Mentiras ajudaram a derrubar Jango
Por Mauro Malin em 14/08/2014 na edição 811
A sociedade brasileira se especializou em contornar problemas. É uma tradição muito enraizada.
Marcos Nobre, da Unicamp, declarou ao Valor: “No Brasil, não estamos acostumados a polarizações reais. Tenta-se, ao máximo, acomodar todo mundo no condomínio de poder” (13/8; “Mudanças no transporte público ficam para 2015”).
Bem fez Chico de Oliveira quando se lançou, dois anos atrás, ao estudo sério do jeitinho brasileiro (ver “Jeitinho e jeitão”, artigo publicado na revista piauí).
Sempre que, no Brasil, se pode tomar uma consequência como causa, para evitar o verdadeiro problema, isso é feito.
Veja-se o exemplo atualíssimo dos candidatos “ficha suja”. São apenas ingredientes inevitáveis de um sistema político perempto, mas rapidamente campanhas cívicas fervorosamente secundadas pela mídia os colocam na berlinda.
Não tem grande proveito, a não ser disfarçar a sujeira presente em toda e cada instância dos processos eleitorais.
Se a má literatura serve para que se saiba discernir a boa literatura (ou música, pintura etc.), a interdição de “fichas sujas” pode criar a falsa imagem de que os demais são “fichas limpas”, o que é, na melhor das hipóteses, uma farsa complacentemente aceita.
PCC, PT, Rota, PSDB
O grau de ignomínia desse estado de coisas pode ser aferido por duas situações simétricas: as ligações do PT, via família Tatto, com parlamentares eleitos pelo partido em São Paulo acusados de conexão com o PCC (Luiz Moura, estadual, e Sineval Moura, vereador da capital), e a concessão de legenda pelo PSDB a oficiais PM da reserva oriundos da mortífera tropa de choque chamada Rota.
Caso insuficientemente conhecido do vereador Coronel Telhada, que se apresta agora a conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa paulista pelo partido de Fernando Henrique Cardoso.
Caso insuficientemente conhecido porque Telhada conseguiu banir da Folha de S.Paulo o repórter André Caramante, que mostrara como o perfil do coronel no Facebook celebrava o fuzilamento de “bandidos” por “boinas pretas” (ver “Um repórter ameaçado de morte”, por Eliane Brum).
Com isso, Telhada inibiu uma apuração jornalística mais sustentada. Se já era difícil, depois do episódio ninguém quer mesmo se (des)entender com a Rota.
Política, não moralismo
As maiores lideranças desses dois partidos participaram destacadamente do processo de redemocratização (o PSDB ainda embutido no PMDB).
Se houvesse um mínimo de coerência política, jamais poderiam ter qualquer tipo de relação com entes tão antidemocráticos como o PCC e a Rota. Seriam, ao contrário, seus adversários.
Mas a lógica eleitoral, a realpolitik dentro do sistema vigente, parece impor todo tipo de transação. Parece, não propriamente impõe.
Em cada eleição há candidatos que não se dobram às regras mafiosas em vigor. Alguns conseguem bons resultados.
A lógica das transações opacas não é uma imposição, mas se sustenta porque convém aos participantes. Conserva, em contexto de incalculavelmente intensa mudança tecnológica da comunicação, o predomínio de métodos e ferramentas que estão ao alcance dos atuais detentores de poder, desde que haja dinheiro para comprá-los e usá-los.
Esse dinheiro, como se sabe, tem seu preço.
Um negro carioca
Uma lapidar comprovação dos malefícios do marketing eleitoral está em reportagem de Consuelo Dieguez na piauí de agosto (“O candidato S. – A máquina da Fiesp, as alianças e os métodos de Paulo Skaf”). Trata-se de uma passagem que relata conversa de Paulo Maluf com Skaf.
Maluf recomenda ao candidato do PMDB ao governo paulista a contratação de Duda Mendonça. Seu argumento: “O Duda me ajudou a eleger um negro carioca [Celso Pitta] para a prefeitura de São Paulo”.
Muito bem. Mas qual é o balanço da passagem de Pitta pela prefeitura? Que políticas públicas ele adotou, com quais resultados?
O marketing eleitoral, baseado na intuição dos marqueteiros com muito tempero de pesquisas de opinião, é responsável pela produção de um discurso político infraginasiano.
Esse discurso desafia a inteligência do leitor/eleitor com argumentações cautelosamente concebidas e elaboradas segundo a gramática dos marqueteiros.
O marketing eleitoral é um dos grandes inimigos atuais da democracia. E deveria ser proibido aos governos, que usam nele diretamente verbas públicas (os candidatos usam-nas indiretamente).
O resultado não é, como se supõe, o convencimento de manadas, mas o distanciamento das massas da política convencional, território em que se decidem, executam, avaliam e controlam políticas públicas.
Distanciamento que só não é maior porque o voto é obrigatório e a ausência do eleitor, punida com penas pesadas se ele não arranjar tempo para ir até uma zona eleitoral comprar seu perdão.
O distanciamento, ilustrado de forma vulcânica pelas jornadas de junho e julho de 2013, ocorre porque não há manadas. A metáfora é infeliz.
O que há são cidadãos com graus diferentes de envolvimento no processo político. Numa simplificação brutal: os que se beneficiam dessas práticas e os que, imensa maioria, sofrem suas consequências.
Mídias cúmplices
Todas as mídias jornalísticas são hegemonicamente cúmplices voluntárias e involuntárias desses descaminhos da democracia. Fazem sua parte no jogo rasteiro.
Se tivessem preocupação com o país, seu papel seria denunciar a mistificação. Por exemplo: publicam-se cifras de arrecadação e despesas das candidaturas majoritárias (presidente e governador), mas nem uma palavra sobre como de fato é usado esse dinheiro.
Outro exemplo: defende-se a encenação fraudulenta em comissões parlamentares de inquérito em nome do preceito lulista de que “todo mundo faz” (ver Janio de Freitas, “Se é crime, são dois”).
Quando – como no acidente que matou Eduardo Campos, sua comitiva e os dois pilotos do Cessna, em Santos (SP) – o rumo dos acontecimentos foge ao roteiro dos comandos de campanha (onde os marqueteiros pontificam) e da Justiça Eleitoral, o jornalismo se desprende dos moldes e reencontra o caminho da informação, da análise e da emoção (legítima, não fabricada). A diferença é total.
Golpismo sem retoque
E, no entanto... No entanto, o país caminhou.
A mídia já teve participação política muito pior do que a calhordice atual. A campanha jornalística que coadjuvou os golpistas de 1964 foi algo inconcebível no Brasil de hoje.
No livro 1964 na visão do ministro do Trabalho de João Goulart Almino Affonso (2014), o autor descreve:
“Perdida a oportunidade de uma frente ampla política e social, o governo parecia um barco à deriva. A direita estava cada vez mais agressiva.
O deputado padre Vidigal (PSD-MG) não se acanhava de convocar à violência na mais absoluta impunidade: ‘Armai-vos uns aos outros!’. (...) [O deputado da UDN mineira Olavo] Bilac Pinto dava-se ao desplante de denunciar o governo Goulart pela entrega de armas aos sindicatos rurais e da orla marítima.
“Escudado nessa fantasia, chegara ao extremo de aconselhar a ‘população civil a armar-se, para resistir’.
Interpelado na Câmara dos Deputados, sucessivas vezes, pelas lideranças do governo, Bilac Pinto tergiversava, sem apresentar provas que sustentassem suas afirmações.
A imprensa lhe dera absoluta cobertura! Vale lembrar as manchetes dos maiores jornais na edição de 16/1/1964: ‘Estarrecedoras revelações do presidente da UDN’ (Diário de São Paulo); ‘Bilac Pinto quer dar armas ao povo para defender a legalidade’ (Jornal do Brasil); ‘Bilac Pinto denuncia organização do golpe’ (O Estado de S. Paulo); ‘Bilac Pinto: o governo arma os sindicatos para o golpe’ (O Globo); ‘Democratas despertam: armar a população civil para obstar a subversão’ (O Jornal); ‘Presidente da UDN faz grave denúncia à Nação’ (Estado de Minas); ‘UDN denuncia a subversão do Governo’ (Tribuna da Imprensa).
“Tudo isso no mais absoluto vazio de provas e indícios. Era a campanha que estava em marcha: visando envolver o presidente João Goulart na articulação de um golpe de Estado, a UDN tentava escavar distâncias entre o governo e a sociedade.”
O partido de Bilac Pinto e Carlos Lacerda (e de figuras menos vis) nem sobreviveria ao golpe, como seu homólogo, o PSD.
Mas quem pagou mesmo a conta da desgraça administrada pelos militares foram os brasileiros mais pobres, mais frágeis.
Motivo torpe
José Serra é outro político colhido pelo vendaval de 1964 que publicou memórias (Cinquenta anos esta noite, 2014). Sua crítica à imprensa da época também é elucidativa:
“Cada diretor da UNE tinha direito a retirar, em dinheiro, o equivalente ao salário mínimo da época.
Os cofres da entidade não estavam cheios do ‘ouro de Moscou’, como proclamava a direita e ecoava a grande imprensa de São Paulo e do Rio.
Os recursos vinham do governo federal, graças a emendas ao orçamento incluídas por um deputado da UDN, Paulo Sarasate (...) .”
E, adiante:
“Por volta de setembro de 1963, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, escreveu um artigo insultando o então ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos, com adjetivos ferozes, como nunca vi até hoje alguém fazer nem nos blogs sujos.
(...) O motivo não revelado era simples e pouco ideológico: o MEC deixara de imprimir materiais escolares nas gráficas de algumas de suas empresas.”
Carlos Chagas, que publicou em 2014 o livro A ditadura militar e os golpes dentro do golpe, 1964-1969, da série A história contada por jornais e jornalistas, complementa o quadro com um flagrante de bastidores:
“Muitos governadores não escondiam que armavam suas polícias militares para se opor a Brasília, como Magalhães Pinto, em Minas, e Ademar de Barros, em São Paulo.
Carlos Lacerda, na Guanabara, era um caso à parte: o maior propagandista civil do golpe, mas mantido, propositalmente, à margem das articulações, conhecido que era por sua incontinência verbal.
Se soubesse dos detalhes, num arroubo emocional contaria tudo na televisão.
“Esse clima não parecia ser transmitido por O Globo, à exceção de algum editorial mais duro contra o comunismo.
Roberto Marinho, entretanto, estava metido até o pescoço na conspiração, assim como, em São Paulo, Júlio Mesquita Filho, do Estadão.”
O resumo do papel da imprensa naquele período é feito por Boris Fausto no capítulo “A vida política” do livro Olhando para dentro, 1930-1964, quarto volume (2013) da coleção História do Brasil Nação – 1808-2010:
“A tragédia dos últimos meses do governo Goulart residiu na tendência cada vez mais acentuada de se descartar a via democrática para a solução da crise.
A direita ganhou os conservadores moderados, sobretudo amplos setores da classe média, para sua perspectiva de que só uma revolução promoveria a ‘purificação da democracia’, pondo fim aos perigos do comunismo, à luta de classes, ao poder dos sindicatos e à corrupção.
A grande imprensa e o rádio, que influenciavam a classe média e mesmo setores populares, empreenderam uma campanha sistemática de combate ao governo.”
Café Filho, que depois mudaria de lado, terminava seus discursos com uma advertência alusiva ao golpe do Estado Novo: “Lembrai-vos de 37!”.
Quando vir a direita muito assanhada explorando os erros da esquerda, lembre-se de 1964, valente leitor.
Principalmente se isso incluir campanhas de mídia como as que recentemente transformaram em “terroristas”, a partir de obscuras manipulações de inquéritos policiais, manifestantes algo selvagens, rasos em política.
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