Ignorância ou má fé na avaliação da Petrobrás
J. Carlos de Assis
Paulo César Lima
Fernando Siqueira
O “Correio Braziliense” publicou no último 14 de outubro uma reportagem na qual supostos especialistas em petróleo - Demetrius Borel Lucindo, da DMBL, e Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura – sustentam com base em dados e conceitos totalmente equivocados a tese de que a Petrobrás, “se não tivesse o Governo por trás”, estaria falida ou teria de ser vendida. Não fosse a situação caótica por que passa o país, no qual prolifera o besteirol técnico com propósito de manipulação política, a reportagem seria irrelevante.
Contudo, os leitores do “Correio” merecem saber que não há absolutamente nada na reportagem que reflita a realidade da Petrobrás. Desde o título – Dívida a Petrobrás passa de meio trilhão de reais – até a aritmética que compara essa dívida à geração de caixa, tudo não passa de ilações grosseiras com números manipulados ou ignorados. É verdade que a Petrobrás tem uma dívida elevada – R$ 324 bilhões de dívida líquida no primeiro semestre, segundo dados oficiais -, o que é perfeitamente compatível com a geração de caixa
A receita líquida (EBITDA ajustado) no mesmo semestre foi de R$ 41 bilhões. Admitindo-se que se tenha o mesmo resultado operacional no segundo semestre, chega-se a um valor anual de R$ 82 bilhões. Em consequência, caso a Petrobrás suspendesse seus investimentos – algo que não deve fazer de forma alguma -, ela teria capacidade de pagar sua dívida em cerca de quatro anos. Será essa a empresa que os “especialistas” Lucindo e Pires querem quebrar, talvez pretendendo entregá-la aos grandes abutres internacionais?
Em relação à dívida, contudo, o mais importante nem é o potencial de pagamento a curto prazo - na medida em que a empresa tem fontes de financiamento disponíveis a prazos muito mais longos, inclusive na China -, mas a contrapartida dela, ou seja, o gigantesco ativo criado com os empréstimos tomados. Foi graças em grande parte à dívida que a Petrobrás descobriu e está desenvolvendo as reservas petrolíferas do pré-sal. E o montante recuperável dessas reservas colocam a Petrobrás na vanguarda da produção petrolífera no mundo.
De fato, a empresa detém 65% das reservas provadas de cerca de 10 bilhões de barris do campo Tupi, 100% de 10 bilhões de reservas de Búzios (cessão onerosa), 100% de 6 bilhões de barris de Carcará (também cessão onerosa), 40% de 15 bilhões de reservas de Libra, 60% das reservas de 4 bilhões de barris de Iara, 60% de 2 bilhões de barris de Sapinhoá, 70% de 6 bilhões de barris de reservas na área das Baleias no Espírito Santo. Assim, considerando outros campos menores, as reservas da empresa se elevam, conservadoramente, a 48 bilhões de barris.
O que significa, em dinheiro, 48 bilhões de barris de petróleo retirados de reservas brutas com um fator de recuperação de 35% - que é conservador, dado que a Petrobrás já opera com um fator de recuperação acima disso no pré-sal? Com o barril do petróleo a 50 dólares, dado que ninguém prevê um preço abaixo disso no futuro, são 2 trilhões e 400 bilhões de dólares, algo que, comparado à dívida da Petrobrás, a coloca numa situação patrimonial invejável, e perfeitamente administrável do ponto de vista operacional e de solvência.
Os investimentos da Petrobrás, parte por geração de recursos próprios, parte por empréstimos, fizeram com que suas reservas de petróleo – dela e não da União - ultrapassassem, em muito, as reservas de importantes petrolíferas mundiais como Shell, Exxon Mobil e BP. O indicador mais relevante para as empresas petrolíferas é justamente a relação entre a dívida e as reservas de petróleo. Atualmente, apenas a Exxon Mobil apresenta uma relação entre dívida e reserva menor do que a Petrobrás. Isso demonstra o equívoco da análise apresentada no artigo quando considera apenas o valor absoluto da dívida.
É importante assinalar que o verdadeiro valor referente ao volume recuperável de reservas da Petrobrás de, pelo menos, 48 bilhões de barris não está lançado nos registros contábeis da empresa. Dessa forma, o patrimônio líquido está subavaliado. Estão lançados apenas os custos de exploração e produção desse volume, que são muito baixos em relação ao valor real do ativo. Além disso, é óbvio que esse grande volume a ser produzido fará com que a geração de caixa da empresa seja maior que os R$ 353 bilhões estimados no próprio artigo.
Considere-se ainda que mesmo esse baixo valor de R$ 353 bilhões é muito maior que o valor dos financiamentos que vão vencer até 2018, da ordem de R$ 160 bilhões. A conclusão dos dois “especialistas” deveria, portanto, ser outra: a Petrobrás tem, sim, geração de caixa suficiente para pagar suas dívidas, e até fazer outras. Outro equívoco do artigo é mencionar que os custos administrativos, como a folha de pagamentos, não estão considerados no valor de R$ 355 bilhões. Isso é um erro grosseiro dos “especialistas”, já que tais custos são considerados no cálculo da receita (EBITDA).
Também não é verdade que o custo de capação da Petrobrás está em 13% em dólar. Em junho de 2015, a empresa captou US$ 2,5 bilhões em notas globais com prazo de 100 anos no mercado internacional. Esse papéis saíram com um rendimento para o investidor de 8,45% ao ano e um cupom de 6,85% ao ano. Registre-se que a demanda pelos títulos chegou a US$ 13 bilhões, o que indica que o rendimento poderia ter sido até menor. Também é importante notar que a taxa interna de retorno dos projetos de exploração e produção da Petrobrás é de cerca de 25%, algo que justifica plenamente a tomada de dívida para investimentos.
A Petrobrás foi e continua sendo a empresa mais lucrativa do Brasil. Assim, não fazem sentido as alegações dos dois “especialistas” segundo as quais a empresa só não entrou em recuperação judicial porque tem o governo brasileiro por trás; ou, ainda, que se fosse privada teria falido. De fato, de 2006 a 2013 os lucros médios da Vale e da Petrobrás foram, respectivamente, de R$ 17,9 bilhões e R$ 27,8 bilhões, com ampla vantagem para a Petrobrás. Além disso, no ano de 2015, a empresa conquistou o mais importante prêmio internacional na área da indústria petrolífera mundial.
Portanto, confundir a Petrobrás com os bandidos que ocuparam parte de sua governança por um tempo, suscitando a investigação-espetáculo da Lavajato que a fragilizou sem necessidade, é um insulto à inteligência do povo brasileiro que não pode se deixar manipular pelos oportunistas, internos e externos, que querem assaltá-la, assim como às reservas de petróleo do Brasil, cobiçadas mundialmente. As alternativas de engavetamento do pré-sal e da venda de ativos citadas pelos dois “especialistas” para contornar a crise circunstancial a empresa são meros pretextos para a entrega dos recursos naturais do país a empresas estrangeiras.
Certo, a Petrobrás passa por uma crise, mas ela não se deve primariamente a suas condições econômicas. É uma crise de liquidez, que se resolve com relativa facilidade. Isso pode ser feito, por exemplo, dentro das linhas do projeto Requião sobre a reestruturação do setor petróleo, que está sendo relatado no Senado pelo senador Marcelo Crivella. De acordo com esse projeto, o Tesouro, repetindo um expediente adotado em 2009 e 1010, injetaria na Petrobrás os recursos necessários para que volte ao nível de investimento em outubro de 2014. Outra alternativa seria recorrer ao Banco dos BRICS ou, mesmo, a um empréstimo direto da China. Em qualquer hipótese, será necessário uma faxina em regra na governança da Petrobrás.
Recorde-se que quando o Primeiro Ministro chinês, Li Keqiang, esteve recentemente no Brasil foi anunciado que a China disponibilizaria uma linha de crédito para o país, através da Caixa Econômica Federal, de US$ 50 bilhões de dólares. Acho que o Governo, mergulhado na crise política, esqueceu-se desse dinheiro, não tendo proposto, que eu saiba, um único projeto para mobilizá-lo. Creio que não há hora mais apropriada para direcioná-lo para a Petrobrás a fim de que ela recupere sua capacidade de investimento e irrigue financeiramente a cadeia produtiva do petróleo, salvando nesse mesmo movimento os fornecedores, as construtoras contratadas e as prefeituras das áreas petrolíferas que estão quebrando Brasil afora.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política brasileira.
Paulo César Lima - Ex-engenheiro da Petrobrás, atual assessor legislativo do Congresso Nacional.
Fernando Siqueira - Engenheiro aposentado da Petrobrás, vice-presidente da AEPET e diretor do CREA-RJ
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