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antiterror ameaça a democraciaResultado da ânsia por justiçamento e do desejo governista de evitar um novo junho de 2013, projeto transformará tragédia pessoal em tragédia nacional


O assassinato do cinegrafista Santiago Andrade em manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus no Rio de Janeiro não vai abrir uma discussão para tornar a sociedade melhor ou gerar reflexões sobre a violência. No dia em que a família se despediu de Santiago, o Senado aproveitou a deixa e voltou a examinar o projeto de lei 499/2013, que tipifica o crime de terrorismo no Brasil e cuja aprovação abrirá as portas não apenas para mais autoritarismo das forças de segurança, mas também para a perseguição política.
A retomada do debate sobre PLS 499 é fruto de dois oportunismos distintos. O primeiro deles é a vontade dos parlamentares de reagirem ao assassinato de Santiago e mostrarem iniciativa aos eleitores em ano de votação. Para tanto, os congressistas agem como imaginam que a sociedade gostaria. Propor novas leis, assim, é quase que um reflexo instintivo em um país incapaz de garantir a segurança de seus cidadãos. A nova legislação é encarada como uma panaceia, mesmo diante do fato de muitas leis não serem cumpridas. Ao tentarem responder a quem, diante de uma tragédia, afirma que “alguém precisa fazer alguma coisa”, os senadores deixam escapar o óbvio: a atitude mais efetiva seria simplesmente cumprir as leis já existentes.
Tornar efetivas as leis em momentos de comoção nacional é sinal de maturidade de uma sociedade. Em 2011, quando Anders Behring Breivik massacrou mais de 70 pessoas em Oslo e na ilha de Utoya, a Noruega ficou traumatizada. Houve um amplo debate sobre o que fazer com ele, mas não foi preciso mudar as leis norueguesas. Ele foi condenado a 21 anos de prisão, a pena máxima do país. Nas palavras do então primeiro-ministro Jens Stoltenberg, o julgamento mostrou que Breivik falhou, pois não conseguiu o que queria: mudar a Noruega.
A demagogia da criação de leis está presente no PLS 499. Todas as infrações previstas no projeto poderiam ser enquadradas pela Justiça em crimes já tipificados, como sequestro, homicídio, dano qualificado, formação de quadrilha e apologia ao crime. A novidade é que essas infrações aparecem no projeto sempre atreladas ao crime de terrorismo, definido no artigo 2º do projeto como “provocar ou infundir pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de liberdade de pessoa”.
Uma definição tão subjetiva e genérica como essa é temerária, pois abre precedentes para movimentos sociais e até mesmo oposições políticas serem enquadradas como terroristas. Pela definição constante no texto, uma invasão de terras por parte do MST poderia ser classificada como terrorista, da mesma forma como as manifestações contra as tarifas do transporte público. Para evitar tal disparate, seria preciso qualificar cada ato específico como terrorista ou não, uma atribuição do Estado. Ocorre que, historicamente, os Estados definem terrorismo de forma a usar seu aparato policial e judicial para conter a dissensão política.
Aqui entra o segundo, e mais perigoso, oportunismo por trás do debate do PLS 499. Criado por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o projeto não tem como alvo rede terroristas internacionais como a Al-Qaeda. O próprio ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou na semana passada que os crimes comuns preocupam mais do que atentados durante o mundial. Como mostram as declarações dos senadores Jorge Viana (PT-AC) e Paulo Paim (PT-RS) a CartaCapital, os alvos da lei são os black blocs presentes nas manifestações por todo o país que assustam o governismo, pois podem ganhar corpo, afetar as eleições e, no limite, alijar o PT do Planalto.
Sinais do que poderia vir a ser uma perseguição política no contexto do PLS 499 estão postos neste exato momento em que se debate a morte de Santiago Andrade. Há uma tentativa de se atrelar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) aos assassinos do cinegrafista. Ao menos por enquanto não há qualquer prova sobre isso, mas ilações. Uma delas, feita pelo jornal O Globo, apresenta em tom de "denúncia" o trabalho de Thiago de Souza Melo, assessor parlamentar de Freixo. Melo é integrante do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DHH), organização que, entre outras coisas, prestou auxílio a Rafael Vieira, o morador de rua condenado a cinco anos de prisão por carregar pinho sol e água sanitária. Como o DHH também defendeu, em outro episódio, Fábio Raposo, um dos assassinos de Santiago, a atividade do instituto, assim como Thiago e o deputado do PSOL são apresentados na reportagem quase como foras-da-lei. É como se Rafael, Raposo ou qualquer outra pessoa não tivesse direito legítimo à defesa. Estivesse em vigor a lei prevista no PLS 499, não é de se duvidar que, além dos assassinos de Santiago, seriam denunciados como terroristas Freixo e seu assessor, estes por “incitar” o terror, crime previsto no artigo 5º do projeto.
O Brasil tem em sua legislação todos os meios necessários para punir Raposo e seu comparsa pela morte de Santiago Andrade. Criar uma nova lei, ainda por cima de espírito autoritário, à luz desta tragédia, não apenas não vai resolver o problema como vai plantar as sementes para o Estado se tornar ainda mais autoritário. Santiago morreu exercendo as liberdades de imprensa e expressão. Se sua morte servir para lançar as bases de um estado de exceção, a tragédia pessoal se transformará em uma tragédia nacional.