Ainda é preciso fazer muito por um Brasil democrático, sem fome e sem miséria. Mas a pequenez dos argumentos pelo impeachment demonstra como está viva a luta de classes
Por Cristina Fróes de Borja Reis, Fernanda Graziella Cardoso e Vitor Eduardo Schincariol
22 milhões de brasileiros, 10% da população, saíram da extrema pobreza entre 2011 e 2014, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas): 3,1 milhões da região Norte, 13,8 milhões do Nordeste, 3,5 milhões do Sudeste, 1 milhão do Sul e 0,7 milhão do Centro-Oeste. Em 2014 o Brasil finalmente não estava no mapa da fome mundial da FAO.
A libertação de uma vida de privações é um direito humano fundamental, e não pode ser tratada como mera estatística. É injusto tamanho êxito ser esquecido ou diminuído por argumentos de menor relevância ou que desvelam um desprezo que não pode ser outro senão fruto de perda de espaço na luta de classes: “mas gerou inflação”, “mas não se sustenta”, “só pra ganhar votos”, “mas não ensina a pescar”, “à custa de quem trabalha de verdade”, “inclui um monte de malandro que forja dados para receber o benefício”, “mas causa desvio de verbas e corrupção”, “ainda temos muitos problemas”.
Essas reações nem fazem cócegas à retumbância social e política da redução do sofrimento de milhões de adultos e crianças, que deixaram de ter fome e saíram da miséria, atingindo, porém, uma condição melhor de vida que é ainda dezenas de vezes mais difícil do que à daquela minoria da população que detém mais da metade da riqueza nacional. Segundo dados da ONU, em 2014 os 20% mais ricos concentravam cerca de 60% da renda nacional. Outras conquistas são notáveis, como a redução da parcela da população pobre de 22,3% a 7,3% do total entre 2004 e 2014, a matrícula de 98,5% do total de crianças de 6 a 14 anos na escola em 2014, a redução significativa da mortalidade infantil e da mortalidade materna após o parto. Todas essas metas constitutivas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs).
Os 22 milhões têm de ser lembrados, estudados, defendidos, para se lhes continuar agregando novos milhões – e para evitar que esses voltem à situação anterior, de privações. Determinantes? Os esforços da nação que democraticamente escolheu representantes que exerceram as políticas públicas do Plano Brasil sem Miséria – que agrupa um conjunto de ações em três eixos, que são a garantia de renda, a inclusão produtiva e a expansão do acesso aos serviços públicos – e um regime econômico favorável à redução da taxa de desemprego e à valorização do salário mínimo real. Especificamente com relação ao Bolsa Família, alvo de tantas críticas e preconceitos, note-se que constitui o principal programa de garantia de renda, um dos programas de transferência de renda mais bem-sucedidos do mundo, e hoje atende cerca de 13 milhões de famílias, para qual os gastos do orçamento familiar equivaliam a 0,5% do PIB em 2014.
Além das políticas sociais, o combate à fome e à pobreza contou com uma política oficial de valorização do salário mínimo (notadamente após 2007, por meio de decreto que se tornou lei em 2011). Concomitantemente aos aumentos reais do salário mínimo, elevaram-se a ocupação, a formalização, os rendimentos do trabalho e a massa salarial. Assim, de modo geral, o crescimento da economia desde 2004 até 2014 alavancou o mercado de trabalho até alcançar as taxas mais baixas de desemprego da experiência democrática iniciada em 1985. A dinâmica positiva do emprego não pode ser dissociada das políticas de inclusão social e de medidas econômicas expansionistas, tais como a ampliação do crédito ao consumidor e ao mutuário, o Programa de Aceleração do Crescimento(PAC) e os planos posteriores de alavancagem do investimento público e privado em infraestrutura, a expansão da Petrobras e de sua cadeia produtiva.
Entretanto este padrão de crescimento encontrou seus limites: a taxa de crescimento do PIB brasileiro de 2011 a 2015 foi declinante, até tornar-se negativa, graças a diferentes processos econômicos e políticos, internos e externos. Além da morosidade da recuperação dos países centrais atingidos pela crise internacional e da reversão no preço das commodities – essencialmente do petróleo -, a política econômica combinou câmbio real valorizado, abertura ao capital internacional, queda da receita fiscal do governo central em termos do PIB (particularmente devido às desonerações concedidas ao setor industrial) seguida por uma política monetária mais conservadora de ajuste, sobretudo a partir de 2013 e intensificada a partir de 2015. Apesar dos diversos investimentos em educação, ciência e tecnologia, e de progressos pontuais nas iniciativas de incentivo à inovação, a matriz produtiva não se sofisticou ao longo dos anos 2000 e 2010 – ao contrário, o comportamento setorial da economia registrou uma progressiva queda da participação da indústria de transformação no PIB, dada em conjunto com um aumento relativo ao PIB das importações, particularmente de bens manufaturados. Na interpretação estruturalista, a mudança rumo a atividades mais sofisticadas é condição para o desenvolvimento econômico, pois geraria os mecanismos internos de sustentação do emprego, com elevação da produtividade e dos salários.
À reversão do ciclo econômico, soma-se a intensa crise política e institucional que o país atualmente enfrenta, o que dificulta ainda mais a alteração da trajetória econômica negativa, por ao menos esses motivos relacionados: a virada do capital em relação ao trabalho – já que o poder de barganha do último e os salários efetivamente pressionaram os lucros do primeiro grupo, que historicamente se organizam para promover reformas conservadoras; a deterioração da Petrobras, principal empresa nacional e que representava diretamente cerca de 10% da formação bruta de capital fixo; a incerteza dos atores econômicos, que tendem a evitar gastos de consumo e investimento; e uma menor margem de manobra de atuação governamental, uma vez que o governo, num momento de crise, além de ter menos recursos para efetivar políticas públicas, ainda enfrenta a desconfiança de diversos setores da sociedade.
Por outro lado, ainda há muito a se fazer pelo povo. Em momentos de crise essa urgência se mostra mais gritante. Como bem expressa o manifesto das Periferias e dos movimentos sociais em defesa das causas da população mais pobre das periferias e do campo, dos negros, dos índios, das mulheres, dos LGBTs, dos jovens, do meio-ambiente, da cultura, do folclore e vários outros, milhões de pessoas não somente não são contempladas pelos bens públicos e direitos sociais, como são a parte prejudicada pelas assimetrias econômicas e políticas, vivendo em condições de vida precárias, sendo diariamente atacadas pelo preconceito, racismo, opressão que redundam em um nível intolerável de violência, considerada epidêmica pela ONU, que em 2014 assinalou mais de 52 mil homicídios, cerca de 142 por dia em todo o país.
Assim, embora o Plano Brasil sem Miséria e as políticas sociais que o antecederam partissem da avaliação correta de que cabe ao Estado realizar políticas que produzam transformação estrutural das condições de vida da população extremamente pobre, ainda há muito a se fazer. Como a dinâmica política e econômica não foi capaz de engendrar mecanismos sustentados de sofisticação da matriz produtiva ao longo dos anos noventa, 2000 e 2010, autonomamente não haverá novo fôlego do investimento e do consumo com base na ampliação dos mercados externos, sobretudo em um contexto de crise internacional consolidada. Desprovidos desses mecanismos, não houve diminuição significativa das assimetrias de renda e riqueza no Brasil. Tampouco se comprovou a paralela elevação substancial da oferta e da qualidade de serviços públicos para atender às novas demandas de padrão de vida da população relacionadas à educação, saúde, moradia, transporte e cultura – o que concorre para a queda progressiva do apoio da população ao governo.
Portanto, não há solução para o desenvolvimento além da alteração do perfil distributivo a favor dos mais pobres, com um regime macroeconômico expansivo e o Estado forte, com melhoria de sua eficácia tributária. Nesse sentido, de um lado as políticas sociais e a valorização do salário mínimo têm de continuar e, por outro lado, dever-se-ia elevar o imposto de renda sobre os grupos mais ricos (muito baixo no Brasil, máximo de 27,5% para as rendas mais altas), sobre as finanças e grupos financeiros, sobre as exportações de commodities, bem como aumentar o rigor de fiscalização tributária, diminuindo a evasão. Além de expandir a própria capacidade tributária do governo e consolidar um perfil distributivo mais justo, tributar e regular melhor as finanças contribuiria inclusive para a queda da taxa de juros, incentivando o investimento produtivo e aliviando as finanças públicas, já que o pagamento daqueles tem comprometido quase a metade do orçamento do governo central nos últimos meses. Ademais, as políticas monetárias e fiscais devem ser coerentes em relação aos objetivos de crescimento com distribuição, aliando-se a uma taxa de câmbio real competitiva.
Para os 22 milhões de brasileiras e brasileiros sustentarem condição de vida superior à da extrema pobreza, e para que as conquistas sociais se multipliquem hoje e no futuro, temos de resistir, repudiar e lutar contra o projeto econômico e político conservador em curso. Como explicitamente assumido no programa do PMDB e nos projetos de lei em trâmite propostos pelas alas conservadoras do Congresso, o impeachment de Dilma Rousseff será um golpe que vai acelerar o desmonte das políticas públicas e aumentar as assimetrias de poder e riqueza no país. Sem a superação das privações mais elementares e sem inclusão social, não há democracia que se concretize e se sustente. Pelo Brasil sem miséria e sem fome, continuemos a lutar.
Cristina Fróes de Borja Reis, Fernanda Graziella Cardoso, Vitor Eduardo Schincariol – Professores de Economia e de Relações Internacionais da UFABC.
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