30 DE AGOSTO DE 2013 - 17H00
O Brasil da delicadeza perdida
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
(Vinícius de Moraes. "Pátria Minha". In. Antología sustancial, Adriana Hidalgo Editora, 2013).
Por Marcos Aurélio da Silva (*)
2013 é o ano em que se comemora o centenário de nascimento do poeta e diplomata Vinícius de Moraes.
E é também o primeiro ano em que estão se distribuindo pelas universidades federais do país os estudantes beneficiados pelo sistema de cotas “raciais” e sociais, em obediência à lei aprovada por Dilma Rousseff em agosto de 2012.
O leitor certamente estará se perguntado que diabos uma coisa tem a ver com outra. Absolutamente tudo.
Vinícius de Moraes não foi só o autor de belíssimas poesias e notáveis canções da bossa nova.
Ninguém como ele encarnou, na vida e na atividade intelectual a integração entre morro e asfalto, já teorizada décadas antes por seu amigo Sérgio Buarque de Holanda quando, em Raízes do Brasil, obra de referência da análise sociológica nacional, disse ser característico de nossa formação social uma “relativa inconsistência dos preconceitos de raça e de cor”.
E isto a despeito de todas as mazelas do nosso modo cordial ‒ leia-se nada republicano ‒ de ser.
Difícil esquecer, em se falando do poetinha, as parcerias com Pixinguinha, os afro-sambas com Baden Powell e, claro, ponto de partida de tudo o mais neste verdadeiro combate pela democratização “racial” e social no país, a peça Orfeu da Conceição, transposição do mito grego de Orfeu para a dura realidade dos morros do Rio de Janeiro.
E eis que a forma lírica, uma característica sua tão marcante, chega mesmo, neste caminho em direção às classes populares e às coisas das classes populares trilhado por nosso poeta ‒ caminho em direção aos subalternos, diria em chave mais apropriada Antonio Gramsci ‒, a dar lugar à poesia participante de O operário em Construção.
Curioso como esse movimento em direção ao nacional-popular ‒ noção igualmente cara ao notável comunista sardo, tão bem encarnada na estrofe do poema em epígrafe, e que só um néscio pode associar à noção fetichista de nacionalismo ‒, muito marcante na década de 1950, e do qual nosso poeta, entre tantos intelectuais da época, é apenas um exemplo, tenha sido associado, em um especial gravado por Chico Buarque para a tevê francesa em 1990, a um país leve, otimista e em movimento.
Ora, o sistema de cotas, tão contestado que foi ‒ até judicialmente ‒ e ainda o é pelos estratos mais favorecidos da sociedade brasileira (pasmem, pesquisa do Ibope de janeiro revelou que a resistência às cotas “raciais” é maior justamente entre brasileiros que cursaram faculdade), permite que tenhamos de nosso país ‒ talvez fosse mais apropriado dizer de nossa elite intelectual ‒ a mesma imagem?
Não precisamos ir muito longe para saber a resposta. Nossa desigualdade social, já gritante naquela época, posto expressão de pelo menos quatros séculos de latifúndio e trabalho escravo e/ou semisservil (e eis como a associação entre cor e pobreza, mais que servindo a uma simples política de focalização, remete diretamente às relações históricas de produção), não enfrentada a contento pelo processo de industrialização capitalista, é hoje ainda mais pronunciada.
Compare-se o índice de Gini apurado em 2011 (0,50) e aquele de 1964 (0,49) para que se tenha noção do que está sendo dito. E isto após uma década fortemente distributiva (o Gini de 2003 era 0,58). Ainda assim, toda política voltada a corrigir com mais rapidez esta distorção conhece forte aversão dos mais “ilustrados”.
De fato, o país leve do especial de Chico Buarque ‒ o mesmo Chico que, na estética e na política, soube levar adiante a utopia divisada na obra do pai e pelo parceiro Vinícius ‒, certamente em movimento (estão aí, não obstante todas as contradições, os êxitos dos governos petistas), parece, todavia, querer ainda aferrar-se, como diz o título do espetáculo francês, ao país da delicadeza perdida.
E, certamente, não só toda a polêmica em torno das cotas “raciais” é um exemplo disso. A ver toda essa indigna reação contra as medidas governamentais destinadas a levar médicos às camadas populares e, ainda mais escandalosamente, as vaias e comentários racistas a que foram submentidos os profissionais cubanos que acabaram de chegar.
Pobre pátria minha, não é só meias e sapatos que te faltam.
(*) Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em geografia da UFSC
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