A crise ofuscou tanto o cenário que pouca gente percebeu uma mudança sensacional nos rumos do comunismo brasileiro. 

Uma mulher de 49 anos assumiu o comando nacional do mais maduro partido de esquerda, o PC do B, com um desafio de assustar os homens mais tarimbados no exercício do poder: articular uma frente que salve o mandato da presidente Dilma Rousseff, aponte caminhos num país com a economia em frangalhos e vença a crise política que ameaça a democracia.

“Peguei logo em bomba, como se fala no Recife”, diz a deputada pernambucana Luciana Santos, catapultada ao olho do furacão pelos novos ventos que reoxigenaram o partido de 93 anos, que planejou a Intentona de 1935, organizou, foi massacrado na Guerrilha do Araguaia e está umbilicalmente ligado aos conflitos que marcaram a história da República. As armas agora são outras.

Luciana Santos tem uma visão realista do momento político e, se por um lado exorta os partidos da base a se unirem para reagir com propostas e mobilizações populares ao movimento golpista em curso, por outro, tem os pés enraizados na democracia e olha para o futuro com propostas modernas e viáveis.

 É dela, por exemplo, a iniciativa de chamar para um encontro que inicia esta semana a comunidade científica e quem mais tem a dizer sobre o setor, para colocar a tecnologia e a inovação como alavancas do que seria uma economia socialista.

Também articulou e é signatária do documento “Sugestões à Agenda Brasil”, elaborado na semana passada e subscrito por 15 partidos da base do governo na Câmara – as exceções foram o PDT e o PMDB -, que lista, em 11 pontos que vão do combate a corrupção às reformas estruturais, saídas para superar a crise. 

Ela parte de um diagnóstico sobre a doença que ataca a República.

Só falta um Lacerda

“A crise política é mais grave. É ela que alimenta a crise econômica”, disse a deputado em entrevista ao Marco Zero. Para a primeira mulher a comandar o PC do B, resguardadas as proporções, o conturbado momento brasileiro, turbinado pela onda de denúncias de corrupção alimentada pela Operação Lava Jato, tem contornos semelhantes com os últimos momentos da Era Vargas. “Falta um Lacerda”, complementa Luciana, numa referência ao ex-governador Carlos Lacerda cuja campanha, lastreada no “mar de lamas” sob o qual flutuava o Palácio do Catete, só terminou com o suicídio do ex-presidente Getúlio Vargas, em agosto 1954.

A crise atual, segundo ela, nasceu do inconformismo do PSDB com o resultado das eleições do ano passado e evoluiu para uma ofensiva sem limites para “deslocar” a presidente Dilma Rousseff do poder, ainda que para isso seja necessário pisotear a Constituição e interromper um processo democrático construído na resistência contra uma ditadura que durou 21 anos.

“A eleição, acirrada e polarizada, gerou contornos de muita intolerância e um pensamento conservador, que já existia, mas que agora mostra a cara. Toda estratégia da oposição foi montada na instabilidade e na imprevisibilidade e ultrapassa todas as etapas da legalidade. Há traços fortes de golpismo quando se tenta um impeachment sem base”, afirma.

A diferença entre as duas últimas grandes crises políticas – a que deu no suicídio de Getúlio, em 1954, e o golpe civil-militar de 1964, este reivindicado à época até em editoriais dos grandes veículos de comunicação -, na visão da deputada Luciana Santos é que agora os conspiradores encontram guarida num novo protagonista, o judiciário.

Estado policialesco

“Não existe imparcialidade. No judiciário há uma posição clara no campo político. Os atores têm posições políticas e dão tratamento diferente em casos iguais”, alfineta a comunista.

 Um dos exemplos, segundo ela, foi a recente denúncia feita pelo doleiro Alberto Yousseff, que em depoimento na CPI da Petrobras acusou o líder da oposição, o senador tucano Aécio Neves, derrotado por Dilma em 2014, de ter recebido propina das empreiteiras da Lava Jato. As informações foram desprezadas tanto pelos órgãos de controle quanto pela mídia.

Luciana Santos lembra que o combate à corrupção é uma das bandeiras da esquerda, mas defende que seja feito de forma imparcial e com respeito ao estado de direito. 

Ou seja, que se acuse, se denuncie e se condene com provas, sem o que, conforme observa, não há justiça. A interferência excessiva do judiciário em assuntos de outros poderes, segundo ela, são prenúncios do “estado policialesco” onde, ao contrário de uma democracia com regras, inverte-se o ônus da prova e todos se tornam culpados.

“A judicialização da política é um risco à democracia. Usam a Lava jato como arma política. A divulgação seletiva dos fatos desvirtuou a operação”, alerta a deputada. 

Luciana lembra que, embora bombardeada diariamente através de denúncias que saem de órgãos oficiais como o Ministério Público Federal, Dilma acatou o resultado da eleição interna no órgão e reconduziu ao cargo o procurador Geral da República, Rodrigo Janot, o mais votado de uma lista tríplice encaminhada como sugestão ao Palácio do Planalto. “São Paulo e Minas não seguem a lista tríplice apresentada pelo Ministério Público”, cutuca, referindo-se aos redutos tucanos.

 O atual Procurador de Justiça de Minas foi indicado pelo governo anterior ao atual, do PT.

Luciana Santos chama a atenção para um fenômeno típico da democracia brasileira, que é a diferença explícita entre governo e poder, este ainda nas mãos das mesmas elites que historicamente ditaram os rumos da politica. 

Segundo ela, a vitória de Lula e Dilma nos últimos 12 anos, permitiu o acesso da esquerda e das classes populares a um pequeno espaço do Estado. “Nós chegamos ao governo, mas o poder ainda está muito distante”, ressalva.

Ninho dividido

Embora o predomínio da elite seja um forte fator de controle e, ao mesmo tempo, gerador de instabilidade ao governo de esquerda, a presidente do PC do B não vê clima para aventura golpista por duas razões básicas: os grupos econômicos de peso sabem que o deslocamento do eixo do poder seria um desastre de consequências imprevisíveis e a própria oposição que conspira está dividida.

“A oposição tem um único foco, que é interromper o mandato, mas enfrenta contradições internas. O Aécio quer (derrubar Dilma) agora; o Alckmin (Geraldo Alckmin, governador paulista e candidatíssimo em 2018), quer que Dilma sangre até o fim – como sugeriu o senador Aloísio Nunes, estranhamente, personagem que no passado, vítima da perseguição da ditadura, foi curar as feridas no exílio _ enquanto Serra (senador José Serra) paquera com o PMDB. Eles não têm unidade para fazer o deslocamento”, avalia a comunista. 

Para aumentar seu labirinto, na hipótese de emplacar o golpe ou a renúncia pregada pelo tucano de plumagem mais visível, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os tucanos ainda convivem com o medo de enfrentar Lula numa nova eleição.

Nova governabilidade

O cenário, como se vê, é preocupante e incerto. A presidente do PC do B acha, no entanto, que a conspiração é uma escalada que só será interrompida com a contraofensiva da esquerda via reestruturação da coalizão governista, um novo pacto de governabilidade – com agenda a ser construída – e, especialmente, através de uma ação política mais efetiva de Dilma pela resistência. Isso, antes que seja tarde.

“Estamos no limite da crise institucional”, alerta. O PC do B, aliás, foi um dos poucos partidos que não foram surpreendidos com o golpe de 1964, que germinou e ganhou corpo numa crise cujo início é parecido com o cenário de 2015. 

Duas diferenças a favor da superação da crise, no entanto, é a existência de movimentos sociais solidamente organizados e a consciência mais clara de que o respeito ao voto é a parte mais saudável da democracia.

“A base que elegeu Dilma é muito ampla, mas espera uma iniciativa do governo. Vamos construir uma frente ampla, com a participação do setor produtivo e de trabalhadores, para um novo pacto de governabilidade. É preciso resistir e estimular a presidenta a estar mais presente”, provoca Luciana Santos.

Contradição doméstica

Enquanto atua como protagonista nos limites da esquerda nacional, Luciana Santos precisa lidar com uma contradição em Pernambuco. 

No governo do seu estado e na prefeitura da capital, o PC do B é coadjuvante em uma larga aliança em que os principais partidos oposicionistas (DEM, PSDB e PPS inclusive) e lideranças evangélicas de extrema-direita movimentam-se confortavelmente.

Há duas explicações para sua presença na frente comandada pelo PSB. A primeira estaria no campo a “tradição”, em razão das relações históricas do partido com os falecidos Miguel Arraes e Eduardo Campos. 

A outra é de ordem tática: o PC do B seria o elo de ligação capaz de atrair os “socialistas” e a família Campos de volta ao berço da esquerda, algo que se torna mais difícil com o alinhamento dos herdeiros políticos do ex-governador com a oposição.

 Araguaia, a guerrilha

“O Araguaia foi resistência. Era necessário proteger os quadros do partido que estavam sendo perseguidos nas cidades pela ditadura”, disse a deputada em entrevista exclusiva ao Marco Zero. 

Em 1972, quando o conflito eclodiu, Luciana Santos tinha apenas sete anos e, naturalmente, jamais imaginaria que a história lhe pegaria uma boa peça, levando-a ao comando do partido que fez da guerrilha uma das mais intensas páginas da esquerda armada num momento cuja conturbação, resguardadas as proporções, guarda vivas semelhanças com a conspiração que, em 1964, derrubou o governo legitimamente eleito de João Goulart.

Dois anos antes o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, em um artigo tão lapidar quanto profético, antecipara a quartelada: “Quem vai dar o golpe no Brasil”, anunciou logo no título para descrever o clima tenso.

 Os comunistas, reunidos então no velho partidão, o PCB, também anteviram o golpe e se dividiram por conta das diferenças de opinião sobre as táticas de reação. Luiz Carlos Prestes não queria o conflito e ficou com o PCB. 

Carlos Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), a mais aguerrida das organizações que fizeram a luta armada urbana, enquanto João Amazonas e Maurício Grabois optaram pelo campo, levando os quadros mais preparados para o Bico do Papagaio, na confluência entre o Pará, Goiás e Maranhão, às margens do Rio Araguaia.

Os preparativos da guerrilha começaram, na verdade, em 1966, quando o engenheiro de mina, boxeador e ex-militar Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, disfarçado de garimpeiro e caçador de peles (mariscador na linguagem dos camponeses) se instalou na região. 

A descoberta do foco levou os militares a organizar um aparato envolvendo as três Forças (Exército, Aeronáutica e Marinha) para um conflito que, encoberto pela conspiração do silêncio, duraria entre 1972 e 1975 e se transformaria num dos maiores massacres da história brasileira. 

Cerca de 80 militantes do PC do B – entre militantes históricos, acadêmicos, estudantes e, alguns deles, filhos de camponeses – deixaram lá seus ossos. 

Embora suas identidades sejam amplamente conhecidas, ainda figuram na lista de desaparecidos políticos. Meio século depois, a Guerrilha do Araguaia ainda é uma ferida aberta na selva amazônica e um trauma para a esquerda armada, especialmente no PC do B.

Sinal dos tempos, a linha do PC do B hoje nada mais tem a ver com o maoísmo que inspirou o Araguaia. A ascensão de Luciana Santos é uma aposta na modernização do socialismo e a adaptação do partido no novo mundo aberto pelas novas tecnologias. “O PC do B não é fechado.

 Não temos correntes e nem disputas internas. Primamos pela unidade política, apostamos na renovação, na juventude e, permanentemente, na atualização do socialismo ao moderno e ao contemporâneo”, diz a deputada. Sua ascensão, unificando os comunistas, foi uma “construção” de Renato Rabelo, que presidiu o partido por 13 anos, sucedendo um então lendário João Amazonas, que ficou no comando desde que o surgimento da nova sigla, em 1962, até sua morte, em 2002.

Sobrevivente do Araguaia, João Amazonas diria, depois da Anistia, que a região em que os guerrilheiros foram viver, habitada por pequenos agricultores e literalmente abandonada pelo poder público, era tão atrasada que em plena industrialização lá ainda não havia chegada a era da enxada – o plantio era feito com um facão rudimentar. 

É curioso observar hoje que na divisão da máquina governamental de Dilma, coube ao partido o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, talvez, uma oportunidade rara na história para levar o país a uma saudável guinada.