Por um capricho da história, coube ao comunista Flávio Dino (PCdoB) liderar no Maranhão uma situação parecida, ainda que diametralmente oposta, à dos países do Leste europeu após o fim da União Soviética: em vez de derrubar estátuas de comunistas, como aconteceu na Ucrânia ou na Rússia, Dino está arrancando placas com o nome “Sarney” de escolas, hospitais, creches, ruas e logradouros públicos praticamente privatizados pelo clã que dominou o Estado até sua vitória na eleição para o governo em 2014.
O governador tampouco deixa pedra sobre pedra ao analisar as razões pelas quais Dilma Rousseff está sofrendo este revés. Para Dino, o governo errou a dose no ajuste fiscal e se equivocou ao tentar capturar setores da elite em vez de fortalecer a base popular, num momento em que já havia no país uma tendência de deslocamento do centro político para a direita. “Só era possível enfrentar este movimento, esta caminhada do centro para a direita, fortalecendo a base popular do governo e não tentando agradar este movimento”, diz. “Os fatos mostram que o isolamento social do governo fragilizou e permitiu este velho golpismo latente da elite, que tem pouco apreço à Constituição e ao Estado de Direito.”
Flávio Dino não poupa críticas aos setores da classe média que se identificam com o golpe por ambições pessoais e não por preocupação com o futuro do país. “Parte da classe média se espelha no 1% da população, nos magnatas, no grande capital, mas jamais vai chegar lá. É o negócio do juiz dizendo: ‘não posso ir a Miami’. Ele se vê como o 1% que vai pra Côte d’Azur, que vai para Cannes, que vai badalar em Mônaco. Se isso é o paraíso –não é para mim, eu acho até de mau gosto–, a classe média nunca vai chegar lá. Mas ela fica desejando, uma parte expressiva dela acabou apoiando esse negócio com o sonho do paraíso do consumo.”
Estive em São Luis na semana passada para uma palestra, a convite da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, e aproveitei para entrevistar o governador Flávio Dino. Leia a seguir a entrevista onde ele fala de impeachment, do viés de baixa que vive a esquerda brasileira hoje, do neomacartismo crescente e, é claro, de socialismo.
Na sexta-feira anterior à votação do impeachment na Câmara, o senhor esteve em Brasília e parecia que ia dar, houve um momento que sinalizava uma virada… O que ocorreu?
Flávio Dino – Nas últimas horas prevaleceram os chamados valores reais de poder. Esse alinhamento em bloco muito perigoso, entre uma parcela da opinião pública, grandes grupos de mídia, a classe dominante, a elite de um modo geral, quase inteira, nessa narrativa do impeachment. Esse conjunto de forças compôs um bloco muito poderoso. Já havia uma maioria estabelecida na Câmara, isso fez com que o contingente de indecisos com o qual nós estávamos tentando dialogar, uns 20, 30 votos, acabassem sendo levados por essa força, essa avalanche. É muito difícil um governo sem força popular, isso em qualquer experiência histórica no mundo, resistir a esses fatores de poder quando se juntam.
O poder econômico está inteiro a favor do impeachment?
FD – Sim, blocado. Em bloco. É muito difícil resistir a isso. Primeiro, você precisa buscar cindir isso, é uma abordagem leninista. Você não pode deixar o vértice se alinhar, e ele acabou se alinhando. A Dilma até tentou, a meu ver excessivamente, capturar uma parte destes setores de elite. Fez o ajuste fiscal, reinstalou o conselhão, justamente tentando evitar essa junção, mas não conseguiu. Houve esse alinhamento e a base popular do governo só se tornou ativa nos últimos 30 dias. Até então havia muita paralisia, inércia, por conta justamente deste excesso.
O senhor acha que Dilma dilapidou o capital político dela ao deixar de tomar medidas mais à esquerda, como se esperava?
FD – Desarmou o movimento popular. E acabou ficando pendurada na broxa, pendurada no pincel, porque a escada é o apoio popular. E na hora que perde essa escada fica muito fragilizada. Houve um conjunto de ilusões, algumas de caráter mais estruturante, que diz respeito à compreensão sobre o Brasil, acerca de uma consciência democrática da elite brasileira. Isso se revelou mais uma vez uma ilusão.
A Dilma acreditou nisso?
FD – Acho que talvez nós todos. Não quero individualizar. O conjunto de forças mais à esquerda que apoiava o governo, consciente ou inconscientemente, pareceu acreditar que não haveria uma nova ruptura das regras do jogo como houve em outros momentos da vida nacional. Infelizmente, vimos que essa consciência democrática dessa classe dominante é ainda muito frágil. Há pouco apreço às regras do jogo. Quem está dizendo isso hoje é a imprensa internacional, quase caricaturando o que aconteceu no Brasil. Porque é muito estranho, até da ótica mesmo do capitalismo – da suposta segurança jurídica, da previsibilidade, que são os pilares da narrativa neoliberal do mundo –, é bastante esquisito o que aconteceu. Se você subverte as regras do jogo institucional contra o chefe do poder Executivo, quem está do outro lado do oceano imagina que as regras clássicas podem ser descumpridas contra qualquer um… Nós acreditávamos, mais do que a elite, na solidez das instituições democráticas. Houve também um erro de dosagem no tal ajuste fiscal, fazendo com que, caso o Michel Temer assuma, receba um país com inflação declinante e 380 bilhões de dólares de reservas internacionais, coisa que o Brasil nunca teve antes. Paradoxalmente, apesar de problemas reais que existem, ele não vai receber um caos econômico, exatamente porque houve uma ansiedade de fazer o ajuste numa velocidade exigida pelos tais mercados. Acho que essa foi uma segunda grande ilusão que determinou este resultado na Câmara.
O fato de Eduardo Cunha ser um grande arrecadador de campanha pesou?
FD – Essa é uma das hipocrisias que se verificou ali. Muitos deles dizendo que estavam fazendo isso contra a corrupção, quando, na verdade, acontecem até situações como a da deputada que o marido que ela homenageou foi preso. O financiamento empresarial, quando se transforma numa troca, resulta neste tipo de distorção do sistema democrático. E o Eduardo Cunha talvez possa ser visto hoje como o operador mais bem-sucedido.
Está todo mundo na mão dele?
FD – Ele tem uma força atípica, porque não é determinada pela política e sim pelos interesses.
As pessoas ficaram muito chocadas com o nível dos parlamentares que temos na Câmara hoje. Como o senhor explica esse Congresso provinciano ao extremo?
FD – Há uma depreciação da política, não é de hoje, vem de muitos anos. Isso se transformou numa daquelas lendas brasilienses, que só há um Congresso pior do que o atual, o próximo. É um mantra muito repetido. E quando você vê cenas chocantes, tanto ética quanto esteticamente, como as que se viu naquele domingo, talvez dê uma certa razão a essa lenda. Há uma perda de atratividade da política, por uma série de razões. Uma delas é que determinadas carreiras de Estado se valorizaram muito em termos remuneratórios, magistratura, MP, etc., e passaram a ser muito atrativas para jovens talentos. Esse potencial quadro político, o jovem profissional, o jovem intelectual que não tenha vocação para ser operador da bolsa de valores de São Paulo, ou seja, que não é um capitalista, vai buscar o conforto material nestas carreiras de burocracia do Estado, que são muitíssimo bem remuneradas hoje, mais do que quando eu fui juiz nos anos 1990. Isso faz com que a política perca a capacidade de se renovar positivamente. Um outro fator diz respeito ao financiamento de campanha, porque a força avassaladora do poder econômico faz com que ou você seja milionário para bancar, ou sua família, como um pai bancando o filho que gosta de correr de Fórmula 1, ou você entra em esquemas paralegais ou ilegais. É uma distorção relativamente nova. Até os anos 1980, você tinha pessoas de classe média que se elegiam deputados, senadores. Vou te dizer um tipo ideal, weberiano: Ulysses Guimarães. Um cara da classe média e que virou um parlamentar influente.
E hoje você percebe que falta inclusive estofo intelectual para a maioria que está ali…
FD – É um comportamento até estamental: o sujeito age como se o mandato pertencesse a ele, não tem noção da representação. É mais um arbitramento de interesses individuais.
Por isso falavam tanto “minha família”…
FD – Sim. Todos estes fatores contribuem para este grande desastre, que não é algo apenas brasileiro. Vamos lembrar que o Berlusconi, que também é uma figura de péssimo gosto ético e estético, dirigiu a Itália durante tanto tempo… Basta olhar o Donald Trump pontuando e disputando a eleição presidencial. O esvaziamento, a depreciação da política em razão de outras instâncias de poder –mercado, burocracias estatais etc. –, é tão agudo que a liderança mais prestigiada hoje no mundo é um monarca, o papa Francisco. Ele não foi eleito –a não ser por Deus e pelos seus pares– e é a pessoa que hoje vocaliza um discurso mais ético, mais transformador, de respeito ao outro e de respeito aos valores democráticos de modo geral. E não é alguém emanado do mandato popular.
Na roda da fortuna, hoje a direita está em alta?
FD – Sim, sem dúvida. E numa face muito bruta, sem vinculação até com valores tradicionais do discurso liberal. O discurso liberal que, poderia resultar na conformação do chamado centro ou centro-direita, pró-mercado, pró-indivíduo, contra o intervencionismo estatal, ele prescinde do respeito a certos princípios. Você tem certas fronteiras que um quadro como Ulysses Guimarães jamais ultrapassaria. E hoje não. Você tem, em termos globais, uma coisa de vale-tudo cujo sintoma mais escandaloso, mais obsceno, é o voto no Bolsonaro. Eu estive lá na Câmara, e não lembrava daquele negócio até esteticamente duvidoso de pessoas fantasiadas, confete, serpentina, aqueles discursos raivosos… Não tinha isso. Você tinha um certo recato, um certo pudor, havia um certo decoro parlamentar, que são valores da política liberal. E isso se perdeu de cambulhada. Quando um parlamentar brasileiro dedica o voto a um torturador, faz apologia de um crime, nós temos algo de muito errado nessa nova face da direita.
A direita piorou?
FD – É muito difícil hierarquizar, depende do momento em que você compara. Quando você lembra de monstros como Filinto Müller (chefe da polícia política de Vargas) ou como o coronel Brilhante Ustra (chefe do DOI-Codi, centro de tortura da ditadura militar), eu diria que é uma direita coerente com sua história. Há um fio condutor dessa direita violenta, preconceituosa, agressiva, desrespeitosa com as instituições democráticas. Quanto a isso, não é pior nem melhor, é igual. O que é possível afirmar que piorou é o dito centro, esse se degradou muito claramente. Mesmo que você volte à UDN, tinha certos quadros que não compactuavam com determinadas coisas. O Pedro Aleixo (vice de Costa e Silva)é o exemplo mais evidente, era o vice-presidente, mas quando os militares vieram com o Ai-5 reagiu e não deixaram ele assumir quando Costa e Silva foi afastado. Deram o golpe de 1969 e implantaram a junta dos três Patetas, como Ulysses Guimarães batizou. Mesmo comparado ao PMDB dos anos 1980, eu acho que o centro piorou.
O problema é que os tais liberais hoje não chegam a atacar essa direita mais extrema. Eles se utilizam dela.
FD – Claro, essa é uma das razões pelo qual o pêndulo da política brasileira migrou para a direita: tradicionalmente, por uma série de razões históricas, sempre tivemos ali no centro uma espécie de partido pendular. Por exemplo, o PSD, que é o PMDB de outrora. Quando o PSD sustentou a experiência varguista, depois vindo até João Goulart, você tinha uma certa perspectiva nacional-desenvolvimentista, de direitos, etc. O PSD sustentou o governo Vargas, o governo Juscelino; quando uma parte expressiva do PSD, em 1964, se torna no mínimo conivente ou mesmo ator do golpe, faz a balança pender para o outro lado. A mesma coisa aconteceu agora, nos anos após a redemocratização. Se a gente lembrar o papel do PMDB até mais ou menos os anos 1990, sempre foi um papel que na hora do vamos ver pendia mais para a centro-esquerda. A Constituinte é um exemplo disso. Vamos lembrar que o líder do PMDB na constituinte foi o Mario Covas, com posições avançadas. Grande parte desta obra é fruto da aliança entre a participação popular, a esquerda sindical e este centro que acabou adotando teses progressistas, representado, a meu ver, pelo Mario Covas. Tanto que, quando o Centrão se forma, se forma para se diferenciar das posições de Covas. E tentar puxar a balança mais para a direita. O que aconteceu agora, no início do século, é que este dito centro foi polarizado por uma força popular representada por um ícone, Lula, e por um certo programa de reformas ainda que brandas, mas num certo sentido distributivas. Enquanto houve isso, houve governabilidade. Na crise de 2013 já havia um sinal de cisão deste pacto entre a esquerda e este dito centro, a eleição de 2014 já foi uma etapa disso, e quando vem 2015 vem a meu ver a questão fundamental: só era possível enfrentar este movimento, esta caminhada deste centro para a direita, fortalecendo a base popular do governo e não tentando agradar este movimento. Passei o ano inteiro de 2015 dizendo isso: vamos mudar a política econômica, ajuste fiscal não se faz de uma vez…
Foi um erro colocar Joaquim Levy na Fazenda, não?
FD – Acho que sim. E tudo foi feito com uma velocidade… “Ah, a inflação precisa vir para o centro da meta”. Sim, pode vir, mas não precisa ser em um ano, pode ser em três. Podia ter um certo gradualismo, não expandir gastos públicos… Essa crítica não é só a Dilma, é a ela também, mas eu sempre tendo a achar que se este conjunto de forças políticas, institucionais e sociais tivesse, em 2015, colocado essa agenda mais claramente, de um modo mais articulado, talvez o resultado para ela mesmo fosse outro. O certo é que os fatos mostram que o isolamento social do governo fragilizou e permitiu este velho golpismo latente da elite, que tem pouco apreço à Constituição e ao estado de direito.
Eles ficam agora querendo se livrar da pecha de estarem transformando o Brasil de volta numa república de Bananas. Mas é típico de uma república de bananas o que estão fazendo…
FD – Você pressupõe que um país dito civilizado, avançado, tenha instituições estáveis. Aliás, isso é o discurso liberal, eles dizem isso o tempo todo: para haver investimento é preciso ter um ambiente institucional marcado pelas certezas da regra do jogo, pela previsibilidade, pactos mais estáveis… Isso está escrito, é repetido semanalmente ou diariamente pelos colunistas de economia da grande mídia tradicional. E de repente, tudo isso vai para o ralo. Ah, o impeachment não é golpe porque está escrito na Constituição. Sim, a pena de morte também está (em caso de guerra). Isso significa que uma pessoa que cometeu um acidente de trânsito possa sofrer uma pena de morte, isso é constitucional? Não é porque está escrito na Constituição que um determinado conceito é aplicável a dada realidade. Aliás, a Constituição quando fala de crime de responsabilidade é muito clara: considera-se crime de responsabilidade as atitudes, os atos do presidente da República que afrontem a Constituição. Ou seja, há um gradualismo, uma proporcionalidade, não é qualquer ato irregular de um presidente da República ou um governante que configura crime de responsabilidade, há uma distância de milhares de quilômetros. Mesmo que você admitisse que houve algum tipo de irregularidade contábil no manejo de certas categorias orçamentarias etc., o que não houve, mas admitindo que houve, obviamente isso não é caso de impeachment. Tanto é que o artigo que foi utilizado no voto do relator (artigo 11 da lei 1079/50) foi revogado. A Constituição de 1988 não repetiu o que todas as outras repetiram, tipificar a chamada guarda irregular de verbas públicas como crime de responsabilidade. Isso não está na Constituição de 1988; tinha na de 1967. Isso produz uma coisa juridicamente absurda. As contas de 2015 não têm sequer um parecer do TCU, não foram sequer julgadas no Congresso. E vamos imaginar que daqui a alguns anos o TCU diga que é uma irregularidade menor e o Congresso aprove as contas? Só que o tempo não volta. E aí as contas foram aprovadas e ela sofreu uma sanção por supostamente ter cometido equívocos na contabilidade de 2015… Isso é um disparate jurídico. Por isso não me conformo: politicamente é uma violência e juridicamente não tem sustentação. Você não acha dez para defender esse negócio.
Por que estão cassando a Dilma, então?
FD – Porque querem chegar ao poder, pura e simplesmente. Acham difícil pelas urnas, as pesquisas mostram. Qualquer programa hoje que seja apresentado à sociedade de cortes de gastos públicos, de cortar benefícios sociais etc., não terá aprovação popular. E aí estão tentando buscar um atalho, uma espécie de colégio eleitoral. É um colégio eleitoral que foi criado por dentro de um processo de crime de responsabilidade para chegar ao poder para fins privados, como a própria natureza dos votos mostra, e para parte da elite tentar conseguir fazer uma política econômica mais a seu gosto.
Vai voltar a ir para a Disney, como eles falam nas manifestações…
FD – É, a bolsa-dólar. E vai ser uma frustração, porque o dólar não caiu após a votação na Câmara.
A presidenta Dilma tem alguma chance no Senado?
FD – É muito difícil formar uma maioria ali, por uma série de circunstâncias. Mas eu disse a ela que tem não só o direito, mas o dever de continuar lutando. Por duas razões: porque há uma opinião pública nacional e internacional olhando isso tudo e porque há o tribunal da história, que será feito em algum momento. Historiadores vão falar disso. A atitude esperada dela, de nós todos, é manter uma atitude de defesa da Constituição e da democracia. O senado pode mudar? Talvez. Nós temos algumas variáveis no meio do caminho, basicamente três: a primeira e mais importante são as ruas, o nível de mobilização. Segundo, qual vai ser a atitude do Supremo. O Supremo, no tocante à Câmara, adotou uma posição de autocontenção. Me parece que talvez no Senado não adote, até porque ficaria muito mal a essas alturas o Supremo ser o Pôncio Pilatos dessa história toda. Acho que haverá um certo papel mais ativo do Supremo agora, diferente do que houve na Câmara. A terceira variável é como vai se comportar este pólo de poder chamado operação Lava-Jato. Nesse período todo, este pólo de poder foi o grande fator de desestabilização dos pactos institucionais de poder possíveis. Quando havia um certo pacto institucional, a Lava-Jato vinha e tumultuava. O mais recente foi a história da ida do Lula para a Casa Civil. Eu não sei como a Lava-Jato vai atuar em relação às forças que sustentaram o impeachment.
Mesmo porque há muitos envolvidos na Lava-Jato do lado do impeachment…
FD – De um modo geral, havia subjacente a ideia de que a aprovação do impeachment na Câmara iria deter a operação Lava-Jato. Caso essa aposta não se confirme, pode ser também que este novo rearranjo também se desestruture. E o Michel com um problema ainda mais agudo do que a Dilma: se a Dilma tem dificuldade de sustentação popular, ele tem menos ainda. Em uma pesquisa de opinião pública, ela ganha dele. Ele tem um déficit de legitimação democrática que é um problema mais agudo a meu ver do que da própria Dilma. Pode ser que haja algum espaço de uma saída mais racional do que essa insanidade, essa obscenidade.
A saída racional seria antecipar eleições?
FD – Acho que no limite pode ser. Não mediante uma PEC, mas mediante um acordo político de uma dupla renúncia que levaria a novas eleições. Mas isso não é uma tese que defendo, é uma hipótese remotíssima hoje, mas que pode ser colocada em algum momento.
O ideal para o país não seria aproveitar o momento para chamar eleições gerais em 2017, unificar as eleições e acabar com a reeleição?
FD – Abstratamente essa era a menor saída. Nós estamos numa situação que qualquer manual de direito constitucional classifica como tipicamente constituinte. Porque você tem uma desestimação geral do sistema político aos olhos da sociedade, tanto que o “fora todos” é majoritário, o PSDB experimentou isso naquela passeata na Paulista, os índices do Temer mostram isso, a insignificante popularidade do Congresso, que deve ter caído mais ainda depois de domingo… Você tem um apartamento do sistema político-institucional em relação à sociedade. Esse poder ruiu. A Constituição virou puramente simbólica, perdeu a força material na medida em que uma violência institucional dessas pode ser feita ao arrepio dela, virou um adereço no jogo bruto da política. Classicamente, uma crise desta dimensão, desta profundidade, crise de hegemonia, crise no arranjo institucional, é classicamente uma situação constituinte. Agora, qual é a força que poderia conduzir a essa consequência prática? Talvez uma das três que enumerei há pouco. Mas não há, como havia no fim da ditadura, um conjunto de forças que leve a isso. Não há esse acordo possível. Não tem um centro democrático liberal qualificado, tem uma debilidade da esquerda, por conta destes desacertos, há uma depreciação do sistema de partidos, uma crise de lideranças políticas, todos estes fatores dificultam. Quais são as duas principais forças políticas do país? O PT e o PSDB. Pois bem, o PT foi derrotado e o PSDB não foi vencedor. Tu imagina uma coisa mais doida do que essa? Estamos diante de uma situação muito sui generis, muito peculiar. Hoje me parece que não há uma tendência a haver um pacto. Seria o ideal.
Pelo lado humano, se há a expectativa de que a presidenta Dilma irá perder no Senado, vale mesmo a pena impor a ela este massacre?
FD – Primeiro eu reconheço que é um massacre, isso me dói muito. Em 1964, meu pai era um jovem deputado estadual, com 32 anos, e foi cassado por um telegrama do 4 Exército por ser supostamente comunista. E eu sei o tanto que isso marcou a vida dele, o tanto que isso alterou o curso da vida dele em uma série de questões. Porque eu testemunhei pessoalmente sei que é uma situação muito dilacerante mesmo, revira as entranhas. Imagino o que a presidenta Dilma sente, como ela mesma sintetizou, a dor da injustiça. Por outro lado, ela tem uma trajetória a zelar e passou por outras situações limite. A pessoa que foi presa, torturada e refez a sua trajetória, tem realmente uma força especial. Não posso afirmar que não há outro caminho para ela, porque seria muito pretensioso de minha parte, mas como cidadão brasileiro o que pedi a ela, o que acho melhor para ela e para o país é que sustente a resistência. Em algum momento tudo isso vai ser julgado.
As pessoas esquecem que ela terá os direitos políticos cassados sem ter sido corrupta…
FD – É realmente uma afronta. Em algum momento talvez o Supremo enxergue isso.
Como o senhor, como comunista, está vendo essa onda neomacartista?
FD – É um traço dominante do fascismo que ressurgiu com muita força na sociedade brasileira. Grupos inorgânicos, adeptos até da violência física, não estruturados em torno de um conjunto de propostas e sim de um conjunto de negações e de preconceitos e essa tentativa de impor seus valores. Não há outra palavra para isso, é o fascismo nu e cru, no qual o anticomunismo é um filho muito conhecido na história dos povos, na história do mundo e na do Brasil. É realmente surpreendente que tenha ressurgido com essa força toda. Não me parece, contudo, que vai se tornar majoritário. Me parece algo ocasional, porque é contrário àquilo que o brasileiro acha que é, a auto-representação do brasileiro. Este fascismo violento representado pelo Bolsonaro acaba se chocando com a cordialidade, a simpatia, o país supostamente sem racismo, onde todo mundo convive, onde a praia é de todo mundo. Isso tudo é obviamente cheio de mitificações, mas há essa representação simbólica. E o fascismo é a negação disso, então como há essa força meio inconsciente do convívio, tendo a achar que nos próximos anos este setor de classe média pode ser que caia em si, quando identificar onde estão seus interesses. É o drama de sempre da classe média: ela se espelha no 1% da população, os magnatas, o grande capital, mas jamais vai chegar lá. É o negócio do juiz dizendo: “não posso ir a Miami”. Ele se vê como o 1% que vai pra Côte d’Azur, que vai para Cannes, que vai badalar em Mônaco. A classe média jamais vai chegar lá. Se isso é o paraíso –não é para mim, eu acho até de mau gosto–, ela nunca vai chegar lá. Mas ela fica desejando, uma parte expressiva dela acabou apoiando esse negócio com o sonho do paraíso do consumo. Quando a classe média, daqui a poucos meses, perceber que o projeto que mais permite mobilidade social, um certo nível de igualdade de oportunidades, não é este, e definitivamente não é (é o projeto da exclusão, da violência, da concentração de poder, de riqueza e de conhecimento na mão de poucos), tende a descolar dessa narrativa mais fascista, golpista. Então, paradoxalmente, eu tendo a ter esperança. Logo passa.
Falaram tanto em venezuelização, o que estou vendo é uma ucranização da política brasileira. Só faltam proibir os partidos comunistas. O senhor não teme que isso aconteça?
FD – Não, como eu disse, acho que este fascismo é passageiro. E, neste momento, não consigo vislumbrar qualquer tipo de ameaça de proscrição de partidos comunistas. Não há ambiente internacional e nacional para isso.
Que tipo de comunista o senhor é? Ainda acredita em revolução?
FD – Claro que sim, evidentemente. As táticas de cada processo revolucionário são diferentes, as sociedades são diferentes. Você tem desde a alternativa insurrecional clássica, chinesa, cubana, russa, mas tem outros caminhos mais graduais. Mandela era um comunista, se disse comunista a vida toda, e constituiu um partido. Não entendo a revolução como um momento apenas, como um momento mágico, apenas o assalto ao palácio do inverno. O assalto ao palácio do inverno do tzar correspondeu a uma circunstância, pode ser que você tenha uma hegemonia socialista estabelecida a partir de outros caminhos. O que é certo hoje para nós, socialistas e comunistas, é que não é um processo apenas estatal, não adianta se apoderar da máquina do estado apenas, porque em algum momento isso é insuficiente. Você tem que construir uma hegemonia cultural. Essa é a razão pela qual Cuba tem essa consistência toda. Com todos os problemas, eles têm uma hegemonia cultural. Há um certo consenso social em torno do partido Comunista cubano que explica a sobrevivência, contra tudo e contra todos, do processo revolucionário. Uma alternativa insurrecional no Brasil não é algo que pertença à minha vida, isso não está colocado.
Eu sempre digo que antes do marxismo-leninismo já existia o socialismo…
FD – Na verdade, eu acredito que Cristo era socialista. Aliás, foi um debate que a gente fez aqui no Maranhão, na TV do Sarney. Eles perguntaram como ia ser a implantação do comunismo e eu falei: vão ler a Bíblia. Essa narrativa que o dinheiro não é tudo, que você tem outros valores, outros princípios, claro que é anterior a Marx. E não é só no Novo Testamento, não. No antigo Testamento tem aquela história do maná. Todo mundo recolhia o maná que caía do céu, uns tinham mais, outros tinham menos. Mas, ao fim do dia, os que tinham o cesto muito cheio perdiam este excesso para aqueles que tinham o cesto mais vazio… Nos Atos dos Apóstolos (4:32) tem: e da multidão dos que creram, um só era o sentimento e a maneira de pensar: ninguém considerava exclusivamente seu os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si. Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras as vendiam, traziam dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos – o Estado! – que por sua vez o repartia conforme a necessidade de cada um… A narrativa socialista é bem antiga.
A ideia da revolução armada não é uma ideia datada?
FD – Hoje, seguramente é, porque isso não está colocado na realidade brasileira. Correspondeu a um certo momento em que todo mundo estava armado. Porque fica parecendo que foram os socialistas e comunistas que resolveram recorrer às armas. Não, todo mundo estava armado. No caso da Rússia, houve uma tentativa em 1905 que foi duramente reprimida pela força das armas. Não foram os comunistas que inventaram a luta armada. Aliás, a burguesia, para consolidar sua hegemonia, recorreu à luta armada. Napoleão, que é o consolidador da revolução francesa, era um belicista. Essa história de que o comunismo inventou a luta armada… Não, o capitalismo também recorreu à luta armada, em muitos momentos, nas guerras imperialistas todas, tanto as coloniais como as recentes. Se dizimaram estados nacionais, como o Iraque, pela via armada. Então a revolução armada pode ser datada, mas não foi algo que os comunistas inventaram. Lenin não desembarcou do famoso trem, rumo à estação Finlândia, olhou para o lado e disse: vou inventar a luta armada. Não foi assim. Isso faz parte da estigmatização dos comunistas.
Eu vejo essas ideias todas atualmente em movimento, e quando aparece um cara nos EUA, Bernie Sanders, dizendo que é socialista ficam dizendo que ele não é, que é social-democrata…
FD – Isso é uma bobajada, um dogmatismo. “Ah, ele não é leninista, então não é socialista.” O socialismo é um espectro mais amplo, como a ideia de revolução é muito mais ampla do que uma certa experiência, um certo caminho. Tem coisas que deram certo, coisas que não deram muito certo, mas o ideário socialista não é um bloco monolítico. Dentro do meu partido, por exemplo, eu fico brincando com o pessoal: sou socialista cristão.
Será que nós chegaremos de fato a uma sociedade socialista ou o socialismo é só um sistema de governo?
FD – Para funcionar, ele tem que ser sempre um horizonte que nos move. Tem sempre que ser uma utopia, porque se virar apenas um sistema de governo fatalmente vai fracassar. Em algum momento vai perder a hegemonia, o bom senso, a aceitação e a energia vital, que é o que aconteceu na extinta e gloriosa União Soviética e nos países do Leste. Por isso tem que ser visto como um modelo, um sistema de governo, e como um certo estilo de vida, também. Um modo de ver o mundo, a atitude que tem diante das coisas, o modo como se relaciona com o outro, tudo isso faz parte de uma identidade socialista. Eu não acredito no discurso socialista de alguém que não tenha um amor profundo e respeito pelos mais pobres. Não consigo acreditar nisso. É uma espécie de pressuposto ético você realmente se comover com a dor do outro, realmente achar visceralmente injusto essa desigualdade desde o útero materno, possuir o desejo incandescente de que as coisas mudem.
Foi preciso um comunista para acabar com o feudalismo que havia no Maranhão?
FD – Nós tivemos aqui dois aspectos que levaram a este resultado. Primeiro, este, sem dúvida. Houve uma construção coletiva no campo da esquerda que levou a este fortalecimento de nosso partido no Estado, como uma espécie de estuário do conjunto de movimentações da esquerda de modo geral que transcende a minha figura individual. Em segundo lugar, a capacidade de construir alianças, que era vital para enfrentar o imenso poder que o Sarney tem. Se o impeachment for consumado, vai completar mais um feito, porque terá conseguido participar da experiência do PT e ao mesmo tempo ajudar o golpe contra o PT. Vai ter mais esse diamante na sua coroa de oportunista, desde JK. Sempre se adaptou a muitas circunstâncias, é o político mais longevo da história brasileira, a essa altura mais longevo que Pedro II. Não é pouca coisa.
Assim como nos países do Leste se derrubaram as estátuas, qual foi o grande símbolo da derrocada dos Sarney no Maranhão?
FD – Acho que a cena emblemática, no plano simbólico, é essa história dos nomes, essa mudança de nomes que havia em tudo: escolas, hospitais, creches… Nós estamos revendo aos poucos os nomes, por um decreto que editei e também o MPF entrou com algumas ações. O nome dele próprio, dos filhos, dos netos, da mãe… O que corresponde à apropriação de bens públicos para fins privados. Alguém pode dizer: isso é tão pequeno. Mas corresponde ao estilo de governar, porque essa questão de se auto-homenagear e homenagear os seus por intermédio dos bens públicos, estava em absoluta coerência com outros atos. Era apenas a ponta do iceberg. O que havia por baixo era uma escandalosa apropriação de recursos públicos para fins familiares. E o outro símbolo foi sairmos do último lugar no ranking de transparência da CGU para o primeiro, e isso em um ano.
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