Republicado em Luis Nassif online
02/09/2015
Três acordos globais de comércio, negociados em sigilo, ameaçam direitos sociais, ambiente e próprio sentido da democracia. Que são e como afetam o Brasil
Num texto publicado há dias, por Outras Palavras, o sociólogo Michel Löwy expõe, em termos teóricos, a crescente tensão entre a voracidade do capitalismo e a fragilidade da democracia, acossada por um sistema que deseja reduzir todas as relações sociais a mercadoria. Para um exemplo concreto, considere este relato, feito pelo jornalista Robert Smith e publicado em 14/8 pelo diário britânico The Independent.
“No porão do Capitólio [a sede do Legislativo dos EUA], há uma sala, blindada e a prova de som, e as únicas pessoas autorizadas a entrar são os senadores norte-americanos; e eles não podem levar seus assistentes, não podem levar seus telefones, eles não podem sequer tomar notas no interior da sala. Dentro desta sala, não estão os códigos para as armas nucleares, nem os arquivos da CIA, nem os documentos que nos contam que um alienígena aterrissou em Roswell. Não: nesta sala está o texto de um acordo comercial”.
Não é ficção, mas algo muito concreto (ainda que desconhecido do público), contou The Independent. Dias antes, restrições idênticas haviam sido estabelecidas do outro lado do Atlântico. A Comissão Europeia determinou que o texto, em negociação, do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP, em inglês) só permaneça disponível, mesmo para os membros do Parlamento Europeu, numa “sala de leitura”, onde enfrentarão restrições idênticas às impostas aos senadores norte-americanos.
Que são estes acordos comerciais, tramados tão secretamente por governos e grandes corporações, quase sem cobertura alguma por parte da velha imprensa? Quais suas consequências? De que maneira eles podem afetar o Brasil? Responder a estas questões será cada vez mais importante, para os que desejam compreender as configurações atuais do capitalismo – e enfrentar seu poder.
À margem de qualquer debate democrático e da própria Organização Mundial do Comércio (OMC), três grandes acordos sobre trocas internacionais estão em debate, em fóruns restritos, neste momento. Seu principal motor é o governo dos Estados Unidos. São eles:
> Acordo Comercial Transpacífico (TTP, ou Transpacific Trade Partnership, em inglês). Unirá, se aprovado, os Estados Unidos a dez países asiáticos (entre eles, Japão e Coreia do Sul), quatro latino-americanos (México, Chile, Peru e Colômbia), mais Austrália e Nova Zelândia. A China, hoje a nação que mais movimenta o comércio internacional, está propositalmente excluída.
> Acordo Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP, ou Transatlantic Trade and Investiments Partnership). Reúne a nata do capitalismo: Estados Unidos e União Europeia (UE). Debatido sigilosamente ao menos desde 2006 (versões anteriores da mesma proposta datam do final do século passado), só teve seu rascunho revelado em março de 2014, graças a um vazamento do jornal alemãoDie Zeit.
> Acordo sobre Comércio de Serviços (TiSA, ou Trade in Services Agreement). É o mais opaco de todos – e também o mais abrangente e perigoso. Inclui 53 países: Estados Unidos, toda a União Europeia (UE), a maior parte dos membros do TTP (inclusive Japão e Coreia), mais nações como Turquia, Paquistão, Suíça e, talvez surpreendentemente, Uruguai). A partir de junho de 2014, uma série devazamentos do Wikileaks revelou seus primeiros rascunhos. Talvez por seu caráter secreto, o acordo encarna abertamente, como se verá a seguir, cláusulas de bloqueio à democracia. Nenhum membro dos BRICS foi convidado.
Mas qual o conteúdo e o sentido político dos acordos? Embora as informações disponíveis sejam muito fragmentárias, devido à natureza ultra-sigilosa das negociações, os vazamentos permitem, aos poucos, compreender o essencial. Fala-se, na fachada, em facilitar circulação de riquezas e conhecimentos. Mas impõe-se um preço amargo: favorecimento das grandes corporações transnacionais; restrição severa da democracia, com bloqueio da capacidade das sociedades e Estados para definir suas próprias leis; ataques aos direitos sociais e ao ambiente. Como este passo é possível?
TiSA, TTP e TTIP tratam, todos, do comércio de serviços – daí sua abrangência e alcance. É há décadas, em praticamente todo o mundo, o setor mais vasto das economias: 80% do PIB, nos EUA e UE; 65% no Brasil; 46,8% na própria fábrica do mundo – a China, onde superoupela primeira vez, em 2013, a indústria. Ao contrário da agricultura e atividade fabril, aqui não se produzem bens materiais, mas relações sociais. Conhecimento, Cultura, Comunicação, Afetos: um universo amplo de atividades cada vez mais central em todas as economias, que inclui o projeto de engenharia, a canção, o programa de computador, o atendimento psicanálitico, a campanha publicitária, o corte de cabelo, o restabelecimento de uma rede elétrica ou hidráulica.
Por sua natureza imaterial e relacional, este vasto arquipélago foi menos atingido, até agora, pela globalização e ultra-concentração empresarial. Grandes corporações são capazes de abrir os mercados externos à importação de sementes Monsanto ou de IPads. Mas como dominar num país, cultura e idioma estrangeiros, os escritórios de advocacia, as empresas de construção civil, as escolas secundárias, as redações de jornais e revistas, as oficinas mecânicas?
Esta dificuldade objetiva é um dos dois fatores que têm mantido o setor de serviços razoavelmente nacionalizado, na maior parte do mundo. O segundo são as legislações: quase todos os países estabelecem proteções à produção nacional. As duas grandes tentativas de quebrar estas barreiras fracassaram na virada do século, porque as sociedades reagiram, em ações memoráveis. Em 1998, naufragou, após três anos de negociações secretas, o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Um ano depois, sucumbiu a “Rodada do Milênio” da Organização Mundial do Comércio. A debacle deu-se em Seattle (EUA), sob pressão, então inédita, de movimentos sociais de todo o mundo, em protestos de rua que dariam origem ao chamado “altermundismo” e, em seguida, aos Fóruns Sociais Mundiais.
TiSA, TTP e TTIP buscam reverter esta derrota, num cenário político global transformado. Desde 2008, o mundo vive crise financeira prolongada. A partir de 2009, ela tem resultado, no Ocidente, em intensa ofensiva contra os direitos sociais e a democracia: começou na Europa, espalhou-se para a América do Norte e bate, agora, às portas da América do Sul. Quebrar as defesas que protegem o setor de serviços, abrir às corporações internacionais a imensa economia do imaterial, é o objetivo declarado dos três acordos. Quando forem adotados, os países que os firmarem deverão tratar como se fossem nacionais as empresas prestadoras de serviço com origem em qualquer outra nação signatária do mesmo acordo.
Em alguns ramos, as consequências podem ser imediatas. Há décadas, por exemplo, as poderosas corporações de abastecimento de água e saneamento dos EUA e França lutam para se expandir internacionalmente, derrotando empresas locais. Ao analisar o texto do TiSA, vazado pelo Wikileaks, a pesquisadora mexicana Silvia Ribeiro, do grupo ETC, chamou atenção para sua abrangência. Ele requer o fim das proteções nacionais a um leque de atividades que inclui “desde água e alimentação a saúde, educação, pesquisa científica, comunicações, correios, transportes, telecomunicações, comércio eletrônico, vendas no varejo e atacado, serviços financeiros e muito mais – incusive os mal-chamados ‘serviços ambientais’ relacionados a florestas, sistemas hidrológicos e outras funições dos ecossistemas”.
Além de derrubar barreiras alfandegárias, os Estados Nacionais envolvidos nos três acordos devem fazer uma concessão a mais. Precisam renunciar até mesmo ao direito de estimular a produção nacional, dando-lhe preferência nas compras governamentais. Sob, tais regras, seriam anuladas, por exemplo, as normas que fizeram renascer a indústria naval brasileira, ao torná-la fornecedora preferencial de sondas para a extração de petróleo no país.
Mas TTP, TTIP e TiSA não buscam apenas abrir, em todo o mundo, o setor de serviços às corporações planetárias. Um segundo objetivo épadronizar as legislações dos países signatários sobre temas cruciais como sistema financeiro, seguridade social, produção e circulação do conhecimento, liberdade na internet, segurança alimentar. Adotada a pretexto de facilitar a “livre circulação” de serviços, esta uniformização tem, curiosamente, mão única. Em todos os casos, atende a reivindicações das transnacionais e atinge direitos sociais e meio-ambiente.
Num texto sobre o TTP disponível na edição original do Le Monde Diplomatique, a jornalista Martine Bulard destaca a ameaça aos medicamentos genéricos. Os vazamentos revelam que, apoiadas pelos Estados Unidos, as transnacionais farmacêuticas reivindicam ampliar a vigência das patentes que lhes garantem exclusividade na produção das drogas que registram. Há muito criticado pelos movimentos que lutam pelo Direito à Saúde, este monopólio, que hoje em geral estende-se por vinte anos, passará a oitenta ou mesmo 120, caso o texto entre em vigor. Além disso, alerta Bulard, seriam patenteáveis – ou seja, passíveis de controle monopolista – as plantas, os métodos de diagnóstico, de tratamento e de operações cirúrgicas…
No altar da chamada “propriedade intelectual”, sacrifica-se também o direito à livre circulação de cultura e produções artísticas. Em, 31/7, Michael Geist, advogado e ativista da Eletronic Frontier Foundation (EFF), alertou em sua coluna do Huffington Post para as pressões conjuntas da Casa Branca e indústria cultural norte-americana estão fazendo sobre os demais países envolvidos nas negociações. . Segundo revelam rascunhos vazados do TTP, tanta-se exigir dos países envolvidos nas negociações que inscrevam, em suas legislações nacionais, medidas ainda mais duras contra quem compartilhar, via internet, música, filmes, vídeos, livros, artigos ou outros bens culturais.
Em todos os novos acordos, seções especiais são consagradas ao sistema financeiro. A pedido do Wikileaks, a jurista Jane Kelsey, da Universidade da Auckland (Nova Zelândia) analisou a parte do rascunho do TiSA, que trata deste tema. Num vasto relatório, ela demonstra que os bancos e instituições financeiras são, provavelmente, o setor mais favorecido pelo acordo – e o que ganha mais poderes para confrontar sociedades e governos. Os Estados nacionais ficam proibidos de estabelecer qualquer restrição ou exigência aos grupos financeiros internacionais que desejem instalar-se em seu território. Não podem limitar seu tamanho. Não podem, sequer, controlar os fluxos de capital – privando-se, portanto, de um instrumento decisivo contra ataques especulativos a suas moedas. Perdem o dirieto de impedir a entrada e saída de recursos para “instituições offshore”, ou paraísos fiscais. É uma espécie de contra-ataque preventivo. Num momento em que cresce a consciência sobre estes locais à margem da lei e seu papel na lavagem de dinheiro e sonegação de impostos pelas elites, o TiSA procura assegurar, aos super-ricos, uma proteção contra conquistas sociais futuras da democracia.
Ameaças ao meio-ambiente estão claras no texto vazado de outro dos três acordos: o TTIP. Tim Smedley, jornalista inglês especializado em Energia e Sustentabilidade, escreveu para o Guardian sobre as consequências, para a matriz energética dos países europeus, da eventual adoção do tratado. As barreiras legais que garantem a geração solar e eólica na União Europeia, diz ele, poderão ser questionadas pelos produtores de petróleo norte-americanos que usam fragmentação de rochas, ou fracking. Trata-se do método mais poluente que se conhece; no entanto, sob o TTIP, os que o praticam poderão alegar que as energias limpas europeias constituem uma “barreira artificial ao livre comércio”.
Talvez o dispositivo que melhor esclareça o verdadeiro sentido dos três tratados seja, porém a Resolução sobre Disputas entre Investidores ou Estados (ISDS, ou Investor-States Disputes Settlement), em inglês. Trata-se de uma barreira geral construída em favor das corporações transnacionais contra futuras decisões das sociedades e Estados em favor de direitos sociais e do meio-ambiente.
O ISDS é um claro limite à própria democracia. Ele permite que empresas (tratadas como “investidores”) processem Estados Nacionais sempre que julgarem que uma nova decisão política provocou redução de lucros – mesmo que não tenha atingido nenhum direito adquirido. A redução da jornada de trabalho, ou a demarcação de uma terra indígena, que interrompe a extração de minérios ou madeira, são casos típicos. Segundo os novos acordos, o julgamento das ações judiciais movidas como base no ISDS não se faz nos tribunais nacionais, como revela o site FullFact – mas sim em cortes de exceção. Trata-se de “tribunais arbitrais”, onde os processos não são públicos e os “juízes” são, frequentemente, advogados de grandes empresas.
Alguns casos concretos esclarecem como agem tais cortes. Desde 2011, a Philip Morris, empresa transnacional de tabaco, processa o governo da Austrália, e quer forçá-lo a revogar lei sobre embalagens de cigarro, que inclui advertência quanto aos malefícios do produto à saúde. A Philip Morris levou a demanda até a Suprema Corte australiana e foi derrotada. Ainda assim, pôde reabrir a questão num “tribunal arbitral” internacional, servindo-se do dispositivo ISDS presente num acordo de “livre” comércio entre a Austrália e Hong Kong. Ainda não há decisão final.
Em caso igualmente revelador, a Lone Pipe, uma empresa norte-americana de extração de petróleo por fracking, abriu processo, em 2013 contra o Estado canadense do Quebec. Exige indenização de 250 milhões de dólares, porque Montreal decidiu suspender a exploração petrolífera no subsolo do Rio São Lourenço, considerando-a nociva ao meio-ambiente, às fontes de água e à própria saúde da população… A ação da Lone Pipe é possível porque o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), do qual Canadá e EUA são signatários, inclui dispositivo ISDS.
É impossível examinar a relação dos países envolvidos na negociação dos três acordos sem surpreender-se, de cara, com cinco ausências notáveis. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul estão excluídos simultaneamente do TTP, TTIP e TiSA. As cinco nações reúnem quase metade (42%) dos habitantes do planeta e 20% do PIB global. Suas reservas externas superam 5 trilhões de dólares. Todas são participantes destacados do comércio internacional. Juntas, criaram um bloco que representa uma das grandes novidades geopolíticas do século e estão avançando para constituir alternativas ao FMI e ao Banco Mundial. Por que curioso motivo os 59 participantes1 do esforço para estabelecer os três acordos preferiram o Paraguai ao Brasil; Brunei à China; o pequenino Liechtenstein à Rússia; o Panamá à África do Sul?
O sociólogo Immanuel Wallerestein começou a explorar a resposta num texto recente sobre o tema. Ele desfaz um mito. Ao contrário do que gostam de dizer seus ideólogos, tratados como TiSA, TTP e TTIPnão estebelecem, argumenta Wallerstein, cenários de “livre” comércio. Esta condição só poderia ser alcançada se a redução de barreiras comerciais beneficiasse todos os países participantes do sistema de trocas internacionais. Não é disso que se trata, porém. Tanto os tratados em negociação agora quanto todos os de mesmo tipo que os precederam excluem certas nações. Seu caráter é, portanto, deprotecionismo – seja por interesse comercial, seja por razões geopolíticas.
No artigo do Le Monde Diplomatique citado acima, Martine Bulard, arrisca um passo a mais. Para ela, a própria geografia das três áreas de “livre” comércio estabelecidas pelos acordos expõe o interesse e a ação norte-americana, expressa em dois grandes movimentos. O primeiro é ocupar o centro do cenário, na negociação de três tratados que terão, se forem adiante, importância capital para o capitalismo do século XXI. Não é à toa que os EUA são, além de principais impulsionadores do TTP, TTIP e TiSA, o único país presente ao mesmo tempo nas três negociações.
O segundo movimento – ligado ao anterior porém mais específico – é isolar a China. Com o TTIP, Washington reforça sua aliança secular com a Europa Ocidental. Mas tanto TTP quanto TiSA visam reforçar o objetivo geopolítico e militar central acalentado pelos EUA nos últimos anos. Implica deslocar-se do Oriente Médio para a Ásia, onde, consideram os estrategistas norte-americanos, vai se dar a disputa crucial pela hegemonia planetária no século XXI.
Os novos tratados são também, portanto, elementos de uma nova “Guerra Fria”. Porém, algo mudou, em relação ao conflito que opôs,entre 1946 e 1989, Estados Unidos e União Soviética. Naquele período, Washington procurou aparecer como defensora da democracia e das liberdades. Estava alarmada com a posição de destaque que Moscou assumiu após a II Guerra e com o apelo que os ideais de igualdade social suscitavam, num mundo marcado por pobreza e subdesenvolvimento.
Agora, as máscaras caíram. Como frisa Michel Löwy e como mostra o que vimos até agora, vivemos um tempo em que o capitalismo procura livrar-se da democracia. Immanuel Wallerstein construiu uma narrativa ainda mais sofisticada para dar conta do novo cenário. Para ele, o capitalismo vive uma crise sem saída; mas este fato não deve alimentar esperanças vãs. Porque o que sucederá ao sistema hoje hegemônico pode ser tanto algo muito mais democrático e igualitário quanto o contrário. TTP, TTIP e TiSA são a prova deste argumento: sinais de um ultra-capitalismo distópico e assustador.
Nada garante que TTP, TTIP e TiSA entrarão em vigor um dia. O próprio caráter sigiloso das negociações sobre os três acordos é um sinal de fraqueza: revela incerteza e temor sobre como reagirão as sociedades. Vivemos tempos contraditórios. No Ocidente há, de fato, forte ofensiva do capital contra os direitos sociais e a democracia. Mas conquistas mantidas por séculos não são apagadas facilmente. E paira no ar, como admitiu há poucos dias Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, um “estado de espírito talvez não revolucionário, mas de impaciência”.
Em seu artigo sobre os três novos acordos globais, Immanuel Wallerstein descreve em detalhes as dificuldades para aprová-los. Depois de ponderar os obstáculos políticos que dezenas de governos ainda enfrentam, para empurrar os tratados a suas sociedades, o grande sociólogo vaticina: “Mesmo se um acordo fosse fechado agora, o TTP não poderia ser votado no Congresso dos EUA antes [das eleições presidenciais] de 2016. Este limite é ainda mais nítido nas negociações para um TTIP, que estão num estágio anterior de discussões”. Por enquanto, TTP, TTIP e TiSA são, nos países que os debatem diretamente, distopias muito ameaçadoras – porém, estão longe de ser certezas.
Paradoxalmente, o cenário é muito mais difícil no Brasil, que a princípio, por não participar da negociação de nenhum dos acordos, estaria livre dos efeitos de todos. Aqui, a agenda ultracapitalista proposta por TTP, TTIP e TiSA manifesta-se de duas maneiras. Em termos programáticos, vastos setores da mídia, e do conservadorismo político – localizados tanto na oposição quanto no governo – propõem “livrar” o país das “amarras” supostamente representadas pelo Mercosul, Unasul e BRICS. Desejam que o país “abra-se para o mundo”, “aproxime-se dos Estados Unidos e União Europeia”, “pegue o bonde dos novos acordos comerciais”… Este discurso está presente nas falas de Aécio Neves e no portal do PSDB na internet, mas também em incontáveis editoriais e comentários da mídia (1 2 3 4 5 6etc etc etc) e até mesmo – com idêntica ênfase! – em declarações de ao menos um ministro do governo Dilma…
Mas o pior é que em surdina, muito pragmaticamente e sem nenhum debate, a mesma agenda já invadiu os corredores e salões atapetados do Congresso Nacional. Faz parte da “ofensiva conservadora”, da qual muitas vezes falamos sem ter noção exata de suas consequências. Já se concretizou em medidas como a abertura da prestação de serviços deSaúde a empresas estrangeiras – assegurada por meio de uma lei esdrúxula, que alterou ao mesmo tempo dezenas de aspectos da legislação, sem que nenhum deles tenha sido debatido com a sociedade brasileira. Ameaça agora, por iniciativa de um senador da bancada governista, convidar as maiores empresas de aviação transnacionais para operar as rotas aéreas brasileiras. Está presente em medidas de repercussão profunda e prolongada, como o projeto de lei que autoriza a terceirização generalizada e selvagem do trabalho assalariado ou os anúncios recentes, por parte de ministros, de que haverá uma (contra-) reforma da Previdência, ainda em 2015.
Acrescentar perspectiva internacional a fatos que acompanhamos diariamente pode ser revelador e mobilizar energias. Permite constatar que há, também, pressões globais agindo sobre personagens que, de outra forma, enxergaríamos como provincianos ou mesmo bizarros.
Tome-se Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados. Muito mais que um religioso conservador, ou um articulador das piores energias do “baixo clero” do Congresso, ele é, hoje, o político com maior poder de levar adiante as pautas do ultra-capitalismo. Daí vêm sua força e suas esperanças de se manter vivo, apesar do envolvimento profundo com os crimes da Operação Lava-Jato. Observe-se os movimentos, aparentemente oscilantes, da oposição a Dilma. Se ela alterna-se entre pedir o impeachment da presidente e emparedar seu governo, obtendo dele todas as concessões possíveis, é porque outra agenda, muito mais poderosa, sobrepõe-se ao obsessivo desejo de Aécio Neves pela faixa presidencial…
Veja-se a própria situação dos partidos de esquerda, de quem se esperaria, a princípio, que resistissem à ofensiva anti-democracia e anti-direitos. Se deixam de fazê-lo, paralisados, não é por traição ou claudicância moral – mas por verem-se irremediavelmente divididos entre as antigas intenções de sua alma rebelde e as conveniências concretas de sua presença em espaços de poder.
“Olhar nos olhos de nossa tragédia é o primeiro passo para vencê-la”, escreveu certa vez Oduvaldo Vianna Filho, um dramaturgo genial cuja obra, embora quase desconhecida, permanece viva e pulsante. Em poucos países do mundo, a luta por direitos e democracia foi tão potente quando no Brasil das últimas quatro décadas. Nesse período, ela recuou diversas vezes – acossada pela brutalidade da ditadura ou surpreendida pela intensidade do choque neoliberal – e ainda assim regressou mais forte. Responde à necessidade de um resgate de séculos. Conhecer com precisão os processos globais que nos ameaçam ajudará a tramar a contra-ofensiva.
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1A relação inclui os 53 Estados envolvidos no TiSA mais Brunei, Filipinas, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã, que não integram o grupo mas participam do TTP. O TTIP não acrescenta membros à relação, pois é negociado diretamente por Estados Unidos e União Europeia.
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