O Globo
No vídeo, policial faz disparo e coloca arma na mão de adolescente morto em operação
RIO — Foram cerca de três minutos. De filme de terror. No chão, está o corpo de um jovem numa poça de sangue. Cinco PMs podem ser vistos. Três estão mais próximos do adolescente — conhecido como Pintinho, pardo com cabelos descoloridos, que ainda estaria vivo — e dois, mais afastados. Eles alteram o local do crime como se ajeitassem o cenário de uma gravação. O “confronto” está prestes a começar. Um dos PMs mais distantes da cena principal dá um tiro para o alto. Um outro, ajoelhado, pega uma arma que, depois de limpa, é colocada na mão do baleado e disparada. O quase morto dá um, dois tiros, o que deverá garantir as marcas de pólvora na pele. Feito o simulacro, o policial joga a mão inerte do suspeito, cuja vida se esvaía. Fim.
A farsa, no entanto, ocorrida nesta terça-feira no Morro da Providência, no Centro, foi logo descoberta, graças a um vídeo feito por moradores. As imagens expuseram uma polícia violenta e corrupta, que ainda resiste ao programa de pacificação. Todos os PMs já foram presos administrativamente, por fraude processual. Na Justiça, deverão responder também por homicídio.
O assassinato público de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, ganhou as redes sociais, e as imagens chocantes amplificaram seu alcance. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, repudiou, por nota, a ação dos PMs e determinou rigor nas investigações, com “punição exemplar dos responsáveis’’. O porta-voz das UPPs, coronel Ivan Blaz, foi categórico ao afirmar que a acusação contra os policiais, lotados na unidade do morro, merecia “punição imediata”.
Mais cedo, antes de o vídeo ser divulgado, o comando da UPP da Providência havia informado que policiais faziam um patrulhamento de rotina na localidade conhecida como Pedra Lisa, por volta das 9h, quando se depararam com criminosos armados, que dispararam contra a equipe. Ainda de acordo com o comunicado oficial, Eduardo Felipe tinha sido atingido e não resistira aos ferimentos. Com ele, teriam sido apreendidos uma pistola 9mm, munição e um radiotransmissor.
O flagrante, feito por dois moradores do Morro da Providência, um homem e uma mulher, conta o que seria a verdadeira história do que aconteceu. Em determinado momento, ela sugere a ele:
— Grita “assassino!”.
E a “morte em confronto” continua a ser engendrada. No diálogo entre os dois moradores, que acompanha o vídeo, eles afirmam que o rapaz fora morto apesar de ter se entregado. O homem afirma:
— Ele levantou a mão e o “cana” deu de queima-roupa. Olha lá, mexendo no garoto, mexendo no garoto.
Apavorado, ele afirma que continuará filmando porque acha que os policiais vão deixar Eduardo Felipe, a quem se refere como Pintinho, morrer.
— Minha perna está tremendo — admite, ao perceber que a morte acontecerá diante de seus olhos. — É a primeira vez que eu vejo alguém morrer. Novinho, que Deus o tenha.
O promotor Paulo Roberto Mello Cunha, da Auditoria Militar, que já se reuniu para tratar do caso, disse nesta segunda-feira que as imagens revelam de forma contundente uma fraude processual, apontando ainda para um caso de homicídio.
— Uma fraude processual como essa, evidentemente, já indica que ocorreu um homicídio e que não houve confronto — afirmou.
Depois de prestarem depoimento na 4ª DP (Praça da República), os policiais seriam levados para a 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM), que ficará responsável pelas investigações. A Corregedoria Interna da Polícia já instaurou inquérito sobre o caso. Já a Divisão de Homicídios da capital ficará responsável pela investigação sobre a morte do adolescente.
— A perícia no local já foi refeita — disse o delegado Rivaldo Barbosa, titular da DH. — O vídeo mostra flagrantemente uma fraude perpetrada pelos policiais, que será apurada juntamente com a possibilidade do crime de homicídio. A gente não vai descartar a possibilidade de a fraude ocultar uma execução. Essa é a nossa linha de investigação.
Muito abalado, o pai de Eduardo Felipe disse nesta terça-feira, ao deixar o IML, que não pensa em mover uma ação na Justiça contra o estado:
— Eu só quero enterrar meu filho em paz. Não quero mais nada.
De acordo com a Polícia Civil, o adolescente tem três anotações criminais: por tráfico de drogas, injúria e ameaça. No entanto, um tio do adolescente, que se apresentou como advogado, afirmou que o jovem não tinha envolvimento com o crime organizado. Segundo ele, o rapaz, que tinha oito irmãos — seis por parte de pai —, era estudante da rede estadual.
O enterro acontecerá nesta quarta-feira, às 13h, no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Nesta terça-feira mesmo, um grupo de moradores do Morro da Providência já se mobilizou e criou uma página no Facebook para exigir justiça para o caso.
'EU VOU FILMAR, ELES ESTÃO DEIXANDO O MOLEQUE MORRER'
Durante a gravação do vídeo, os dois moradores da Providência que registraram o flagrante narram, em tom emocionado, cada ação dos quatro policiais acusados do crime.
“Dá pra gravar, puxa o zoom, puxa o zoom’’, diz um homem. A mulher responde: “Grita ‘assassino!’”. Em seguida, ele diz: “É o Pintinho, estou tremendo, olha eles mexendo no moleque, olha aí, rapá, eu vi o moleque falando ‘ai, ai, para, para’’’.
A narração continua com a mulher afirmando: “É o Pintinho... Tá dando pro alto, a polícia” (Um PM dispara)’. O homem diz: “O garoto tá lá no chão, ele fez ‘ai ai ai’, eu vi, levantou no primeiro tiro (...). Tá lá o garoto no chão cheio de sangue. (...) Ele levantou a mão e o cana deu de queima-roupa, olha lá, mexendo no garoto, mexendo no garoto”.
A mulher: “Assassinos, assassinos.” (Repete baixo para não ser ouvida)
Homem: “Eu tô com a minha perna tremendo. Calma, eles estão mexendo nele. Minha perna está tremendo”.
Mulher: “Eles vão deixar o garoto morrer...”
Homem: “Eles estão mexendo na pistola... Eles tão dando tiro (...), botou outro tiro em cima do moleque”.
Mulher: “Ai, mentira”.
Homem: “Eu vou filmar, eles estão deixando o moleque morrer...”
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