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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Denúncias no Brasil e no Exterior mostram que a violência contra a mulher persiste


- Reproduzo neste blogdoorro a publicação que recebi por imei, da incansável batalhadora profa. Suely Molina, da PUC-GO. 
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Zero Hora. CADERNO PROA

Porto Alegre, 22 de novembro de 2014 (acesso em 25/11/2014)





cultura do estupro

Denúncias no Brasil e no Exterior mostram que a violência contra a mulher persiste

Episódios põem a nu a permanência de uma mentalidade de posse masculina sobre o corpo feminino

Denúncias no Brasil e no Exterior mostram que a violência contra a mulher persiste Andrew Burton/Getty Images/AFP
Em protesto artístico, a estudante Emma Sulkowicz, da universidade Columbia, em Nova York, carrega pelo campus o colchão no qual foi violentada por um colegaFoto: Andrew Burton / Getty Images/AFP

Abrigo de uma fatia notável da elite intelectual e econômica brasileira, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) revelou-se também uma casa de horrores. Nos últimos dias, o depoimento de alunas de um dos cursos de ingresso mais disputado do país estarreceu a opinião pública. Alimenta-se no campus uma cultura de opressão e intimidação às mulheres, que alcança, em festas de recepção a calouros e outras celebrações do calendário acadêmico, o mais sórdido dos limites, a violência sexual. Seguiu-se à humilhação e ao trauma uma forte pressão para que as vítimas não denunciassem os abusos, notícia que representaria um abalo arrasador à reputação da instituição.

– Fiquei totalmente perturbada. Transformou minha vida para sempre. A universidade não pode mais ser conivente. Tem que parar esse ciclo de silêncio e violência – desabafou uma aluna em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

O tema voltou com força à pauta de discussões de especialistas e grupos feministas. Pesquisadora com foco em sexualidade, gênero e mídia, Marcela Pastana, psicóloga e doutoranda da Universidade Estadual Paulista (Unesp), observa o comportamento dos frequentadores de festas universitárias. Em rituais de inserção na faculdade que costumam ser classificados como brincadeira, Marcela enxerga uma prática de humilhação.

– É muito comum, em trotes, as meninas lavarem o banheiro, servirem os meninos, vestirem-se de empregadas. Nos jogos, as músicas cantadas as depreciam. Nas festas, mulheres não pagam e têm bebida à vontade porque o papel delas é ficar à disposição. Tudo isso culmina no apagamento da mulher. Ela é vista como um passe livre – lamenta a psicóloga.

Coordenadora do Coletivo Feminino Plural, de Porto Alegre, Telia Negrão identifica uma “cultura do estupro” no Brasil. Segundo Telia, em uma sociedade que ainda se sustenta no formato patriarcal, de vigorosa feição racista, a noção de que as mulheres “não se pertencem” e são uma parte menos importante do conjunto de indivíduos está incrustada nas relações afetivas, familiares, sociais, políticas e de trabalho, sem distinção de classe social ou escolaridade. Políticas públicas, ainda que existam, são insuficientes, na opinião da ativista, para fazer frente ao hábito da impunidade.

– As mulheres são intimidadas, atemorizadas, têm medo de reagir. O medo é o elemento mais paralisante antes, durante e depois da denúncia. Elas deixam de denunciar por medo. Quando denunciam, têm mais medo ainda, é o momento de maior risco. E depois que denunciam vêm o medo da reação posterior e a culpa. A mulher é culpabilizada pela violência sofrida – avalia Telia.

A possível vinda ao Brasil de Julien Blanc, que se define como um “artista da pegação”, também provocou revolta e mobilização: um abaixo-assinado no site Avaaz coletou mais de 405 mil assinaturas na tentativa de impedir a entrada do palestrante no país. Barrado também na Austrália e na Inglaterra, o suíço radicado nos Estados Unidos ensina técnicas consideradas agressivas para abordagem na paquera, como a de um quase sufocamento. “Nós mulheres brasileiras viemos lutando incansavelmente contra a cultura do estupro e da violência contra nossos corpos em nosso país. Esse homem não é apenas um criminoso, mas um disseminador da cultura de todas as formas de violência contra a mulher, e pedimos aos senhores que não permitam sua presença e sua influência sobre nosso país”, diz a solicitação dirigida à Divisão de Imigração do Itamaraty. Deu certo. Eleonora Menicucci, ministra da Secretaria de Políticas da Mulher, garantiu que, caso seja solicitado pelo viajante, o visto não será emitido.

Ativista do Avaaz, Nana Queiroz é porta-voz do caso Julien Blanc no Brasil. A jornalista se notabilizou em março, em frente ao Congresso Nacional, quando deu início a um protesto posando para uma foto, de topless, com os dizeres Não Mereço Ser Estuprada nos braços. A indignação ecoou pelas redes sociais, resultando na adesão de pelo menos 200 mil participantes em poses semelhantes, incluindo celebridades como Fatima Bernardes e Daniela Mercury. Nana rebelou-se contra o levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) indicando que 65% dos entrevistados acreditavam que mulheres vestidas com peças curtas deveriam ser violentadas. Logo se descobriu que o dado estava equivocado, mas o número corrigido também continuava a chocar: 26% dos brasileiros, um em cada quatro, concordavam com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

– Cerca de 80% dos casos de estupro não ocorrem no beco escuro à noite, mas com o xaveco forçado que passa do limite ou dentro de casa. O que ele (Blanc) está pregando é a ideia de que a mulher é uma presa na caçada e que vale qualquer coisa para conseguir sexo – define Nana.

Aproveitando a súbita notoriedade à época do manifesto, a jornalista encaminhou à presidência da República um projeto, elaborado por especialistas voluntários, sugerindo a inclusão do tema da violência sexual na grade curricular das escolas, desde a Educação Infantil – até agora, não obteve retorno.

– A lei hoje não prende nem multa ninguém por encoxamento no transporte público. Tem uma lei tramitando no Congresso que criminaliza o encoxamento no ônibus e o xaveco forçado. Está congelada, ninguém se interessa em botar isso em votação. Deixar o Julien Blanc fora do Brasil é uma vitória pontual. A longo prazo, temos de passar leis e reformar o sistema de ensino – afirma.

Assessora jurídica da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, da Capital, Lívia de Souza também pensa que a forma mais eficaz de evoluir é levar o debate sobre as questões de gênero para as salas de aula e implementar campanhas que fortaleçam o princípio da autonomia da mulher. Em um sistema tão tolerante com as transgressões, falta a punição não só aos crimes mais graves, mas também para os de menor potencial ofensivo.

– Temos que criar um mecanismo para coibir também outras violências. Que mulher não respira fundo quando entra numa rua deserta e vê cinco homens vindo na sua direção? Existe a ideia torta de que mulher que não gosta de cantada não gosta de receber elogio. Não precisa ser violência física. De pequenas violências, que vão diminuindo a mulher, se vai a grandes violências – alerta Lívia.

ROMPENDO O SILÊNCIO

Inquérito na USP
Alunas do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) revelaram ter sido vítimas de violência sexual em eventos promovidos pela faculdade dentro do campus. Embriagadas em festas, foram atacadas por colegas e pessoas estranhas. Também vieram à tona casos de estudantes que sofreram agressão física ou foram vítimas de racismo e homofobia. O Ministério Público instaurou um inquérito civil para apurar as denúncias.

Abaixo-assinado
Com eventos agendados em Florianópolis e no Rio de Janeiro, Julien Blanc, um guru da paquera que treina homens para abordagens agressivas, gerou uma ruidosa manifestação online. Um abaixo-assinado no site Avaaz recebeu mais de 405 mil assinaturas pedindo que o Itamaraty negasse o visto ao visitante. A Secretaria de Políticas da Mulher afirmou que a entrada de Blanc no país não será permitida.

#NãoMereçoSerEstuprada
Em março, a jornalista Nana Queiroz iniciou na internet o protesto Não Mereço Ser Estuprada, posando de topless para uma foto em frente ao Congresso Nacional com a frase escrita nos braços. A indignação eclodiu a partir de uma pesquisa do Ipea em que 65% dos entrevistados concordaram com a afirmação “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. O instituto corrigiu o dado dias depois, mas o índice permaneceu alto: 26% dos participantes do levantamento admitiram estar de acordo com a frase.

Atrás das grades
Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por estuprar pacientes em sua clínica de reprodução assistida em São Paulo e procurado desde 2011, foi preso no Paraguai em agosto. A detenção do ex-médico, que sempre alegou ser inocente, encorajou vítimas a virem a público relatar os horrores por que passaram – muitas foram molestadas enquanto estavam sob efeito de sedativos para o tratamento de fertilização.

Entrevista

Lia Zanotta Machado: O conceito de "mulher de família" é prejudicial

Pesquisadora comenta que, na base da cultura do estupro, está o sentimento de posse sobre as mulheres

22/11/2014 
Lia Zanotta Machado: O conceito de "mulher de família" é prejudicial Agência Senado/Divulgação
Lia Zanotta Machado na audiência pública na Subcomissão Permanente em Defesa da Mulher, no Senado FederalFoto: Agência Senado / Divulgação

Professora titular de Antropologia na Universidade de Brasília, Lia Zanotta Machado realizou nos anos 1990 um estudo até hoje referência em questões de violência contra a mulher: ela ouviu 82 detentos da Prisão da Papuda, no Distrito Federal, e elaborou o quadro do imaginário daquela comunidade a respeito de estupros. Chegou à conclusão de que, para eles, o estupro parecia crime quando violava as relações de família e de posse. Por telefone, ela concedeu a seguinte entrevista:

Em sua pesquisa com detentos da Papuda, a senhora verificou que o estupro era visto por eles como um crime hediondo quando imaginado contra uma mulher da família, e com indiferença quando perpetrado contra as demais. Por que esta dupla visão?
As mulheres proibidas para um homem são as da própria família. Eles devem encontrar as mulheres para ter relações fora da família. E aí você tem uma divisão cultural antiga e completamente desatualizada: as mulheres “honestas”, “de família”, ou seja, que são filhas, irmãs, mães, e as que são “de ninguém”, as que ele pode ter porque em um primeiro momento não consegue atribuir família a elas. É uma questão de posse. Uma mulher proibida, interditada, é uma mulher “de família”, porque é da família de um outro. Você não pode ter a “mulher do outro”, porque nesse imaginário o que vale é a relação entre os dois homens. Se naquela família há um homem que controla aquelas mães, irmãs, filhas, não se pode tê-las, a não ser pelo casamento. As outras, que supostamente não têm homens, podem ser de qualquer um. Essa é a base para o imaginário das vadias, das que não são interditadas. Há uma ideia recorrente de que a iniciativa é masculina, então você poderia ter qualquer mulher – menos as proibidas por serem “de família”, seja a sua, seja a de outro.

E por que esse sentido de posse permanece até hoje?
Porque foi algo construído ao longo de toda nossa história, da história colonial, da história republicana. A própria família de um estuprador, quando se trata do homem, tende a relevar o estupro, e a tentar controlar as mulheres da família, trancadas em casa, com janelas fechadas e um homem de guarda. Essa ideia de que há “mulher de família honesta” e “mulher não honesta” é prejudicial, cria uma duplicidade como a que houve com um entrevistado da minha pesquisa, que estuprou uma mulher na rua e disse ter levado um susto quando soube que a mulher havia ligado para o irmão. Ele ficou: “Como, essa mulher tem irmão?”. Porque, para ele, uma mulher que estava àquela hora na rua não tinha irmão, e portanto era vadia. Logo, ele podia tê-la.

Esse é também o sentido por trás da culpabilização da vítima?
Veja a justificativa que os homens dão, mesmo quando a moça “é de família”: “ela foi pra rua à noite, estava mal vestida”. Mesmo que seja a mais plena inverdade. A construção que os criminosos fazem, a narrativa que eles contam para os policiais, tentando se justificar, é que a mulher estava com roupas provocantes, à noite, sozinha. E essa mentalidade está tanto na cabeça dos estupradores quanto, em grande parte, na dos policiais que, quando uma mulher conta que foi estuprada, perguntam: “como você estava vestida?”, “o que você fez?”. É uma ideia acionada também por uma representação de que as mulheres que não são “de ninguém” e que “não se cuidam”, se tornam passíveis de ser objetos sexuais e tomadas à força. Elas não são interditadas. A construção da ideia da mulher vadia, que pode ser de qualquer um, prevalece, e é isso que leva até garotos a estuprarem meninas que não estão na rua, estão na mesma festa que eles.

Houve casos denunciados na Medicina da USP, o mais concorrido curso da maior universidade do Brasil. Ou da jovem estuprada em um campus de excelência como Columbia, nos EUA. É um pensamento que vai da prisão à universidade?
Sim, é impressionante, é exatamente isso. São duas coisas: tomar a posse da mulher e entender que as mulheres não dizem não, que o “não” significa “sim”. E não é só no Brasil, onde a violência já é grande. Acontece nas fraternidades americanas, em que garotos dão algo para as garotas beberem, para que fiquem com menos capacidade de impedir o ato, e então se apropriam delas, às vezes mais de um. E eles consideram essa uma relação como qualquer outra. Em 2010, eu estava na Columbia University e estive em um ato em que várias jovens, estudantes, acenderam velas, fizeram discursos denunciando estupros no campus. É um problema bem anterior ao da moça do colchão.

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