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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Argentina: no caminho do inferno

25 de Novembro de 2015 - 13h36 


Portal Vermelho 

Por fim a dúvida que pairava sobre os argentinos se esclareceu: o próximo presidente do país será o ultraliberal Mauricio Macri. À luz dos resultados do último domingo (25), deixa-se claro uma coisa: nada, mas nada pode ser dado por certo. 

Por Guadi Calvo*, especial para o Vermelho


Efe
Maurício Macri assume a Presidência no próximo dia 10 de dezembro

Maurício Macri assume a Presidência no próximo dia 10 de dezembro

A mínima diferença entre as duas forças – um com 51,40% e o outro com 48,60% – deixa bem claro que o famoso boato que anunciava que o kirchnerismo estava acabando não está certo, ele segue muito vivo e é muito difícil que comece a ruir, principalmente se o novo presidente insistir com suas políticas de arrasar com tudo que foi construído nos 12 anos. 

Na segunda-feira (23) depois das eleições, o candidato eleito já mostrou suas garras, falou sobre cortar relações com a Venezuela. Por suas disputas com a oposição, nos leva a crer que sem dúvida haverá um giro completo aos Estados Unidos, ao passo que deixará muito nervosos os vários empresários argentinos que exportam para a Venezuela cerca de US$ 2 milhões ao ano. 

A respeito da nomeação de seu ministro da Economia, trata-se de definir um pouco sobre como será sua política, falou de um gabinete com seis ministros na área. Artimanha usada para conseguir esconder o temido Carlos Melconian, de uma personalidade fora de órbita, que já havia anunciado medidas como cortes de gastos públicos e demissão de servidores durante a campanha, motivos pelos quais foi silenciado. 

Durante todos estes anos, Melconian, braço direito de Domingo Cavallo (o homem que levou o país ao inferno), se dedicou a açoitar o governo de Cristina Kirchner desde o meio da oposição – que não era pouca – prevendo terremotos econômicos que nunca aconteceram. 

Em suas declarações como presidente eleito, Macri também mencionou uma aproximação à Aliança do Pacífico. E a respeito das declarações do jornal conservador La Nación – que pedia não só para terminar com o julgamento dos genocidas da ditadura, mas também fazer algo para que os mais de 300 que já estão cumprindo suas penas sejam liberados – a resposta de Macri (que se viu numa posição muito desconfortável, há que recordar que seu pai Francisco Macri, aumentou consideravelmente sua fortuna em negócios com a ditadura entre 1976-1983) foi morna e muito distante de uma contundente reprovação, o que o deixa aberto para qualquer decisão. 

A ousadia de Macri, em sua primeira coletiva de imprensa, anuncia tempos muito instáveis para o país, afinal, se esperava uma certa cautela, mas não foi assim. Suas decisões fundamentalmente econômicas podem chegar a atingir rapidamente sua base eleitoral, e isso não parece preocupá-lo em demasia. Já agora deixa claro quais serão seus passos-chave na economia: forte desvalorização, flexibilização trabalhista e eliminação de paridade, só resta saber se vai acontecer imediatamente ou de forma gradual. 

Macri assume muito debilitado, com minoria de senadores e deputados, com 16 governadores peronistas e uma base eleitoral peronista/kirchnerista de 49%, que não é pouco e se prevê que logo no começo do novo governo muitos de seus votantes comecem a se lamentar, mesmo sendo tarde para lágrimas. Inclusive seus aliados políticos devem começar a se queixar da pouca presença de seus quadros na estrutura do novo governo. 

Macri precisaria de cerca de 12 mil pessoas para cobrir os postos essenciais tanto em nível nacional, como na província de Buenos Aires e na Capital Federal. Não é segredo para ninguém que seu partido Proposta Republicana (PRO) não conta nem por sonho com essa quantidade de possíveis funcionários. Fato que obrigaria o futuro presidente não a recorrer aos membros da União Cívica Radical, seu principal aliado, mas aos executivos e empregados do setor privado. 

Sem dúvida o novo governo seguirá apoiado no tripé que lhe deu êxito: os meios de comunicação, o mercado e o poder judicial. 

Os meios de comunicação que construíram ao seu redor um guarda-chuva protetor que o permitiu não só esconder seus problemas e ações de corrupção de seu governo na capital argentina, mas que não se cansaram de lançar uma artilharia pesada contra o governo federal em exercício.

O mercado que fez o jogo permanente das corridas bancárias, altas artificiais do dólar e até chegou a obrigar os funcionários dos bancos e empresas como Santander-Rio a fiscalizar as eleições, camuflados de militantes do PRO. 

O terceiro pé macrista foi o Poder Judiciário, que com uma corja de juízes e corrupções, conseguiu impedir o cumprimento de leis importantes sancionadas pelo Poder Legislativo, como a famosa e discutida Lei de Meios, que regulava o holding Clarín, responsável por articular todas as estratégias políticas, econômicas e midiáticas contra o governo. Juízes provenientes da ultradireita, com sérios antecedentes de violência politica nos anos mais cruéis da Argentina, que realizaram investigações espetaculares contra instituições governamentais e empresas relacionadas de alguma forma à presidenta. 

Macri assume sabendo que em poucos meses este tripé será seu único respaldo. Que vai cumprir pouco ou nada com suas promessas eleitorais, fundamentalmente as relacionadas a manter muitos dos benefícios sociais criados pelo atual governo. 

A coalizão Cambiemos, em seu desespero por alcançar a vitória eleitoral, não evitou prometer uma infinidade de resoluções que já sabia de antemão ser impossível cumprir. A cada setor social, a cada setor empresarial, a cada setor sindical prometeu muitas coisas. Com o decorrer do tempo não só não vai cumprir, mas também pode ser que se vire contra estes mesmos setores de agitação social, que sem dúvida começarão a ocupar as ruas novamente. 

Os mercados, a banca internacional, sabem que têm pouquíssimo tempo para operar na Argentina, apesar de ser muito cedo para começar a pensar em 2019 (próxima eleição presidencial), em 2017 acontecem as eleições onde se renovam parcialmente as câmaras legislativas, as quais certamente o macrismo não poderá ter aspirações, dada a pequena diferença eleitoral com seu opositor e o desgaste que já terá de dois anos de governo. Sendo assim, o mercado terá que saquear o Estado de forma urgente e sem anestesia para privatizar, vender e se endividar o máximo possível, já que hoje o país está sem dívidas e será muito fácil conseguir créditos. 

Apesar de ter falado que sua primeira visita oficial será ao Brasil, seu sócio econômico e político mais importante da Argentina, deseja ansiosamente a desestabilização do governo de Dilma, inclusive que caia antes do fim, pois será mais fácil negociar com seus sucessores. 

A polarização

Com este panorama, acredita-se que a famosa “polarização” que divide os argentinos não vai diminuir, mas com certeza se aprofundar. Já falou sobre isso um dos principais arquitetos deste projeto, o famoso jornalista Jorge Lanata, um mercenário do grupo Clarín: “a polarização não vai diminuir nem em anos”, talvez esta seja a única verdade que saiu de sua boca nos últimos tempos. Por via das dúvidas, já anunciou que vai embora para os Estados Unidos em 1º de dezembro. Soldado que foge...

As feridas são muitas e doem profundamente, a oposição que se protegeu atrás do candidato que considerou os meios e o establishment em geral: Macri esteve disposto a permitir e aceitar todos os boatos contra o governo como uma verdade revelada. Desde burlar a morte de Néstor Kirchner a uma infinidade de acusações de corrupção contra a presidenta, seus funcionários e até familiares, sem que nenhuma pudesse ir adiante para além da artificialidade graças à cumplicidade de muitos juízes cooptados material e/ou ideologicamente pelo antiperonismo. 

A presidenta Cristina Kirchner se retira com mais de 54% de aprovação, fato inédito na história da Argentina, que lhe habilita a se converter na primeira presidenta do país que depois de liderar um projeto de 12 anos, tem condições morais e políticas para ser a líder da oposição. 

Apesar das pesquisas que davam a sensação de que desta vez o kirchnerismo levaria uma grande surra, a que tantos desejavam, não foi assim que aconteceu. Ao contrário, mesmo que o governo tenha perdido, deixa aberta uma ferida para o futuro presidente: esses 49% de votos genuínos de militância própria ou de aliados ideológicos, já que os partidos que compõem a Frente Para a Vitória (nome oficial do projeto kirchnerista) são peronistas e de esquerda, além de organizações sociais que apesar de irrelevantes na hora da soma de votos, e também na repartição de cargos, acompanham o projeto por cunho puramente ideológico. 

Não é o mesmo que acontece com a aliança Cambiemos, composta fundamentalmente por dois partidos: o PRO, fundado pelo Macri em 2005 e a centenária União Cívica Radical (UCR) que em seus mais de cem anos de vida, apesar de ter tido sete presidentes, apenas dois terminaram seus mandatos; o último foi Marcelo Alvear, em 1928. Foi historicamente o rival do peronismo, mas jamais conseguiu seu lugar na história argentina e mesmo vangloriando-se de seu republicanismo, foi colaborador de todas as ditaduras. Fato que lhe permitiu uma certa subsistência, abandonando às mãos do peronismo o discurso popular e nacional que lhe deu origem em 1891, para se converter mais por azar que por vontade – já que há mais de meio século não existe um partido conservador – no representante da burguesia e dos setores médios. 

Junto ao peronismo, o radicalismo é o único partido com representatividade territorial, que ocupa muitas regiões e de vez enquanto algum governo. Esta foi a leitura que fundamentou a coalizão Cambiemos, já que o PRO até agora não tinha conseguido sair dos limites da cidade de Buneos Aires, que governava desde 2007. 

Macri sabe muito bem que a inesperada eleição da FPV o amarra ao seu tripé de poder e o convertem em um refém de seus aliados, não só os radicais, mas também alguns partidos das províncias e alguns sindicalistas peronistas como Hugo Moyano e Luós Borrionuevo, excepcionalmente dotados de ações mafiosas, comprometidos com a corrupção em grande escala e responsáveis por todas as greves, paralisações e protestos que acometeram o governo de Cristina. 

Estes “bons moços” não fazem favores gratuitos e sem dúvida já estão negociando regalias para suas empresas (ambos têm importantes empreendimentos nas mesmas áreas que dizem representar: Moyano é dos caminhoneiros e controla várias empresas de transporte e Barrionuevo é dos cozinheiros e entre seus muitos empreendimentos é o dono do restaurante de comida japonesa mais caro de Buenos Aires). Estes sindicalistas também são acusados de ter pertencido à Aliança Anticomunista Argentina (AAA), uma organização parapolicial que se incorporou à ditadura em 1976; sonham, desde essa época, em conseguir o Ministério do Trabalho para eles ou alguns de seus lacaios. 

O dilema do kirchnerismo é agora sobre quanto tempo Cristina levará para passar para a contraofensiva, quão debilitada sairá do grupo peronista e se vai conseguir continuar controlando-o (muito difícil) ou vai emergir em uma nova liderança. 

Muitos estão interessados em comparar o candidato derrotado, Daniel Scioli, com Lula e suas épicas derrotas antes de se consagrar presidente do Brasil. As diferenças entre ambos são abismais: Scioli, na verdade, sempre foi um homem da estrutura do peronismo, que quase fez carreira. Nos praticamente 20 anos que trabalha na política, não conseguiu montar um grupo de aliados e muito menos o fará agora. 

Uma das últimas notícias que chamou muita atenção foi a renúncia do atual presidente da UCR, Ernesto Sanz, que aspirava à chefia do Gabinete, mas só lhe ofereceram o Ministério da Justiça, um posto de segundo, ou terceiro nível. Sanz não só rechaçou o cargo, como renunciou à Presidência do radicalismo. Fato que praticamente significa o abandono da política. O que mais chama atenção é que foi o grande articulador da aliança PRO-Radicalismo. A versão oficial afirma que sua renúncia está ligada a graves problemas familiares. Alguns jornalistas políticos falam que seu passo à margem se deve à sua irritação com o cargo oferecido, mas outras fontes sempre bem informadas falam que Sanz pode ter sofrido extorsões pelos aliados de Macri, por ter informações muito secretas de atos de corrupção e questões mais privadas. 

O novo governo assume em 10 de dezembro, uma data que marcará o início de um novo inferno para a Argentina. 

*Guadi Calvo é escritor e jornalista argentino. Analista político internacional especializado em África, Oriente Médio e Ásia Central. Para ler mais, em sua página no Facebook

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