Débora Fogliatto
Desde o atentado terrorista perpetuado em Paris na última semana, o grupo Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS, na sigla em inglês) tornou-se centro das atenções no mundo todo. Poucas pessoas, porém, conseguem compreender o que realmente se passa no Oriente Médio, região onde nasceu o ISIS, e acabam vendo a questão apenas pelo lado religioso. O surgimento do grupo está relacionado à Síria, país que está em guerra civil desde 2012, e ao Iraque, país vizinho, instável desde a invasão norte-americana em 2004.
Embora se declare muçulmano e se baseie em uma leitura radical do livro sagrado Corão, o ISIS é fortemente reprovado e temido pela maior parte da população dos países islâmicos, as quais inclusive tornam-se refugiadas na Europa para fugir de sua violência, segundo aponta o professor de Relações Internacionais e doutor em Ciências Sociais pela PUCRS Hugo Arend. “A maior parte dos muçulmanos não gosta deles, refugiados da Síria estão fugindo deles, mas servem a certas porções da população, porque garantem a segurança. E tem programas sociais. Nos locais onde chegam colocam crianças na escola, garantem fornecimento de eletricidade, água, colocam a polícia, perseguem criminosos”, afirma.
Ao mesmo tempo, sua ideologia passa pelo fato de haver pouca divisão entre política e religião no Oriente Médio, mesmo considerando os muçulmanos mais moderados. O Corão, em muitos países, é também a base para o código civil, mas o radicalismo do ISIS é resultado de sua interpretação, o que não significa que seja a única, destaca Arend. “Se tu pegares a Bíblia, dependendo da interpretação pode te dar embasamento para uma inquisição, pode ter passagens que justificam a escravidão, por exemplo. E o Estado Islâmico é isso, tem uma leitura radical do livro sagrado, mas não têm tanto apoio assim por parte dos muçulmanos”, resume.
Há ainda especulações de que o próprio ISIS queira que os refugiados sírios sofram xenofobia nos países europeus, o que também seria uma motivação para seus ataques na França. Ao serem mal-recebidos, os povos árabes se virariam contra a Europa e retornariam para seus países de origem, estando mais próximos do comando do Estado Islâmico, que tem como objetivo final criar um califado no mundo islâmico, conceito surgido na época de Maomé para representar uma monarquia muçulmana, cujo chefe seria sucessor do próprio profeta. Para realizar tal objetivo, o grupo pretende tomar o controle, além do Iraque e Síria, da região do Levante, que inclui Jordânia, Israel, Palestina, Líbano, Chipre e Hatay, uma área no sul da Turquia.
Contexto histórico
Mas a tensão na região é endêmica há décadas. As raízes dos muitos conflitos na região são tanto econômicas, por se tratar de uma área com abundância de petróleo, o que desperta o interesse de diversas nações, quanto históricas. Após a Primeira Guerra Mundial, com o enfraquecimento do Império Otomano, que controlava a maior parte da área, a França e a Inglaterra dividiram os territórios do Oriente Médio e Norte da África entre si, não respeitando as particularidades tribais ou religiosas. Os franceses ficaram com o território que agora corresponde à Síria e Líbano, enquanto os ingleses dominaram a Jordânia, Palestina e Iraque. O Irã, cujo povo não é árabe, mas sim persa, foi comandado pela dinastia do Xá Reza Pahlavi, aliado dos Estados Unidos, durante décadas. Em 1979, a população começou a questionar esse controle norte-americano no país, apontando a hipocrisia de ser aliado dos EUA, que por sua vez é o grande apoiador de Israel na região.
O conflito atual existente no Oriente Médio está relacionado a essa origem histórica de fatos que aconteceram simultaneamente em diversos países. Em 1979, protestos no Irã levaram à queda da dinastia Pahlavi, onde foi instalada uma teocracia xiita. Mas, ao contrário do que muitas pessoas pensam, os conflitos entre xiitas e sunitas na região não são milenares, conforme aponta o professor norte-americano Stephen Zunes, especialista em Relações dos Estados Unidos com o Oriente Médio e professor de Política e Estudos Internacionais na Universidade de San Francisco, na Califórnia. Tanto no Irã quanto no Iraque, a maioria da população é xiita — o que não é sinônimo para radical, mas sim apenas uma corrente do islamismo. Porém, neste país, o ditador Saddam Hussein comandou por décadas, oprimindo esta maioria e dando benefícios à população sunita, que corresponde a cerca de 20% dos iraquianos.
Mesmo assim, Zunes aponta que durante o regime de Hussein, as relações entre os dois grupos religiosos eram tranquilas. “Não havia um grande conflito entre sunitas e xiitas na área antes da invasão norte-americana. Casamentos entre os dois grupos eram comuns, muitos viviam nas mesmas cidades e bairros e rezavam nas mesmas mesquitas, a relação era semelhante àquela entre cristãos católicos e protestantes em países cristãos, por exemplo”, afirma. Foi com a entrada dos norte-americanos que a relação entre Iraque e Irã se tornou importante para a situação regional. Hussein, embora fosse um ditador cruel, que oprimia a população curda do país, mantinha certa estabilidade no Iraque.
Com a invasão dos EUA em 2004 — sob o pretexto de que o país teria armas de destruição em massa, o que posteriormente provou-se ser mentira — “os dois bastiões do nacionalismo secular do Iraque, as forças armadas e o serviço civil, foram efetivamente abolidos, apenas para serem substituídos por partidos e facções xiitas sectários, dos quais alguns eram aliados próximos do Irã”, relata Zunes. A lógica norte-americana foi colocar um xiita no poder, para garantir apoio das massas à sua invasão no local, colocando como governante Nouri al-Maliki, que havia sido perseguido por Hussein por ser membro de um partido xiita.
Surgimento do ISIS
Com a desestabilização do regime, do exército e da polícia, a segurança que havia no Iraque desaparece. “Os extremistas sunitas, acreditando que os xiitas iraquianos haviam traído seu país se aliando a persas e ocidentais, começaram a atacar bairros civis xiitas. O regime iraquiano e a milícia aliada então passaram a sequestrar e matar sistematicamente milhares de sunitas”, conta Zunes. A partir dessa situação, que Arend define como um “vácuo de poder”, surgem grupos fundamentalistas armados, como o ISIS. “Os sunitas têm que garantir sua própria segurança e por isso se armam. Ao longo do processo de resistência à invasão, começam a crescer grupos armados que garantem a segurança de certas populações. Sabe-se pouco sobre o surgimento específico do Estado Islâmico, mas o que se sabe é que surgiu nesse vácuo de poder, durante a guerra do Iraque”, analisa.
Mesmo nesse contexto, em 2007 parecia que a situação no país se acalmaria, quando militantes sunitas e outros líderes de estados no norte e oeste iraquiano decidiram se aliar com o governo em troca de uma melhor incorporação dos sunitas ao governo e às forças armadas. No entanto, após a saída do exército norte-americano na região, em 2009, Maliki não levou o acordo até o fim. “A discriminação e repressão contra sunitas apenas aumentou, com protestos não-violentos sendo reprimidos com armas, jornalistas dissidentes sendo alvo de prisão e assassinato. Havia tortura generalizada, milhares de iraquianos foram detidos por anos sem julgamento”, aponta Zunes. Esse contexto de perseguição apenas serviu para aumentar os radicalismos de diversos grupos, incluindo o ISIS.
Paralelamente, na Síria, as tentativas de derrubar um ditador também provocou a instabilidade que causou a guerra civil ainda em andamento. O presidente Bashar al-Assad, líder do partido Baath, defende o pan-arabismo, ou seja, que haja uma única nação para todo o povo árabe, e é da minoria étnica alauita. Em seu país, assim como no Iraque, os sunitas também representavam a oposição a ele, mas as primeiras manifestações contrárias à sua ditadura ocorridas em 2011 reuniram diversas etnias e eram não-violentas e a favor da democracia, como o acontecido em outros países da região durante a Primavera Árabe. Porém, ele reprimiu fortemente os protestos, recusando-se a sair do poder e dando início à luta armada, em 2012. A partir daí, forças estrangeiras começaram a armar diversas facções, agravando a situação. “Mesmo que os países ocidentais não sejam diretamente responsáveis pela guerra civil, eles jogaram lenha na fogueira”, aponta Zunes.
Com as duas nações em extrema instabilidade, as fronteiras tornam-se muito tênues e o Estado Islâmico chegou à Síria com facilidade, onde atualmente já domina diversas regiões. “Como resultado, quando o ISIS surgiu como a última manifestação de extremismo ao estilo da al-Qaeda, a população sunita encontrou neles o menor dos males, e várias milícias se uniram a seus antigos rivais para expulsar as forças governamentais do Iraque e obter equipamentos militares, os quais utilizaram para tomar grande parte da Síria, onde inicialmente foram bem-recebidos pelos sunitas que estavam sofrendo sob o regime brutal de Assad”, relata Zunes.
E a partir da ampliação do seu poder, o ISIS torna-se alvo de ataques aéreos ocidentais, dos quais a maior parte são lançados pela França, explica. Isso parcialmente explica o país ter se tornado alvo dos terroristas, que tem este comportamento fundamentalista e violento por definição. “Quase todos os comandantes militares do ISIS são antigos militares iraquianos, que foram abolidos com a ocupação norte-americana, deixando-os desempregados e revoltados. Além disso, um estudo de um professor de Oxford revelou que uma grande porcentagem dos recrutados pelo ISIS são jovens iraquianos cujos pais foram presos, torturados, executados ou morreram em batalha como resultado da invasão norte-americana e, após isso, se radicalizaram”, afirma o professor.
Próximos passos
Para Arend, as perspectivas de futuro não são animadoras, lembrando que no Vietnã, por exemplo, os Estados Unidos “largaram mais bombas do que todas as que foram largadas em todas as batalhas da Segunda Guerra Mundial. E perderam a guerra e radicalizaram a população”. O mesmo deve acontecer no Iraque e na Síria, onde a população já está radicalizada e os bombardeios não devem funcionar. “Nesse primeiro momento, vão enfraquecer o ISIS, atacar bases de petróleo, bases militares, mataram um dos líderes. Isso vai acontecer no curto prazo, mas e depois? Vão ter que entrar por terra, não tem outra solução”, avalia.
Quando isso acontecer, os países ocidentais irão passar a participar da “guerra de guerrilha” na Síria, mas não conseguirão sustentar isso por muito tempo, prevê Arend. Nos EUA, por exemplo, as consequências da Guerra do Iraque começaram a pesar, com soldados morrendo e os custos parecendo não valer a pena. A Europa, que está em crise econômica, não teria condições de manter uma guerra. “Tropas ocidentais e russas dentro da Síria e Iraque ninguém quer, nem o Assad, nem os rebeldes, nem o Irã, nenhum grupo quer os ocidentais ali dentro”, afirma. Ao mesmo tempo, curdos também estão em guerra contra iraquianos e contra o ISIS, e eles querem a formação de um Estado para si. “E quem é contra um estado curdo? A Turquia, aliada dos EUA”, aponta Arend. Ou seja, enquanto os ocidentais querem destruir o ISIS, eles também não querem que os curdos sejam responsáveis por essa destruição.
Por isso, aponta que a tendência na região é piorar. “E refugiados não vão parar de chegar, mesmo se acabar a guerra eles não têm para onde voltar. Após a guerra, quem vai construir esse país? Um governo sírio que não existe? E num ambiente assim, crescem radicalismos, fundamentalismos”, lamenta.
Tags: estado islâmico, Guerra do Iraque, Isis, Oriente Médio, Síria
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