Carta Capital
Economia
Entrevista Rodrigo Orair
“'Jabuticabas' consolidaram subtributação do lucro no Brasil”
Dados recém-divulgados pela Receita Federal mostraram como os ricos pagam pouco imposto no Brasil. Uma das principais razões da boa vida é uma lei prestes a completar vinte anos, a 9.249. Ela garante duas alegrias ao andar de cima. Isenta de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) o dinheiro recebido por donos e acionistas de empresas na forma de lucros e dividendos. E permite às firmas inventar uma despesa, os juros sobre capital próprio, para reduzir o lucro sobre o qual pagam Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL)
Trata-se de verdadeiras “jabuticabas tributárias”, raríssimas pelo mundo, segundo o economista Rodrigo Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do International Policy Centre for Inclusive Growth, uma parceria entre o governo e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Em entrevista a CartaCapital, o economista explica a injustiça da tributação nacional, defende o fim das “jabuticabas” e desmonta os argumentos de que o fim da isenção seria bitributação. Para ele, o ajuste fiscal seria mais saudável, caso o governo mexesse nas “jabuticabas”. Atacar somente uma delas, a isenção dos lucros e dividendos, poderia render até 50 bilhões de reais por ano.
Leia a entrevista:
CartaCapital: A isenção de IRPF sobre lucros e dividendos é algo tipicamente brasileiro ou outros países a concedem também?
Rodrigo Orair: Entre os 34 países da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico], que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado, apenas três isentavam os dividendos até 2010. A Eslováquia retomou a taxação em 2011, por meio de uma contribuição social, e o México em 2014. Restou somente a Estônia. A Estônia é um caso peculiar. Na virada da década de 1990, após o fim do domínio soviético, implementou uma das reformas pró-mercado mais radicais do mundo. O resultado é que se tornou uma das economias mais liberais e desiguais da União Europeia, não considero que seja uma boa referência para um país continental e tão mais carente e desigual como o Brasil. Por isso, eu e o pesquisador Sergio Gobetti argumentamos em um recente artigo publicado no Valor Econômico que a isenção de lucros e dividendos é uma jabuticaba tributária.
CC: Depois de 20 anos de isenção, podemos chegar a alguma conclusão sobre a existência desta “jabuticaba”? Qual?
Orair: Ela não é a única jabuticaba. Existe também o juro sobre o capital próprio, criado pela mesma lei de 1995. É uma espécie de despesa fictícia que a empresa deduz do seu imposto de renda e paga aos acionistas como um tipo de dividendo. Esse valor deduzido, que seria tributado a 34%, passou a ser tributado a 15%. Como era até 1995? Os lucros da pessoa jurídica pagavam 34%, somando CSLL e IRPJ, e havia ainda uma alíquota de 15% sobre a distribuição de lucros e dividendos às pessoas físicas. Juntos, a isenção de lucros e dividendos e os juros sobre capital próprio reduziram substancialmente a tributação do lucro. Esta era de 43,9% até meados da década de 1990, somando o imposto pago por pessoas jurídicas e físicas, e agora estimamos que a taxa esteja abaixo de 30%. Podemos concluir com certeza que nossas jabuticabas consolidaram a subtributação dos lucros e tornaram nosso sistema ainda mais regressivo, pois os grandes beneficiários estão no topo. Outra coisa: o governo patrocinou essa lei com o suposto intuito de atrair capitais e incentivar investimentos, mas a literatura empírica carece de evidências conclusivas de que esses benefícios aos detentores de capital ampliaram os investimentos no país.
CC: O economista José Roberto Afonso acredita que a isenção tributária dos lucros e dividendos está encobrindo um processo de concentração de renda no País. Concorda?
Orair: Sem dúvida. A isenção é a principal responsável pelo fato de os muito ricos pagarem pouco imposto no Brasil e contribui para a concentração no topo da distribuição de renda.
CC: Então deveríamos deveria retomar a cobrança de IRPF sobre os rendimentos hoje isentos pela lei 9.249?
Orair: Sim. Promover justiça tributária é uma questão de cidadania. Um exemplo didático. Tomemos o estrato intermediário dos declarantes do imposto de renda em 2013, cerca de 1,5 milhão de pessoas com rendimentos anuais entre R$ 162,7 mil e R$ 324,4 mil. Em média, um cidadão desse estrato paga ao fisco 11,5% do total da sua renda. A situação é muito distinta no topo. Os muitos ricos, 71.440 pessoas de renda média de R$ 4,2 milhões, pagam apenas 6,1%. Se o cidadão paga muito imposto no Brasil ele mais provavelmente pertence à classe média do que aos muito ricos.
CC: Há quem diga que taxar lucros e dividendos é bitributação, pois o dinheiro pré-distribuição destes lucros e dividendos já foi taxado com IRPJ.
Orair: A prática mais comum nos sistemas tributários modernos é tributar os lucros das corporações após sua apuração contábil e tributar novamente os dividendos quando distribuídos aos acionistas. Pessoa física e pessoa jurídica são sujeitos distintos que não devem ser confundidos. Cada um é tributado uma vez. Esse é o modo de tributação que se disseminou no mundo ao longo do século XX. Está presente em quase todos os países da OCDE e existia no Brasil até 1995. Por que passamos a ser diferentes? Argumentos jurídicos tecnicistas muitas vezes obscurecem e despolitizam o debate.
CC: Os rendimentos do tipo “lucros e dividendos” estão bastante concentrados nos estratos mais ricos. A retomada da taxação deveria ser generalizada ou localizada em alguma faixa de renda? Por quê?
Orair: Defendo que seja reestabelecido o modelo vigente até 1995, em que os lucros e dividendos eram tributados exclusivamente na fonte à alíquota de 15%. Uma única distinção seria a possibilidade de manter a isenção dos rendimentos de sócios e titulares das micro e pequenas no regime Simples. Os dados da Receita Federal indicam que a maior beneficiária da isenção é uma minúscula elite, de cerca de 51.419 pessoas.
CC: Quanto seria possível arrecadar com o fim da isenção?
Orair: Estimamos um potencial de arrecadação de R$ 50 bilhões no ano de 2015 com o reestabelecimento da alíquota de 15% e uma projeção conservadora de crescimento no volume de lucros e dividendos. Caso haja isenção para sócios ou titulares das empresas enquadradas no Simples, o potencial de arrecadação seria de R$ 40 bilhões em 2015.
CC: Em tempos de ajuste fiscal, a maior taxação da riqueza poderia ser um caminho mais saudável para o equilíbrio das contas públicas? Por quê?
Orair: Sim. Podemos explorar mais os impostos sobre renda e propriedade, com a vantagem de não afetar tanto a já combalida economia como aconteceria com outras alternativas de aumento de carga tributária. A renda de dividendos está concentrada no topo da pirâmide e sua tributação não atingiria tanto os investimentos das empresas, mas principalmente uma pequena fração da poupança das famílias mais ricas. Refletir sobre nossas distorções é fundamental num momento em que o ajuste fiscal exige escolhas e em que as políticas distributivas por meio do gasto público mostram sinais de esgotamento. Enfim, o debate está aberto: vamos continuar mantendo jabuticabas tributárias?
CC: Em um país com tradição de taxar pouco a renda e o patrimônio, não chega a surpreender a existência de tais jabuticabas.
Orair: Exato. Como manter uma das sociedades mais desiguais do planeta? Isso requer estruturas e instituições voltadas para perpetuação do statos quo. A estrutura tributária é uma delas. Os sistemas político e judiciário são outros. Recentemente, a senadora Gleisi Hoffmann [do PT do Paraná] retirou de uma medida provisória a emenda que poderia acabar com os juros sobre capital próprio, argumentando que não há ambiente político para avançar em tais temas. Nosso Judiciário pode ser progressista em certas pautas de direitos civis, mas não é em temas relacionados à progressividade tributária. Aceitar alíquotas progressivas do IPTU foi uma luta que durou anos e ainda sofre contestações jurídicas. Alguns estados seguem batalhando para conseguir estabelecer alíquotas progressivas do imposto sobre herança. Imagina como seria com um imposto sobre grande fortunas.
CC: Por que o Brasil historicamente prefere taxar o consumo em vez da renda e do patrimônio? Isso revela o que sobre a sociedade brasileira?
Orair: O Brasil é uma experiência bastante curiosa. Por um lado, há um conservadorismo arraigado em relação ao papel progressivo da tributação. Por outro, o País se propôs a construir um Estado de bem-estar social que, com todos seus problemas, desempenha papéis importantes na redistribuição de renda via benefícios sociais e assistenciais e na oferta de serviços sociais básicos (saúde, educação e assistência). Isto tem um custo. Como fechar a conta? Via tributação sobre bens e serviços, que tem um caráter mais invisível, um caminho de menor resistência. O grande problema é que aqueles que mais pagam impostos sobre bens e serviços são justamente os mais pobres, que precisam consumir quase toda sua renda para suprir as necessidades mais básicas. Grande parte da ação redistributiva do Estado brasileiro acaba se resumindo a enxugar gelo. O Estado retira com uma mão dos mais pobres aquilo que devolverá com a outra.
CC: O resto do mundo, segue o sentido oposto, não? Inclusive os EUA, uma espécie de matriz sentimental daquelas vozes contrárias a mudanças no nosso sistema?
Orair: Sim. Na maior parte do mundo desenvolvido há um reconhecimento geral sobre a importância de um sistema progressivo. Os EUA são um excelente exemplo. A administração Bush cortou impostos nos anos 2001-2003 e isso vigorou até 2012. As alíquotas máximas de imposto de renda foram reduzidas para 35% nos ganhos de capital, 15% nos dividendos e 35% nas heranças. Todas alíquotas maiores que as vigentes hoje no Brasil. Em 2013, o quadro mudou. As reduções de alíquotas foram renovadas para a maioria da população e houve inclusive ampliação das deduções nos níveis mais baixos de renda. Mas as alíquotas sobre os mais ricos, com rendimentos tributáveis superiores a US$ 400 mil por ano, foram revistas e retomaram os níveis pré-Bush. A alíquota máxima do imposto sobre a renda voltou a 39,6%, a de dividendos e ganhos de capital para 20% e o imposto sobre herança para 40%. A experiência americana pode servir de exemplo para o Brasil. Não somente de progressividade dos impostos sobre a renda e propriedade, mas também pela coragem em voltar atrás nas mudanças na legislação que não se mostraram exitosas e por procurar não penalizar tanto os mais pobres durante o esforço de ajuste fiscal.
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