O pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980), o maior dramaturgo brasileiro, se assumia como “reacionário” e apoiou a ditadura militar até descobrir que a tortura não era só lenda –seu filho, Nelsinho, militante de uma organização clandestina, foi preso e torturado e ficou na cadeia de 1972 até 1979. Nelson morreria no ano seguinte. Apesar de ser um anticomunista ferrenho, o escritor teve muitos amigos esquerdistas e comunistas, como João Saldanha, e inclusive interveio junto aos militares para tirar alguns da prisão. Em 1979, voltou-se contra a ditadura e participou da campanha pela anistia.
A obra teatral de Nelson, por outro lado, foi alvo constante da censura durante quase toda a sua vida por desafiar a moral, os bons costumes e a igreja, o que não condiz muito com o perfil de um “direitista”. Estas nuances fizeram com que alguns críticos teatrais, como Sábato Magaldi, se tornassem reticentes sobre o que há de real e de pilhéria no “reacionarismo” assumido de Nelson.
“Um dia será necessário rever o epíteto de reacionário que o próprio Nelson se afixou”, escreveu Magaldi. “Na verdade, há muito de feroz ironia nesse qualificativo. Porque Nelson Rodrigues foi reacionário apenas na medida em que não aceitou a submissão do indivíduo a qualquer regime totalitário.” No fim, sua crítica ao totalitarismo dos regimes comunistas liderados pela extinta União Soviética estava correta e os esquerdistas de então é que estavam equivocados em apoiá-lo.
Na biografia O Anjo Pornográfico, o escritor Ruy Castro oferece ao leitor as inúmeras facetas do dramaturgo e cronista, e algumas delas simplesmente não ornam com o estigma de reacionário que deu a si mesmo. Nelson Rodrigues foi, por exemplo, pioneiro em denunciar o racismo no País, coisa que a direita brasileira até hoje nega existir. Escreveu O Anjo Negro, em 1948, para seu amigo Abdias do Nascimento (1914-2011), que acabou impedido de representar o papel principal: o Teatro Municipal exigiu um branco com a cara pintada de graxa no lugar, para revolta de Nelson.
Lamentavelmente, quase 35 anos após sua morte, Nelson Rodrigues virou ídolo de jovens conservadores que nunca leram sua obra e o conhecem apenas pela frase “sou reacionário: minha reação é contra tudo que não presta”. Mas será que eles sobreviveriam diante de um filme ou peça de teatro baseados em Nelson? Será que Nelson Rodrigues tem realmente algo a ver com o ideal reaça de Família, Tradição e Propriedade? Duvido.
Escolhi seis peças de Nelson Rodrigues para testar até onde vai a “adoração” do neoconservadorismo brazuca por ele. Vejamos.
1. O Beijo no Asfalto (1960)
Um moribundo atropelado pede a um passante, Arandir, um beijo. O ato de caridade é transformado pela imprensa sensacionalista e por um delegado de polícia num escândalo. O sogro de Arandir insinua o tempo todo que ele é homossexual e parece ter uma relação incestuosa com a filha, mas no final se revela apaixonado pelo próprio genro.
(Cena do filme O Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto, 1980)
2. Bonitinha, Mas Ordinária ou Otto Lara Rezende (1963)
Maria Cecília, menina rica, simula uma farsa para realizar a fantasia sexual de ser estuprada por cinco negros enquanto grita o apelido do cunhado, “cadelão”. Sua família, porém, pretende esconder o fato e tenta subornar o contínuo da empresa, Edgard, para que se case com a patricinha e restaure sua “honra”. Enquanto isso, Ritinha, a mulher por quem Edgard é apaixonado, finge ser professora, mas é prostituta.
(Cena de Bonitinha, Mas Ordinária, de Braz Chediak, 1981)
3. Álbum de Família (1945)
O pai, Jonas, gosta de desvirginar adolescentes para aplacar o tesão na própria filha caçula, Glória, e, ao que tudo indica, é correspondido. O filho mais velho também se sente atraído pela irmã, ao mesmo tempo que o segundo irmão é apaixonado pela própria mãe, dona Senhorinha. A matriarca, por sua vez, ama secretamente o terceiro filho, Nonô.
4. Toda Nudez Será Castigada (1965)
O viúvo Herculano, de uma família conservadora e religiosa, casa-se com uma prostituta, Geni. Enquanto mantém o casamento com Herculano, Geni o trai com o próprio enteado, Serginho, por quem está apaixonada. O rapaz acaba fugindo com um ladrão boliviano por quem fora estuprado na cadeia.
(Cena do filme Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor, 1972)
5. Os Sete Gatinhos (1958)
A família Noronha é uma família normal de classe média do Grajaú. A aparente normalidade, porém, esconde um segredo: as quatro filhas do casal Aracy e seu Noronha se prostituem para bancar o colégio interno e o enxoval da caçula, Silene, de 16 anos. Até que se descobre que Silene de inocente não tinha nada…
6. Asfalto Selvagem ou Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados
A adolescente Engraçadinha seduz o primo Silvio na noite do seu noivado com outra prima, Letícia. Mais tarde, descobre que Silvio é na verdade seu irmão. Letícia se revela mais interessada em Engraçadinha do que no próprio noivo, e tenta beijá-la à força. Na segunda parte da história, Letícia tenta seduzir a filha de Engraçadinha, Silene.
***
Agora me diz: você consegue imaginar Jair Bolsonaro assistindo a uma peça ou filme destes? Os Revoltados Online? Eduardo Cunha? Marco Feliciano? O jovem Kim Kataguiri, coitado, ia ficar assombrado. Nelson Rodrigues era anticomunista, sim. Mas, para mim, sua obra está mais para Marcha das Vadias do que para Marcha Para Jesus.
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