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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Sob o tacão de ferro do capital financeiro internacional




Carta Maior - 13/08/2014

Rosa Maria Marques*

Longe de ver superada a crise mundial, Brasil aproxima-se das eleições diante do estreitamento da margem de manobra econômica do governo.




Mais uma vez o país irá realizar sua eleição presidencial sem que a crise econômica mundial mostre sinais de superação. Essa crise, que ora fustiga de maneira mais aguda a região da Europa, elevou o desemprego a taxas nunca antes vistas em países europeus e serve como justificativa para redução de salários, do valor das pensões e aposentadorias e, inclusive, do seguro desemprego, entre tantos outros avanços sobre os direitos sociais e trabalhistas que estão ocorrendo principalmente na Grécia, Espanha e em Portugal. Tudo em nome dos Estados recuperarem sua capacidade de pagamento de suas dívidas aos credores.
 
Neste momento, tal como visto ao longo do último ano, os principais veículos de comunicação do país insistem em dizer que a economia brasileira está à beira do caos, seja porque estaria havendo uma “retomada do ímpeto da inflação” e uma “estagnação” da produção, seja devido à situação da balança comercial ou à chamada (des) industrialização. O que essa mesma mídia não enfatiza é como, apesar disso tudo, e aparentemente de forma contraditória, o nível de desemprego continua baixo, o grau de formalização do trabalho seja o mais alto “da história desse país” e o consumo se mantenha elevado. Também essa mesma mídia não explica - a não ser sustentando que o povo não sabe votar, não sabe o que é de seu interesse - a alta intenção de votos que Dilma mantém na corrida presidencial. E não é por acaso que ela, a mídia, não faz nenhum esforço no sentido de explicitar o que significa um país como Brasil estar integrado na dinâmica do capitalismo contemporâneo.
 
Os traços gerais do capitalismo contemporâneo
Há muito que, entre os economistas, acumulam-se contribuições que analisam os traços gerais do capitalismo contemporâneo, que o distingue frontalmente do período dos trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial (GM). Entre essas contribuições destacam-se as de François Chesnais, Michel Husson, Gérard Duménil, Dominique Lévy e Louis Gill, alguns destes bastante conhecidos pelos leitores brasileiros, pois tiveram suas obras traduzidas para o português. Neste espaço do Seminário Virtual ‘A internacional do  Capital Financeiro’, já foram publicados importantes aportes que retomaram a trajetória do retorno ao centro das relações econômicas e sociais do chamado “capital financeiro” e aprofundaram aspectos dessa dominância. Não cabe, portanto, repetir o que aqui já dito, mas é importante termos presentes os traços que caracterizam o capitalismo contemporâneo, no qual o Brasil se insere.
 
O que significa dizer que o capitalismo mundializado é dominado pelo capital financeiro (capital a juros, em Marx), no qual se desenvolve de maneira exacerbada sua face mais perversa, o capital fictício? Significa que a busca pela rentabilidade do “fazer dinheiro com dinheiro, sem passar pela produção” é a prioridade primeira do capital e que ela se expressa como uma ofensiva política de classe com alcances mundiais. Essa maneira de fazer dinheiro, que atua na esfera da circulação, não tem nenhum compromisso com a produção e o emprego e é movida pela lógica de curto prazo. Assim atuando, essa dominância do capital fictício deprime o investimento e impõe um ritmo de crescimento muito baixo e elevadas taxas de desemprego, ao contrário do que ocorreu no período dos trinta anos que se seguiram ao fim da II GM.
 
Mas para que esse capital voltasse a ser dominante foi necessário haver uma ruptura com relação às condições que conformavam o período anterior, tanto no que se refere às regulamentações que impediam ou cerceavam sua liberdade de ir e vir entre nações, como as que restringiam seu campo de ação no interior dos países. Ao mesmo tempo, o que muitas vezes é esquecido, foi necessário haver uma mudança na relação de forças entre as classes dominantes e os trabalhadores. Para isso, as derrotas infringidas por Thatcher e Reagan aos trabalhadores, bem como a dissolução da União Soviética, foram fundamentais. Essas foram as respostas dadas pelo capital para o esgotamento relativo do período anterior, quando a taxa de lucro das principais economias do mundo passaram a apresentar redução. Sem isso presente, não se pode entender como foi possível ao capital fictício ser alçado à posição que hoje detém e explicar o período anterior. O retorno da dominância do capital fictício deu-se, então, com bases muito mais profundas e complexas do que no passado (final do século XIX até 1929): foi acompanhado pela construção de uma nova relação entre os diferentes componentes do capital (a juros, industrial e comercial) e por uma nova correlação de forças entre o capital e o trabalho, desfavorável a este último.
 
Nessa situação, tanto o capital a juros quanto o industrial e o comercial (que atualmente atuam de forma imbricada) não têm nenhum interesse em algo parecido com o pleno emprego. A manutenção de desemprego elevado é condição para a continuidade da nova situação criada a partir dos anos 1980: busca pela recuperação dos níveis anteriores da taxa de lucro, baixo crescimento, e aumento colossal do volume do capital a juros aplicado em títulos de todos os tipos e em ações, praticamente no mercado secundário, o que lhe configura o caráter de fictício, e ainda em derivativos. Isso significa que não há, no marco do processo de acumulação mundial atual, a possibilidade de crescimento econômico expressivo e duradouro, com exceção da China.
 
O Brasil e as restrições impostas por essa dominância
É dentro desse quadro geral que se insere a economia brasileira.
 
Como se sabe, desde o governo Lula, houve ampliação do mercado interno mediante políticas de valorização do salário mínimo e de transferência de renda para a população mais pobre do país (Programa Bolsa Família), mas também via abertura de crédito para os segmentos de renda baixa e média e redução de impostos indiretos, principalmente sobre alguns produtos industrializados e da cesta básica.
 
Essa ampliação de mercado, com baixo impacto sobre as importações, seria, em teoria, um elemento garantidor da manutenção de certo nível de crescimento independente da dinâmica internacional e, de fato, em muito auxiliou para que o desempenho da economia brasileira não fosse negativo quando do impacto maior da crise mundial e de seus desdobramentos. Parte importante do nível de ocupação existente deve-se ao conjunto dessas políticas.
 
Mas a manutenção do regime de câmbio flexível e a prioridade na obtenção de elevado superávit primário e de baixa inflação, principais componentes da política macroeconômica adotada desde os governos FHC, fizeram do país um dos principais centros de captação da liquidez internacional (em grande parte aumentada pela política monetária realizada pelos EUA para fazer frente à crise do último período), fragilizando sua posição internacional, pressionando a valorização do real e a permanência de elevadas taxas de juros.
 
O resultado disso, como também é sabido, foi uma persistente deterioração da conta de transações correntes, tanto pela deterioração da balança comercial pelo efeito câmbio como pelo crescimento das remessas a título de lucros e dividendos dos capitais aqui ingressados. Como já foi dito neste Seminário Virtual, parte significativa dos capitais estrangeiros que entram no país são capitais fictícios, seja na forma de IED, de aplicações na Bolsa e em derivativos. O estoque desses capitais superam largamente o volume das reservas internacionais e a qualquer momento podem alterar suas posições, posto que são suscetíveis às mudanças de humores do capital internacional.
 
Mantidas as condições macroeconômicas gerais (o chamado tripé), a margem de manobra que o governo tem para impulsionar a economia é cada vez mais estreita, pois a via do consumo mediante a valorização da renda da população de baixa e média renda tem um limite. A manutenção de elevados superávits primários e a ausência de controle da entrada de capital limitam a atuação do investimento estatal e o gasto na área social, e sustenta um real valorizado, deprimindo as exportações e impedindo que uma redução da taxa de juros seja duradoura. 
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*Rosa Maria Marques é economista, professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da Puc-São Paulo. 

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