Sauditas financiam fundamentalismo que os EUA guerreiam
08 de janeiro de 2015 às 23h19
Comício do partido Aurora Dourada, da Grécia: a gente já viu este filme nos anos 30, com os comunistas no lugar dos imigrantes, inclusive muçulmanos
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por Luiz Carlos Azenha
2001. Universidade de Darul Uloom, Deoband, ao norte de Nova Delhi, na Índia — Eu e o cinegrafista Sherman Costa viemos conhecer a escola onde foi formulada a teologia do talibã. Uma mesquita novíssima ao lado do campus acaba de ser inaugurada. Nossa visita foi garantida por um excelente contato do nosso produtor indiano, Rajan. O jovem professor de informática que se dispôs a nos receber e ciceronear é mais aberto aos ocidentais, pelo envolvimento que tem com a internet. É através dela que os teólogos deobandi respondem a perguntas de fieis de todo o mundo. Eles buscam respostas sobre a interpretação do Alcorão para questões cotidianas.
Pergunto ao professor quem financiou a mesquita. Resposta: a Arábia Saudita. Trata-se da batalha travada no interior do islamismo, especialmente entre sunitas e xiitas. Montados no petróleo, os sauditas financiam a expansão de sua própria corrente do islamismo, o wahhabismo. Mas também dão dinheiro para outros sunitas dispostos a enfrentar os xiitas, especialmente os do Irã e do Iraque. É uma ironia que o dinheiro saudita financie, hoje, as principais correntes fundamentalistas, considerando que a Arábia Saudita é o principal aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio. Eram sauditas os autores do ataque às Torres Gêmeas, lembram-se?
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O poder da grana faz a mensagem saudita — que enfatiza uma interpretação ultraconservadora do Alcorão — chegar longe. Curiosamente, não atrai necessariamente os desesperados da periferia de Túnis ou do Cairo.i
Repercute especialmente entre os jovens da classe media baixa muçulmana, que encaram o desprezo dos europeus nas periferias de Paris ou Londres. Mais que uma saída religiosa, o fundamentalismo é uma porta de escape para se livrar do profundo sentimento de inferioridade. A humilhação privada e cotidiana nas ruas anda paralela à humilhação política e militar dos muçulmanos sob os Estados Unidos, Israel e os ocidentais.
Em Deoband, a universidade é uma válvula de escape para os filhos de agricultores pobres do interior da Índia. Aqui eles mergulham numa vida ascética. Não tem colchão, nem espelho, nem ouvem rádio, nem lêem jornal. As representações gráficas, inclusive do profeta, são banidas. O espelho seria um convite à vaidade, à egolatria, quando a ideia é justamente submeter o indivíduo à vontade maior, coletiva, da Ummah.
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Somos, os ocidentais individualistas da globalização consumista, uma ameaça à noção da comunidade. Por isso os estudantes nos olham extremamente desconfiados. Olhares de curiosidade — alguns, de ódio.
2003. Bagdá — Nosso motorista na capital iraquiana não é um fã de Saddam Hussein, mas acha que a invasão dos Estados Unidos, que se anuncia para as próximas semanas, será um desastre. Ele acha que acima de Saddam está o nacionalismo que une os iraquianos, independentemente de serem sunitas ou xiitas.
São resquícios do pan-arabismo. Aquele, do líder egípcio Gamal Abdel-Nasser. Houve, um dia, o sonho de uma grande nação árabe, socialista. Egito e Iraque chegaram a formalizar uma união, que nunca se concretizou. Ambos tiveram governos seculares e nacionalistas, um nacionalismo que pregava o controle dos recursos naturais (Suez e o petróleo, respectivamente).
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Talvez Sattar, o motorista, não tenha se dado conta de que a derrubada de Saddam tinha, também, esta dimensão: enterrar de vez o pan arabismo e seu nacionalismo que nunca interessou às potências ocidentais.
No Iraque, eu e o Sherman vimos pessoalmente a justificativa para os olhares de ódio em Deoband. Durante as sanções econômicas impostas pelas Nações Unidas ao Iraque, por mais de dez anos, a estimativa é de que entre 200 e 500 mil crianças tenham morrido por falta de comida e/ou de remédio. O sofrimento dos iraquianos comuns durante este longo período, raramente noticiado no Ocidente, enfureceu os muçulmanos quase tanto quanto o massacre de palestinos por Israel.
2008. Algum lugar do interior do Quênia, na África — Alguns matatus passam por nós na estrada. Estávamos a caminho da casa da família de Barack Obama.
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Os matatus são ônibus que fazem transporte urbano ou entre as comunidades. Costumam trazer as imagens de ídolos dos donos ou passageiros. Muhammad Ali. O imperador Haile Selassie. Osama bin Laden. Osama bin Laden? Perguntamos ao guia: como é que o autor de um pavoroso ataque contra civis, com mais de 3 mil mortes, pode ser idolatrado?
Ele nos respondeu que os muçulmanos locais tinham uma visão de longo prazo da História. Eles não se lembravam apenas do 11 de setembro. Tinham na memória a derrubada do governo nacionalista do Irã, a expulsão dos palestinos na nakba, o fracasso nos confrontos militares contra Israel, etc. etc. etc. Neste contexto, bin Laden tinha sido bem sucedido quando deu uma resposta às humilhações. Fiquei boquiaberto e calado, me perguntando se Obama, quem sabe, provocaria uma reviravolta na eterna “guerra ao terror”.
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2012. Karachi, Paquistão — Não, Obama não provocou uma reviravolta. Aquela geração lá de trás, que vi com o Sherman Costa em Deoband, cresceu. Cresceu testemunhando que neste mundo a resolução de conflitos se dá pela força. Pelo terrorismo. De estado ou assimétrico.
Há milhares de pessoas nas ruas e não é recomendado que circulemos à vontade na maior metrópole do Paquistão. Esta é a cidade em que o jornalista Daniel Pearl, do Wall Street Journal, foi decapitado. Padu e Lucas, os cinegrafistas, se misturam à multidão para fazer imagens. É um protesto de um grupo ultrafundamentalista, sunita, que denuncia os ataques de drones dos Estados Unidos contra civis. Suspeitos de terrorismo morreram, mas também morreram homens, mulheres e crianças que nada tinham a ver com a guerra de Washington.
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Um militar se aproxima para dizer que devemos abandonar as vestes ocidentais. Rumamos para o mercado para atendê-lo e compramos as longas batas tradicionais do país, nosso “disfarce”.
O Paquistão é um país pobre, que destina uma quantia considerável de recursos à manutenção de sua máquina militar. Bombas atômicas contra o inimigo número um, a Índia. Homens e fuzis contra o talibã, que quando interessava aos Estados Unidos o Paquistão ajudou a fomentar — era preciso afastar o “perigo comunista” do vizinho Afeganistão.
No Paquistão, a presença do Estado em serviços públicos é tão rala que Karachi está dividida entre milícias que representam interesses econômicos e religiosos.
Quando eu me sento com um líder sindical ligado ao agora minúsculo Partido Comunista local ele desabafa que nunca foi tão difícil militar: tanto o governo pró-Estados Unidos quanto os fanáticos religiosos que o combatem representam o feudalismo econômico. A luta social foi sequestrada pelo fascismo religioso, afirma ele na gravação.
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2013. Budapeste — O livro A ‘ameaça’ Cigana, editado por Michael Stewart, ocupa um lugar de destaque na vitrine da livraria. Logo vou entender o motivo. O partido Jobbik, de extrema-direita, está em ascensão na Hungria. Num contexto mais amplo, a extrema-direita cresce em todo o Leste Europeu.
Assim como o nacionalismo árabe não conseguiu dar resposta às demandas econômicas e perdeu espaço para o fundamentalismo religioso, aqui o neoliberalismo fracassou e é impensável uma guinada à esquerda — que encarnou até recentemente o colonialismo vindo de Moscou. O fracasso das reformas pós-queda do muro de Berlim se reflete nos números espantosos do desemprego. E na busca por bodes expiatórios.
Se apenas a Hungria retornasse ao seu passado pastoril, sem a “contaminação” dos ciganos e outros elementos “estranhos” ao corpo social…
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Com este discurso o Jobbik tem consistentemente obtido entre 15 e 20% dos votos. É um fenômeno regional. Na vizinha Ucrânia a extrema-direita já faz parte da coalizão governista. Russos e judeus são o alvo. Na Grécia, as tropas de assalto do partido Golden Dawn aterrorizam refugiados e imigrantes em geral. Perto deles, a Frente Nacional francesa e o Freedom Party holandês, que combatem a imigração e promovem a islamofobia, são moderados.
Comentaristas europeus atribuem a ascensão da extrema-direita aos efeitos persistentes da megacrise financeira que teve início em 2008 e afeta a economia de todo o mundo, inclusive muçulmano. Os extremos se encontram na Europa, em meio à crise.
Os irmãos Said e Cherif Kouachir, que cometeram a barbárie em Paris, são franceses. Um deles, preso anteriormente, declarou em seu julgamento que ficou ultrajado com a tortura cometida por soldados dos Estados Unidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque. São de uma família tão vulnerável que ambos foram tirados de casa e ficaram sob os cuidados do Estado francês. Cherif fez parte de uma rede de recrutamento de militantes para lutar contra a coalizão que ocupou o Iraque.
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É como se fizessem parte ao mesmo tempo dos dois lados da moeda. Em ambos predomina a busca por soluções violentas para enfrentar o ambiente de degradação econômica e social.
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