistas, na medida em que envolveu uma superação dos limites e ambiguidades do próprio Cardeal Jorge Mario Bergoglio. 
 
Longe de ser retórica, reflete a circunstância histórica de quem soube captar toda a extensão da suas responsabilidades e a emergência dos dias que correm. 
 
Um ciclo está se fechando na sociedade capitalista como a conhecemos no século XXI.
 
A supremacia insaciável da lógica financeira perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
 
O dinheiro celibatário, que se reproduz à margem da produção e do bem comum, coroou esse esgotamento em uma crise capitalista de superprodução de capital fictício.
 
O impasse coloca uma disjuntiva extremada: ou uma desvalorização épica da riqueza financeira predadora, ou a imposição, ao seu redor, de uma desigualdade exacerbada, vendida como  o novo normal da humanidade.
 
Diante do dilúvio, Bento VI,  seu antecessor, resignou-se ao encolhimento da fronteira cristã, atrás de um muro alto de expurgo e purificação doutrinária.
 
Renunciou.
 
Francisco entendeu a dimensão terminal da encruzilhada entre a entropia da finança desregulada e a ‘salvação’ que não prescinde do chão firme na terra.
 
Foi à luta. Que é ao mesmo tempo, por igualdade e libertação do garrote ideológico.
 
Por isso dá às coisas protegidas pela dissimulação midiática e plutocrática o seu nome.
 
O problema não é apenas que instituições internacionais,  partidos e lideranças passaram a incorporar políticas inadequadas, como a desregulamentação  indiscriminada e a abertura das contas de capitais a qualquer custo em vidas humanas e dilapidação ambiental.
 
O problema principal é a falta de capacidade política par refletir sobre o colapso correspondente fora da ‘caixinha’, isto é, fora do consenso conservador ancorado em arrocho e desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.
 
Em 2011, em plena curva ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e inglês) analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados pelo FMI nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial. 
 
Praticamente todos afiançavam as boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para espatifar a ordem neoliberal.
 
Pior: 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão. 
 
Dados de então mostravam que 60% dos cargos de chefia no FMI eram ocupados por profissionais de países anglo-saxões. Nada menos que 63% dos economistas haviam obtido seu doutorado em universidades americanas.  
 
Não por acaso, representantes das economias em desenvolvimento consideravam que esses trabalhos e seus autores apenas reiteram um conjunto prevalecente de ideias e receitas, sem espaço para visões alternativas. 
 
A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise é parte constitutiva da encruzilhada atual.
 
Por isso Francisco estremece o chão como um touro selvagem quando dá às coisas o seu nome. Por isso também políticos e governantes lhanos afundam na areia movediça quando recitam a bula do veneno para tratar dos seus efeitos.
 
O que chamamos de crise, hoje, é a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda mundial, e sobretudo da social-democracia europeia, pelo cânone neoliberal.
 
Como isso se transforma no interdito político que faz do pensamento livre do Papa Francisco uma usina  transgressora carregada de frescor?
 
O economista Robert Kuttner explica assim a asfixia do esclarecimento e da razão diante de uma crise que empurra a humanidade para o impasse: ‘É uma questão do poder. Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos". 
 
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização dessa bases, redundou no paradoxo de uma crise sistêmica do capitalismo que não gera forças de ruptura capaz de supera-la.
 
O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.
 
Ou não é essa transferência leonina que se assiste hoje no Brasil, mas também na Grécia, Espanha, Itália, Portugal, França etc etc
 
O déficit de democracia emerge, assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em contraposição à hegemonia capilar, estrutural, midiática e institucional acumulada pelo capital financeiro.
 
É nesse ambiente de ar quase irrespirável que ganha singularidade faiscante a figura de um Papa que não desvia o olhar diante do que vê e manifesta a sua repulsa diante do espetáculo.
 
Apenas um governo parece ter assumido coerência equivalente.
 
Ao devolver ao poder plebiscitário da sociedade a decisão quanto ao passo seguinte da crise que levara a Islândia à bancarrota, em 2009, seu presidente, Ólafur Grímsson, declarou, à moda Francisco: ‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’. 
 
Ser uma democracia, não um anexo do sistema financeiro é o que pode ainda devolver aos cidadãos a responsabilidade compartilhada pelas escolhas do seu destino e o comando do desenvolvimento em nosso tempo. 
 
A blindagem ideológica do neoliberalismo –e o evidente esgotamento do seu arranjo-- ainda não foram suficientes para  alterar a condução da crise justamente pela tímida delegação das decisões ao povo e a falta de uma contrapartida de coordenação internacional desse enfrentamento. 
 
O que se assiste por enquanto é a degradante marcha em sentido contrário. 
 
O fatalismo construído ao longo de décadas de recuos, e o correspondente desarmamento organizativo que se seguiu, explicam a sobrevida de uma  hegemonia cuja base objetiva esfarelou.
 
O esgotamento da margem de manobra na economia não dispõe de um contrapeso à altura no ambiente político.
 
O desenlace permanece em aberto em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda o protagonista capaz de virar a página do calendário.
 
O Brasil faz parte desse salto parado no ar.
 
E é pelo menos arriscado apostar que o terceiro turno em curso, marcado pelo passo de ganso golpista, cederá a uma negociação branda entre concessão e indulgência.
 
A busca do impossível – arrochar para crescer, a contração expansionista—  faz água em todas as latitudes.
 
Oximoros -- contradições em seus próprios termos--  refletem o esgotamento de uma agenda, que só tem a oferecer a estabilidade inspirada na paz dos cemitérios.
 
Nesse novo  normal –para sempre ou por um prazo sem fim--  nada se move, exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento  do capital fictício e a incerteza diuturna sobre tudo em todos os lugares.
 
Mais que isso.
 
Um conjunto bíblico de sobras  humanas passa a ser expelido pelo sistema cujo êxito gera a própria danação. 
 
Trata-se de uma entropia estrutural à engrenagem capitalista, cada vez mais clara na crise iniciada em 2008.
 
A eficiência acumulativa deprecia o valor adicionado ao promover o descarte do componente humano que impulsiona a riqueza e gera a sua própria obsolescência, ao mesmo tempo e com igual intensidade.
 
Sobra o ponto de fuga do capital fictício que se empanturra de bolhas à margem da produção e às expensas das dívidas públicas e dos direitos sociais, decepados para deslocar recursos ao rentismo.
 
Não há escolha fácil nesse ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
 
Mas a história não é fatalidade.
 
O que importa perguntar aqui é o que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade do seu cardinalato na Argentina?
 
Certamente seria uma figura de baixo relevo na desordem mundial; um pequeno conservador na cena de um mundo extremado, que busca de uma nova identidade para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
 
Seriam, enfim, tudo o que o cristão que agora reza missa em Cuba de olho no fim do embargo americano, decidiu não ser e não é.
 
A mutação processada na travessia de Bergoglio para Francisco oferece uma lição da inexcedível pertinência à encruzilhada brasileira nos dias que correm.
 
Só a determinação política de superar as amarras das circunstâncias pode alterar a circularidade de um processo em que a rendição da vítima é o lubrificante dopoder opressor.
 
O espaço estreito e perigoso das escolhas na história é a variável autônoma que restou nesse redil paralisante.
 
Parece pouco? 
 
Francisco, o Papa que parece que acabou de chegar, mostra o quanto existe de potência nessa condição.





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