Peço licença para falar sobre a poesia. Ou sobre o poeta. Ou talvez a poesia e o poeta sejam um só, que neste caso o poeta foi feito, vida inteira, da mesma matéria, do verso e do amor, da dor e do ritmo, da poesia que corta, sangra e apaixona. Peço licença. É que em um dia feito hoje, há 43 anos, morria de dor e de fascismo o poeta Pablo Neruda, o que disse que “o que mais se parece com a poesia é um pão ou um prato de cerâmica ou uma madeira delicadamente lavrada, ainda que por mãos rudes”.
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O dono de um nome com uma sonoridade ímpar escolheu outro, justificando-o como uma homenagem. Ricardo Eliecer Nefatlí Reyes Basoalto, um nome real, um nome de poeta. E ele escolheu Pablo, um nome plebeu feito a sua poesia, poesia de mineiros e de pescadores, poesia de estudantes e de operários, poesia de bêbados e de amantes suicidas, poesia de mulheres belas e terrivelmente passionais, poesia do singelo e do épico, de maremotos e vulcões e terremotos. A poesia de Pablo foi a América Latina em convulsão, feito os vulcões da cordilheira, em permanente erupção. Mas a poesia não morreu com o poeta. Como ele mesmo dizia, a poesia “tem as sete vidas do gato”
Não comecei Pablo pela sua poesia. Minha primeira leitura foi sua autobiografia, “Confesso que vivi”. Comecei Pablo pelo final, e o homem profundamente identificado com o seu povo encantou-me antes mesmo que a sua poesia. Comecei Pablo pelo adolescente magro, envolto numa fantasmagórica capa cinzenta, sonhando com a poesia e com as mulheres. É que eu também era, à época, um adolescente magro, feio, desengonçado, que sonhava mais com as mulheres do que com a poesia, aquelas bem mais inacessíveis do que esta. Diferente de Pablo, no entanto, eu não tive a sorte de uma viúva de coração fogoso, que me desse amor em desacordo com a minha desnutrição. Sonho ainda despir aquela viúva de imensos olhos azuis das suas sedas negras e violetas, “uma fruta nevada envolta numa aura de dor”.
Comecei o poeta chileno pela aventura do adolescente com a mulher desconhecida a lhe visitar no celeiro, em uma debulha de trigo. Nunca vi o trigo e não conheço celeiros, mas fantasio com aquela noite escura, pensando naquela mulher, no seu cheiro, na cama de palha que ela dividiu com o poeta.
Comecei Neruda pelo sujeito que virou cônsul meio ao acaso, escolhendo uma cidade desconhecida que ficava numa depressão do globo terrestre. O mesmo cônsul que protagonizou histórias de amor e ódio em países distantes e inimagináveis.
Comecei Dom Pablo pelo comunista que percorreu o país inteiro, seja em fuga espetacular pela cordilheira, seja em campanha eleitoral, partilhando a cama e a mesa com os mineiros do Chile, com os pescadores, com os trabalhadores da cordilheira.
Somente depois disso é que conheci a poesia poderosa de Neruda. Poucos poetas celebraram com tanta intensidade o amor e a revolução. O mesmo poeta que escreveu “Em teus olhos guerreavam as chamas do crepúsculo/ e as folhas caíam na água de tua alma”, escreveu também “Trigo e aço aqui nasceram/ da mão do homem, de seu peito./ E um canto de martelos alegra o bosque antigo”. O mesmo Neruda que escreveu “ali, mulher do amor, me acolheram os seus braços./ Era a sede e a fome, e tu foste a fruta./ Era o duelo e as ruínas, e tu foste o milagre”, escreveu os versos de guerra “sairemos das pedras e do ar/ para morder-te:/ sairemos da última janela/ para derramar-te fogo:/ sairemos das ondas mais profundas/ para cravar-te com espinhos”.
O poeta escreveu em uma de suas obras: “Não venho para resolver nada./ Vim aqui para cantar/ e para que cantes comigo./ (...)/ Canta comigo até que as taças/ se derramem deixando púrpura desprendida/ sobre a mesa”. Desde o longínquo dia em que o conheci tenho atendido ao seu convite, tenho cantado com ele e com a poesia, e muitas vezes já as taças tingiram de púrpura as toalhas das mesas.
Estão no “Canto Geral” os versos que trago guardados com ternura de menino: “Sobe comigo, amor americano./ Beija comigo as pedras secretas”. Carrego estes versos entalhados na alma e na memória, cuidadosamente gravados dentro de mim. Inúmeras vezes eu os usei, inúmeras vezes convidei um amor americano para beijar comigo as pedras secretas da paixão e da poesia.
Há 43 anos mataram Pablo Neruda. Sim, Neruda foi morto pela mesma mão que assassinou Allende e que feriu de morte a pátria chilena. Neruda morreu, como já disse, de dor e de fascismo. Era um homem perigoso para os opressores, para aqueles soldados que ocuparam a sua casa e ouviram dele: “Olhem em todos os lugares, a única coisa perigosa que encontrarão para vocês é a poesia”. O mesmo fascismo que o matou estende hoje sua sombra ameaçadora sobre a América. Usa novas roupas, vestes elegantes, mostra um rosto jovem e sorridente. Mas não nos enganemos, é o mesmo e velho fascismo, com sua face de maldade a jurar de morte a paixão e a poesia, a mirar com ódio o coração da liberdade.
Mas a poesia não morreu com o poeta. Como ele mesmo dizia, a poesia “tem as sete vidas do gato”. Nos dias sombrios de hoje, o que podemos dizer à memória do poeta, com a sua irrevogável esperança, são os mesmos versos que ele escreveu em homenagem a Luis Emilio Recabarren: “Juramos que a liberdade/ levantará sua flor nua/ sobre a areia desonrada./ Juramos continuar teu caminho/ Até a vitória”.
Por Joan Edesson de Oliveira
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