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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O segundo governo Vargas e suas contradições


Por Augusto César Buonicore
Fundação Mauricio Grabois
No dia 24 de agosto se completarão 60 anos da queda do segundo governo Vargas. A posição que os comunistas brasileiros assumiram diante dele ainda causa perplexidade. A sua caracterização como "títere do imperialismo norte-americano" soa estranho aos nossos ouvidos, que já se acostumaram com a definição deste governo como anti-imperialista e até mesmo como democrático-popular.
Passeata da Panela Vazia que antecedeu a greve dos 300 mil em São Paulo

Um estudo mais atencioso do conjunto das medidas adotadas neste período nos leva a afirmar que existiam graves limitações na análise do Partido Comunista do Brasil (PCB). O governo Vargas, por um lado, não poderia ser definido como subserviente ao imperialismo estadunidense. Por outro, ele também não tinha um caráter anti-imperialista. Era, na verdade, um governo (burguês) progressista permeado por inúmeras contradições e em permanente disputa entre as correntes políticas e frações de classes dominantes (entreguistas e nacionalistas). No entanto, no decorrer do tempo, a correlação de forças entre essas duas tendências se deslocou num sentido favorável a um nacionalismo de caráter mais popular.

O importante é constatar que esse resultado não estava dado desde o início do processo. Em alguns momentos a luta pareceu perdida para as correntes que defendiam um projeto de desenvolvimento nacional soberano e voltado aos interesses populares. A mudança de rumo foi sendo construída através de acirrada luta política – que se traduziu também numa vigorosa luta de ideias entre os defensores de programas econômicos distintos e contrapostos. Foi sendo redefinida nos choques permanentes entre os interesses do país e o imperialismo estadunidense, que naquele momento se opunha a qualquer tipo de projeto industrialista.

Tendo em vista as etapas desta luta podemos, grosso modo, dividir o governo Vargas em duas fases distintas. A primeira fase – entre 1951 e 1953 – foi marcada por uma política tendente à conciliação com as correntes entreguistas e os interesses geopolíticos dos Estados Unidos. Na segunda – entre 1953 e 1954 – predominou uma atitude mais decidida no sentido de dar curso à construção de um modelo de desenvolvimento com viés nacionalista e industrialista. Foi neste momento que ele entrou em conflito aberto com o imperialismo e seus aliados locais, e acabou derrubado por um golpe de Estado.

O PÊNDULO PARA A DIREITA

A candidatura Vargas se gestou fora dos dois maiores partidos brasileiros, o Partido Socialdemocrata (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN). O seu surgimento, através do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em aliança com o Partido Social Progressista (PSP), estava ligado às necessidades de certos setores da burocracia de Estado (militares nacionalistas) e da burguesia industrial – que advogavam uma política mais ativa pró-industrialização. Contudo, setores importantes dessa fração burguesa alimentavam desconfianças em relação à legislação social varguista e às tentativas de incorporar os trabalhadores urbanos no jogo político.

A base de sustentação social da campanha de Vargas, responsável pela sua estrondosa vitória eleitoral, foram as massas populares. Elas – cansadas da política excludente e antioperária do governo do general Eurico Gaspar Dutra (1945-1950) – se voltaram para aquele que propunha revalorizar o trabalho e colocá-las num outro patamar de cidadania. Vargas era visto como o candidato dos pobres e dos trabalhadores. Por isso, obteve 48,7% dos votos, seguido pelo udenista brigadeiro Eduardo Gomes com apenas 29,7%.

A composição do primeiro ministério – chamado “ministério da experiência” – foi uma tentativa de conciliar as diversas frações da burguesia, sob a direção dos setores industrialistas. Dele participavam o general nacionalista Newton Estillac Leal, indicado para o Ministério da Guerra, e João Neves da Fontoura, colocado no Ministério das Relações Exteriores. Este último era conhecido por suas posições abertamente pró-americanas. No governo destacavam-se ainda dois representantes do empresariado paulista: o industrial Ricardo Jafet, que assumiu a presidência do Banco do Brasil, e Horácio Lafer, nomeado ministro da Fazenda. Até um dos próceres da UDN, o pernambucano João Cleofas, foi indicado para o prestigiado Ministério da Agricultura. Ao PTB, partido do presidente, coube apenas o Ministério do Trabalho na figura de Danton Coelho.

O conflito de interesses dessas diversas frações de classe refletia na área econômica do governo. Os dois representantes dos empresários paulistas viviam às turras. Horácio Lafer era um grande industrial com vínculos com o capital estrangeiro e no ministério defendeu uma política econômica anti-inflacionária, que prejudicava vários grupos industriais. Ricardo Jafet, ligado ao setor de metalurgia, pelo contrário, defendia o crédito fácil. Mais tarde, seria acusado de ter facilitado créditos para montagem do jornal Última Hora. Este era um dos poucos órgãos da imprensa brasileira de linha nacionalista e que apoiava o governo de Getúlio.

As divergências no governo eram mais amplas. Podiam ser observadas no processo de aprovação do decreto-lei de controle sobre as remessas de lucros ao exterior. Este nasceu sob inspiração direta do presidente do Banco do Brasil e tinha por finalidade estancar a sangria de divisas. Mas os ministros da Fazenda e das Relações Exteriores se esforçaram para que ele não fosse posto na prática. A lei se tornou letra morta e acabou sendo anulada em janeiro de 1953. Neste mesmo mês, Jafet se demitiu criticando, entre outras coisas, as manobras visando a esvaziar o Banco do Brasil em benefício de grupos financeiros privados.

Esta composição conservadora foi criticada pelos setores nacionalistas e comunistas. Na época, afirmou o dirigente comunista Diógenes de Arruda Câmara: "Se Dutra só pode manter a ditadura através do acordo-interpartidário, Getúlio forma um ministério de ‘conciliação nacional’, visando à união sagrada das forças reacionárias". Segundo a professora Maria Celina de Araújo: “Na prática, as metas esboçadas na campanha fracassaram em grande parte, não se traduzindo em política efetivas do Governo. Apesar da manutenção de um discurso nacionalista, constata-se que o Brasil teve que ceder efetivamente aos interesses norte-americanos (...). Essas contradições tornam o governo vulnerável à crítica de todos os lados”.

Portanto, o que caracterizou os dois primeiros anos do governo Vargas não foi a tentativa de romper com o imperialismo estadunidense e propor claramente a construção de um capitalismo nacional. Ocorreu, sim, uma tentativa de conciliação com as forças conservadoras e pró-imperialistas. Isto, por exemplo, acarretou a demissão do general nacionalista Newton Estillac Leal do Ministério da Guerra, como veremos a seguir.

Sob a Guarda Norte-Americana – O Acordo Militar e a Guerra na Coreia

O início do governo Vargas se deu numa conjuntura internacional marcada pelo agravamento da guerra fria, que exigia um alinhamento do país ao lado de um dos dois grandes contendores: URSS e EUA. As classes dominantes latino-americanas, e seus respectivos governos, já haviam se definido – colocando-se sob a guarda do imperialismo estadunidense. A Guerra da Coreia, recém-iniciada, começou a adquirir contornos dramáticos. O perigo de um novo conflito mundial – agora nuclear – estava colocado no horizonte imediato da humanidade.

Na Conferência dos Chanceleres Americanos, realizada em março de 1951, o representante brasileiro, João Neves da Fontoura, deixou clara a posição do Brasil diante do novo quadro internacional. Segundo ele, os Estados Unidos estavam convocados “a opor o escudo de sua consciência democrática e das suas possibilidades materiais aos atentados que se preparam nas trevas". Atacou a fidelidade dos comunistas à União Soviética e à sua negação da ideia de pátria. Por isto, eles "representariam um perigo para a segurança interna das nações latino-americanas". O seu discurso conclamou o combate internacional às "ideologias subversivas" e aos partidos que operavam sob o comando de "potências estrangeiras" (leia-se URSS). Sinais evidentes de que os comunistas brasileiros, vivendo na clandestinidade, não deviam esperar nenhuma complacência do novo governo ou uma posição neutra diante do conflito armado que se poderia irromper a qualquer momento.

O ministro brasileiro, acenando com o perigo comunista, solicitou maior investimento de capitais americanos no processo de industrialização do país. O professor Moniz Bandeira constatou, corretamente, que essas palavras espelhavam "o estado de ânimo da burguesia brasileira, na qual a solidariedade de classe (cooperação com os Estados Unidos no caso da guerra contra a União Soviética) não excluía a luta pelos seus próprios objetivos de desenvolvimento (montagem de indústria de base e de meios de produção)". Embora fosse um desenvolvimento baseado no financiamento externo. Vargas procurava tirar algumas vantagens econômicas desta subordinação e do perigo de um novo conflito mundial.

Naquele momento, o principal interesse dos Estados Unidos – além do apoio militar na Coreia – era o acesso aos minerais estratégicos, como as areias monazíticas, necessários à sua indústria bélica. Isto exigia a eliminação de todos os entraves burocráticos existentes na legislação brasileira. O Ministério das Relações Exteriores se mostrou favorável à rápida retirada destes obstáculos, mas propôs como contrapartida "créditos bancários (...) para execução de um programa racional de industrialização”. Insistiu também para que os Estados Unidos instalassem no nosso país empresas que industrializassem essas matérias-primas. Coisa que eles ainda não estavam dispostos a fazer.

Em abril de 1951 – logo após a posse de Vargas –, o presidente Harry Truman solicitou que o Brasil mandasse tropas à Coreia. O Conselho de Segurança Nacional então decidiu-se pelo envio de mensagem ao Congresso brasileiro na qual sugeria a "cessão de bases, portos e passagem de tropas (dos EUA) pelo nosso território" e propôs iniciar um processo de "preparação psicológica do povo tendo em vista organizar e manter intensa ação anticomunista de contrapropaganda e contrassabotagem". O general Góis Monteiro ficou encarregado de elaborar planos visando, entre outras coisas, à "participação das forças armadas brasileiras na defesa do continente americano e a formação de uma grande unidade a ser colocada à disposição da ONU, com o emprego inicial, na Europa". Os generais brasileiros desejavam participar do conflito Leste-Oeste – na defesa do “mundo livre” – em grande estilo. Queriam ir à Europa e não para a longínqua Coreia. Não era exatamente isso que Truman tinha em mente.

A pressão americana sobre o governo brasileiro para o fechamento de um acordo militar recrudesceu após a explosão da terceira bomba atômica soviética em outubro de 1951. Isso resultou no estabelecimento do famigerado Acordo Militar Brasil – Estados Unidos, através do qual o país apoiaria toda ação de guerra que os Estados Unidos empreendessem contra o comunismo. Ele continha cláusulas que obrigavam o país a adotar medidas de proteção aos produtos e capitais norte-americanos e a vender aos nossos “irmãos do norte” manganês, urânio e areias monazíticas por um preço abaixo do seu valor no mercado internacional.

A discussão sobre o conteúdo do acordo se deu às margens do Ministério da Guerra, encabeçado por Estillac Leal, que se demitiu do cargo. No confronto entre as tendências internas do governo, a ala nacionalista perdeu o seu maior e mais combativo representante. Em 2 de junho de 1952, o governo ainda firmou outro acordo – secreto – pelo qual a força aérea estadunidense ficava autorizada a fotografar todo território brasileiro, com o objetivo de elaboração de um plano estratégico de defesa continental. A indignação dos setores nacionalistas chegou ao seu auge. O governo guinava perigosamente para o lado dos Estados Unidos. Neste momento, a opinião dos comunistas de que o governo Vargas era um mero “títere do imperialismo norte-americano” – embora incorreta – não parecia tão estapafúrdia assim.

A saída de Estillac Leal do Ministério da Guerra deixou o campo livre para que os militares mais conservadores – e pró-americanos – assumissem os principais postos. Fortaleceu-se o movimento de "caça às bruxas" no interior das forças armadas, com a complacência de Getúlio Vargas. Processo que contou com o apoio decidido da grande imprensa. Inúmeros oficiais nacionalistas foram afastados para regiões distantes ou colocados em funções burocráticas, sem tropas. Militares comunistas foram processados e expulsos.

Vargas, em sua mensagem ao Congresso Nacional na abertura da sessão legislativa de 1953, afirmou: "Ainda no campo da segurança pública há que registrar a usual ação preventiva e repressiva do governo contra as atividades subversivas, no curso da qual se empenhou o Ministério da Justiça e Negócios Internos, em colaboração com as autoridades militares, em reprimir a prática de atividades subversivas nas Forças Armadas, especialmente nos contingentes sediados no Distrito Federal. Um inquérito policial-militar foi aberto e procederam-se várias diligências, tendo-se formado, no Exército, na Marinha e na Aeronáutica, a presunção de culpabilidade de dezenas de indiciados, sendo vários oficiais”.

Um dos resultados dessa política repressiva foi a derrota da chapa nacionalista, encabeçada pelo próprio Estillac, na eleição do Clube Militar em 1952. Assim, a esquerda militar foi sacrificada, pelas mãos de Vargas, no altar da guerra fria. A ala nacionalista passou a ter reforçada a sua desconfiança em relação ao presidente.

(foto: campanha O Petróleo é Nosso!)

Outro fato que mostra as contradições do governo foi o processo de criação da Petrobras. Em dezembro de 1951, o projeto foi enviado ao Congresso Nacional. A nova empresa seria mista e aceitaria a participação de capital privado nacional e estrangeiro. A proposta foi alvo de um duro ataque dos setores nacionalistas. O Clube Militar, ainda nas mãos da esquerda, qualificou o projeto de Vargas como "profundamente nocivo à soberania nacional e à segurança militar de nossa Pátria". A Convenção Nacional de Defesa do Petróleo denunciou-o como “impatriótico e de índole entreguista”. No início do ano seguinte, o deputado nacionalista Euzébio Rocha apresentou um substituto excluindo o capital privado da exploração do petróleo nacional.

A campanha em defesa do monopólio estatal do petróleo, que tinha hegemonia dos setores militares nacionalistas, foi reprimida tanto no governo Dutra quanto no governo Vargas. O movimento era associado à “ação solerte dos comunistas”.

A pressão popular fez o governo retroceder e estabelecer o monopólio sem a participação do capital estrangeiro, admitindo a presença do capital privado nacional. O recuo isolou os nacionalistas mais radicais, entre os quais se incluíam os comunistas. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em setembro de 1952. No Senado ele foi alterado favoravelmente aos interesses dos trustes estadunidenses. Contudo, as emendas privatistas foram derrubadas e o projeto estabelecendo o monopólio estatal foi aprovado em julho de 1953. Alguns meses depois a lei criando a Petrobras era assinada por Vargas. Naquele momento, porém, o governo já estava em conflito aberto com os setores anti-industrialistas e em pleno processo de radicalização da sua política nacionalista.

O governo Vargas – como o anterior – também reprimiu as manifestações do movimento dos “partidários da paz”, dirigido pelos comunistas. Em 1952 numa outra mensagem anual ao Congresso Nacional, o presidente declarou: “Na mesma linha de ação subversiva vale destacar as iniciativas e os movimentos conhecidos como ‘ação pró-paz’, que constituem o mais recente disfarce da atividade comunista. Os movimentos ‘pró-paz’ (...) conseguem, de um lado, submeter à influência do comunismo setores da população que repudiariam sua ação ostensiva. Por outro lado, dificultam a repressão das autoridades, porque visam, nominalmente, a propósitos perfeitamente legais. Não obstante, esses movimentos têm sido cuidadosamente fiscalizados pelas autoridades e, ainda recentemente, o Ministério da Justiça decidiu proibir a realização do I Congresso Continental da Paz”. Este teve que se realizar em Montevidéu. O PCB, corretamente, relacionou a decisão governamental à pressão política dos Estados Unidos.

As contrapartidas econômicas por parte do governo Truman foram pequenas. Em julho de 1951 constituiu-se uma comissão mista Brasil/Estados Unidos, mas em dezembro de 1953 ela foi extinta por decisão do novo governo estadunidense. As relações entre os dois países haviam piorado com a eleição do general republicano Dwight Eisenhower. Ela representou a consolidação dos setores da grande burguesia industrial e dos grandes financistas que tinham como projeto manter a divisão internacional do trabalho e, portanto, não demonstrava qualquer interesse em investir na industrialização de países periféricos como o Brasil.

O PÊNDULO PARA A ESQUERDA

Em março de 1953 eclodiu uma das maiores greves operárias da história brasileira. Durou cerca de um mês e envolveu 300 mil trabalhadores paulistas. O Partido Comunista do Brasil (PCB) teve um papel destacado neste movimento, que exerceu um forte impacto na vida política nacional. Centenas de trabalhadores foram presos e espancados pela polícia. Poucas semanas depois entraram em greve nacional mais de 100 mil marítimos. Estas paralisações criaram as condições para que se constituísse um embrião de central sindical, o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), sob hegemonia comunista. As bases sociais do trabalhismo e do getulismo estavam sendo fortemente corroídas por essas paralisações.

(foto: posse de Jango no Ministério do Trabalho) Em 15 de junho de 1953, visando a recobrar o terreno perdido no movimento operário e sindical, Vargas indicou João Goulart para o Ministério do Trabalho. A reforma ministerial, no entanto, foi mais abrangente e alterou seis dos sete ministros civis. Ela derrubou o americanófilo João Neves da Fontoura do Ministério das Relações Exteriores e o liberal Horácio Lafer do Ministério da Fazenda. Neste mesmo processo houve o fortalecimento da Assessoria Econômica da Presidência da República, comandada pelo nacionalista Rômulo de Almeida.

Com essa alteração Vargas não rompeu completamente com a política de conciliação. Estranhamente, no auge dos ataques da UDN, o presidente indicou para o seu ministério políticos vinculados àquele partido oposicionista, como José Américo de Almeida (pasta de Viação e Obras), Osvaldo Aranha (pasta da Fazenda) e Vicente Rao (pasta de Relações Exteriores). E manteve Cleofás no Ministério da Agricultura. Por isso, foi acusado pelos comunistas de trocar seis por meia dúzia. O que eles não viam é que, apesar desses nomes, a política do governo, pressionada pelo movimento operário e pela oposição entreguista, já ensaiava uma mudança de rumo.

No final do ano – em outubro – Vargas sancionou a lei que estabelecia o monopólio estatal do petróleo. Em 20 de dezembro, denunciou os excessos cometidos pelas empresas estrangeiras instaladas no Brasil e, em janeiro do ano seguinte, assinou decreto que estabeleceu um limite de 10% para remessas de lucros e dividendos para o exterior. Neste mesmo período foi aprovado um plano de eletrificação, que seria o embrião da Eletrobrás.

Em fevereiro de 1954, Goulart apresentou a ousada proposta de reajuste de 100% no salário mínimo. Um valor 54% acima da inflação acumulada no período. Levantou-se uma onda de protestos por parte da burguesia e dos setores mais conservadores da sociedade. Oficiais das forças armadas lançaram o documento conhecido como Memorial dos Coronéis, no qual criticavam o aumento salarial, acusando-o de ser inflacionário e de subverter os valores profissionais. Surgiram acusações de que Vargas e Jango queriam instaurar no país uma República Sindicalista nos moldes de Perón na Argentina.

O núcleo da oposição a Vargas desde o início do governo era composto pelas frações comerciais da burguesia e de seus aliados: as classes médias tradicionais. Estes setores sociais eram porta-vozes do liberalismo econômico e se opunham a qualquer tipo de intervencionismo estatal. Sua expressão política maior era a UDN que tinha entre as suas principais lideranças o jornalista Carlos Lacerda.

Diante da pressão conservadora, o governo ensaiou um recuo e destituiu Goulart. Porém, a medida não aplacou a oposição de direita. Em abril, João Neves da Fontoura, ex-ministro de Vargas, denunciou uma suposta articulação entre os governos brasileiro, chileno e argentino para se opor aos interesses dos Estados Unidos na região. Um verdadeiro crime contra o “mundo livre” numa época de guerra fria. Em 16 de junho, a oposição solicitou o impedimento de Vargas – proposta que foi rejeitada por uma ampla margem de votos. Restava agora o caminho do golpe militar.

Vargas, então, decidiu manter a radicalização do regime. No primeiro de maio de 1954, num ato inesperado, fez um discurso dirigindo-se aos trabalhadores no qual afirmava: “Hoje vocês estão com o governo. Amanhã vocês serão o governo” e apresentou o decreto de reajuste de 100% do salário mínimo, índice que havia sido o motivo para destituição de Goulart poucos meses antes. A sorte estava lançada.

O governo fazia uma inflexão na sua estratégia e apontava para uma aliança preferencial com as classes populares. Era uma alteração significativa em relação à política de conciliação adotada até então. O Partido Comunista não compreendeu este movimento, mas as classes dominantes sim. Até setores da burguesia industrial – beneficiados pela política desenvolvimentista – passaram a aderir à oposição golpista, temerosos da radicalização do regime e de sua aproximação das massas populares. A partir de então foi sendo constituída uma Frente Única contra Vargas, o que acabou acarretando a sua destituição.

No seu projeto de programa, publicado em dezembro de 1953, quando Vargas já havia avançado na sua guinada à esquerda, os comunistas erroneamente ainda afirmavam: “O governo Vargas tudo faz para facilitar a penetração do capital americano em nossa terra, a crescente dominação dos imperialistas norte-americanos e a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos (...). A política externa do governo Vargas é ostensivamente ditada pelo Departamento de Estado norte-americano, sendo a delegação brasileira na ONU mundialmente conhecida por sua atuação subserviente ao governo dos Estados Unidos”.

Segundo eles, o governo de Vargas continuava sendo “um governo de preparação de guerra e de traição nacional, um governo inimigo do povo”. Era “um instrumento útil e necessário aos imperialistas americanos e que facilitava a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos”. E concluía: “O povo brasileiro levantar-se-á contra o atual estado de coisas, não admitirá que o governo de Vargas reduza o Brasil a colônia dos Estados Unidos. O atual regime de exploração e opressão a serviço dos imperialistas americanos deve ser destruído e substituído por um novo regime, o regime democrático e popular”. Isto estava sendo escrito e divulgado quando o imperialismo e seus aliados internos já estavam preparando a derrubada do governo e sua substituição por outro mais afinado com os seus interesses.

O golpe contra Vargas

(foto: Atentado na rua Toneleros. Lacerda carregado por oficiais da aeronáutica)

O atentado na rua Toneleros contra o jornalista Carlos Lacerda e que ocasionou a morte do major Rubens Vaz, ocorrido em 5 de agosto, foi o pretexto encontrado para que o golpe de Estado fosse desencadeado. Apesar do envolvimento do chefe da guarda pessoal de Vargas, as investigações feitas pelos próprios inimigos do presidente não comprovaram qualquer envolvimento dele no crime.

No dia 9 de agosto, o Correio da Manhã pediu que Getúlio abdicasse do poder. “A renúncia do Presidente da República”, afirmou o jornal, “não significa uma derrota, nem uma humilhação. Deixará o governo sem ser deposto ou vencido (...). Um regime não é um homem, e está nas mãos do Senhor Getúlio Vargas o gesto patriótico de um sacrifício pessoal para que se mantenha de pé o regime e íntegra a constituição, juntamente com a ordem pública e a tranquilidade dos espíritos”. A mesma conclamação era feita diariamente pelo conjunto da grande imprensa nacional – à exceção do jornal Última Hora. A alta oficialidade das Forças Armadas, dirigida pelos setores entreguistas, já se movimentava para derrubar o governo constitucional.

Em 24 de agosto, diante do golpe militar em curso, o presidente suicidou-se. As condições de sua morte e, especialmente, o forte teor nacionalista de sua carta-testamento levaram a uma verdadeira rebelião popular nas grandes cidades brasileiras. As redações dos jornais e sedes dos partidos oposicionistas foram depredadas pela multidão enfurecida. O povo também atacou a embaixada dos Estados Unidos, encarada como principal articuladora do golpe. O líder civil da campanha contra Getúlio, e pivô da crise que levou ao golpe e ao suicídio, Carlos Lacerda, foi obrigado a esconder-se e depois deixar o país até que as coisas se acalmassem.

(foto: Caminhonetes do jornal O Globo destruídas durante os protestos pela morte de Vargas.)

Até o dia do golpe os comunistas se aferravam na sua postura de oposição sistemática ao governo. Em 6 de março, pelas páginas do jornal Voz Operária, Diógenes Arruda Câmara reafirmou a opinião de que Vargas era “um instrumento servil dos imperialistas norte-americanos”. No dia 12 de agosto, o jornal comunista paulista Notícias de Hoje afirmou que o conflito político de Vargas com a oposição entreguista, encabeçada pela UDN, era “uma luta entre dois bandos perfeitamente idênticos”, pois ambos defenderiam “uma política de submissão completa aos monopólios norte-americanos e ao governo de Washington”.

No mesmo dia do suicídio, o jornal comunista Imprensa Popular publicou uma longa entrevista com Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, na qual afirmava: “O sr. Vargas já confessou repetidamente que não se sente bem nas suas roupagens de presidente constitucional, mas falta-lhe ainda a força indispensável para realizar o golpe de Estado, liquidar os últimos vestígios constitucionais implantar a ditadura terrorista que almeja. Neste sentido, a ameaça maior vem da UDN, que cinicamente ainda pretende passar por oposicionista e que tem à frente um grupelho de generais fascistas (...) procuram apresentar-se como salvadores da pátria e pensam ainda poder enganar o povo, criar um ‘novo governo’ (...) que lhe permita, melhor que Vargas, realizar a política de traição nacional, de fome e reação impostas pelos trustes norte-americanos e pelo governo dos Estados Unidos”. Prestes concluiu que era necessário “defender a constituição e impedir qualquer golpe de Estado e militar, venha de onde vier”. Mesmo às vésperas do golpe iminente das forças entreguistas, ligadas à UDN e ao imperialismo, Prestes ainda tinha dúvidas de onde ele viria.

Os comunistas brasileiros não conseguiram ver diferenças entre os programas político e econômico dos dois grupos conflitantes. Vargas continuava sendo, no plano interno, o principal inimigo a ser derrotado. Por esta posição, acabaram sendo alvo ainda que secundário da revolta popular. No Rio Grande do Sul o jornal comunista Tribuna Gaúcha teve sua sede hostilizada e não depredada como ocorreu com os órgãos ligados à UDN.

Dando uma guinada abrupta na sua tática, os comunistas tentaram se aproximar das massas e dos políticos getulistas. Um documento publicado logo em seguida à morte de Vargas afirmava: “O momento exige que trabalhistas e comunistas se deem fraternalmente as mãos e que juntos lutem em defesa das leis sociais conquistadas” e apelava para que os “operários e operárias, camaradas trabalhistas” reforçassem “as fileiras do Partido Comunista”.

Sob o impacto da morte de Vargas e redução das tensões internacionais, a tática comunista se tornou mais flexível e menos sectária. O Partido passou a propor uma política de alianças envolvendo outros partidos como o PTB e o PSB e mesmo setores progressistas de outros partidos das classes dominantes. Infelizmente, as lições daquele trágico dia 24 agosto de 1954 não foram suficientes para impedir que os mesmos erros fossem comedidos às vésperas do fatídico dia 31 de março de 1964.

* Esse artigo foi publicado originalmente no portal Vermelho em 2004. 

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

 

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