TIJOLAÇO
POR FERNANDO BRITO · 18/10/2015
Esta semana, o ex-delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz foi, como manda a lei, demitido do cargo por sentença de instância final por vazar informações à TV Globo, no episódio da prisão do ex-prefeito Celso Pitta, em meio à Operação Satiagraha.
Não me apego ao fato de Protógenes ter assumido, de uns tempos para cá, comportamento polêmico, marcado pelo misticismo e por posições políticas diversas das que sustentou antes. É seu direito humano.
Mas reproduzo, por amor á verdade e horror à hipocrisia, a postagem de Rubens Valente, autor de Operação Banqueiro que, como bom repórter, não briga com fatos, mas jamais deixa de comparar comportamentos.
Quando se tratou de vazar o que servia à direita, não se deu a ninguém o tratamento que se deu a Protógenes Queiroz.
Se o mesmo critério leonino de punir “vazamentos” como elementos de contaminação de processo, não sobra uma gota na “Lava-Jato”.
Os pesos e as medidas
Rubens Valente, no Facebook
No livro “Operação Banqueiro”, lançado no ano passado, dediquei especial atenção a um vídeo gravado por uma equipe da Rede Globo e levado ao ar no “Jornal Nacional” logo após a deflagração da Operação Satiagraha, em julho de 2008.
O vídeo documentou uma reunião ocorrida no restaurante El Tranvía, em São Paulo, entre o delegado da Polícia Federal Victor Hugo e dois emissários do banco Opportunity, Hugo Chicaroni e Humberto Braz.
Como havia sido realizada por uma equipe de TV e não pela Polícia Federal, a gravação gerou diversos questionamentos do banco Opportunity e de uma parte da mídia, segundo os quais a gravação teria configurado “fraude processual”.
Antes de entregar o vídeo ao juiz do caso, Fausto De Sanctis, o delegado editou as cenas de modo a cortar as imagens em que os jornalistas apareciam.
Ao agir assim, segundo a versão amplamente espalhada na ocasião, ele teria “contaminado” ou falsificado as provas e induzido o juiz a erro.
Caso a fraude fosse comprovada, poderia ruir a condenação em primeira instância de Daniel Dantas e outros pelo pagamento de suborno para funcionários públicos federais.
Por isso este ponto é importante na história da Satiagraha.
Após analisar detidamente a questão do vídeo no restaurante, expliquei aos leitores de “Operação Banqueiro” que inexistia fraude processual.
Na página 276, afirmei: “O vídeo gerou inúmeros questionamentos dos advogados do Opportunity, que passaram a dizer que Protógenes havia ‘terceirizado’ para a tevê o registro do ato do suborno.
Entretanto, como sempre foi de conhecimento da Justiça e como pode ser facilmente verificado, as conversas foram todas captadas por equipamento próprio em poder do delegado Victor Hugo.
São esses os arquivos analisados e transcritos por peritos criminais no processo que condenou Dantas por suborno.
Na sentença condenatória, assinada por De Sanctis, a referência à gravação em vídeo, de tão inexpressiva que é no conjunto das provas, não passou de uma nota de rodapé.
As imagens apenas corroboraram a existência do encontro, mas nada acrescentaram ao material gravado em áudio pela PF”.
Logo mais adiante, asseverei: “O trabalho de [dos jornalistas da TV] Cerântula e William configurou, tão-somente, um grande furo jornalístico”.
Entretanto, com base no argumento da suposta “fraude processual” e de “vazamento de informações”, o delegado Protógenes Queiroz foi condenado em primeira instância na Justiça Federal com o apoio do Ministério Público Federal de SP.
Com a eleição do delegado à Câmara dos Deputados, o processo seguiu para o STF.
No tribunal registrou uma tramitação fantasticamente rápida, tendo sido julgado em uma das turmas em novembro de 2014.
(Aliás, nesse caso todo marcado por fatos inéditos, foi a primeira vez na história do Supremo que um parlamentar foi julgado e condenado por uma turma, e não pelo plenário.)
A imprensa destacou, no dia seguinte ao julgamento, que Protógenes foi condenado por “vazamento de informações”.
Com a exceção creio que da “Folha de S. Paulo”, nenhum outro veículo deu o necessário destaque ao segundo fato: a negação peremptória, pelo STF, de que houve a tão alegada “fraude processual”.
O acórdão da decisão foi publicado no Diário de Justiça em 2 de dezembro de 2014. Qualquer leitura isenta da decisão concluirá que os ministros do Supremo, por unanimidade, afastaram qualquer hipótese de fraude processual, exatamente como descrito em “Operação Banqueiro”.
Não há qualquer espaço para se falar em parcialidade nessa decisão. O ministro Teori Zavascki foi o mesmo que, como relator, condenou Protógenes por vazamento.
Porém, ele escreveu: “De resto, não há sequer elementos suficientes para afirmar, com a segurança que a condenação penal exige, que a alteração pretendesse induzir a erro o juízo. A acusação, a quem competia tal ônus, dele não se desincumbiu e, ademais, está pedindo a absolvição quanto a essa imputação”.
O ministro acrescentou: “O Ministério Público Federal manifestou-se, acertadamente, pela atipicidade da mencionada edição de imagens, na consideração de que o fato de expungir aquelas partes que pudessem identificar a origem (Rede Globo) e de que a violação do sigilo para a filmagem não seria suficiente para caracterizar fraude”.
É isso mesmo, caros leitores, o Ministério Público Federal mudou de opinião (quantos fatos insólitos nesse processo). Embora os procuradores da República de primeira instância tenham solicitado a condenação do delegado por “fraude”, a Procuradoria Geral da República discordou e pediu a absolvição do delegado nesse ponto, explicando que a edição do vídeo nunca induziu o juiz De Sanctis a nenhum erro.
E depois o Supremo concordou, claramente, que a PGR é que estava certa, não os procuradores de São Paulo.
Em seu voto, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo, reiterou que o comportamento de Protógenes não induziu De Sanctis a erro nem afetou as provas da Satiagraha. “Vê-se, pois que a proposta de absolvição penal tem por suporte a ausência de tipicidade penal do comportamento imputado aos ora apelantes, eis que o preceito primário de incriminação, tal como definido no artigo 347, parágrafo único do Código Penal, supõe, para aperfeiçoar-se a existência de dolo (a finalidade de induzir a erro o juiz ou perito) e de comportamento artificioso, o que não restou comprovado nos autos.”
A ministra Cármen Lúcia foi igualmente taxativa. “[…] Também não consigo verificar a ocorrência de fraude processual tipicamente demonstrada nestes autos. […] De toda sorte, não há demonstração que possa levar a um juízo de condenação por ausência de provas, porque não se tem a conduta do primeiro apelante [Protógenes] como tento atuado no sentido de levar aquele corte de imagens e a transformar numa outra imagem, fraudando processualmente como alegado”.
A Satiagraha, portanto, não sofreu qualquer “fraude processual”, segundo o STF.
Resta falar sobre a condenação do delegado por vazamento de informações à imprensa, acusação que levou à sua demissão da PF.
Tendo analisado com atenção todas as provas, concluo que o processo do STF não apresenta nenhum áudio de gravação telefônica, nenhuma imagem, nenhuma confissão tanto de Protógenes quanto dos jornalistas da Globo de que o delegado foi de fato a fonte de informações que permitiram à TV Globo gravar o encontro no restaurante e também chegar em primeira mão à calçada da rua do ex-prefeito Celso Pitta, filmado de pijama ao sair de casa em 8/7/2008.
Os ministros do STF decidiram pela condenação do delegado com base em indícios, em especial os registros de que houve telefonemas (chamados de “bilhetagem”) trocados entre o delegado e jornalistas.
Entretanto, não se sabe o que foi tratado em tais telefonemas, que não foram gravados. Mesmo assim, o STF condenou o delegado. A meu ver, a decisão foi uma interpretação de circunstâncias.
Mais duas coisas devem ser ditas: a) nenhum desses dois vazamentos atribuídos a Protógenes prejudicou ou inviabilizou a deflagração da Operação Satiagraha.
As imagens decorrentes do primeiro vazamento só foram levadas ao ar na TV após as prisões, e não antes, portanto não houve qualquer dano à investigação; o segundo vazamento ocorreu na manhã da própria deflagração da operação e não pôs em risco a apreensão de qualquer documento nem evitou qualquer prisão;
b) vazamentos são parte da rotina de inúmeras operações policiais. Basta ligar a TV para ver suspeitos sendo presos e algemados em todos os cantos do país, inclusive em suas próprias casas.
Vimos pela TV inúmeras vezes os empreiteiros e políticos sendo conduzidos pela PF na Operação Lava Jato, situação muito semelhante ao episódio Pitta.
Não se trata de defender o policial que permite a gravação de uma pessoa sendo presa em sua residência, ressalto apenas a diferença de tratamento sobre casos semelhantes, ou seja, o emprego de dois pesos e duas medidas.
Filmar Pitta de pijama (desde a calçada, é bom frisar, pois assim ele saiu de sua casa) foi visto como um crime que mereceu expulsão de um delegado dos quadros da PF, mas, por exemplo, acompanhar lado a lado uma equipe da polícia do Rio durante a apresentação de um suspeito black bloc, como ocorreu em 2013, é permitido e até estimulado. Passa até como um grande acontecimento.
Com a condenação pelo STF e a demissão da PF, o delegado Protógenes passa a uma condição única, especial.
Ele é hoje a única pessoa condenada e punida em decorrência da própria operação que ajudou a desencadear. E durante a qual, aliás, ao lado de seu colega Victor Hugo, se recusou receber um suborno milionário.
É inusitado, para dizer o mínimo, que o delegado tenha sido condenado e expulso por uma operação que o STJ já anulou, em 2011.
Ou seja, as provas coletadas durante a investigação foram consideradas válidas para condenar e punir o delegado, mas não para condenar quem ele investigou e prendeu.
Como sabemos, em 2008, em decorrência de uma série de decisões do STF e do STJ, o delegado não conseguiu concluir sua investigação, o juiz De Sanctis não conseguiu julgar o processo e o Ministério Público Federal não conseguiu terminar sua investigação.
Foram todos impedidos por forças maiores e mais ativas, para dizer o mínimo.
Vejo que agora em 2015, com a saída de Protógenes da PF, quer se construir a versão de que a Operação Satiagraha não foi levada adiante tão somente por “problemas” criados pelo próprio “atrapalhado” delegado, que teria feito “teatrinhos”.
Essa teoria simplória configura uma leitura reducionista da história e uma tentativa de reescrever o passado pelas conveniências do presente.
Como se não houvessem ocorrido dois habeas corpus do STF em tempo recorde, o factoide de um suposto grampo telefônico que nunca apareceu e as acusações infundadas e mentirosas sobre o juiz De Sanctis ter mandado “grampear” o ministro do STF Gilmar Mendes.
Todas essas acusações, com o apoio decisivo da cúpula da Polícia Federal, torpedearam e inviabilizaram o prosseguimento da Satiagraha. Atribuir tudo ao delegado é uma saída fácil, porém inegavelmente, ela sim, fraudulenta.
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