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O Senado tomará uma decisão de grande importância nos próximos dias. Decidirá se Dilma Rousseff reassumirá o mandato para o qual foi eleita ou será afastada em definitivo.
Foto: Agência Senado
Na primeira hipótese, restaura a democracia no país, cria as condições para a superação da crise de poder atual e para a antecipação da eleição presidencial. Na segunda, entrega o poder a um grupo que o abocanhou com artimanhas iníquas, adulterando a Constituição, inclusive para livrar corruptos de investigação criminal, e que será contestado o tempo todo como golpista.Plenário do Senado Federal inicia hoje a fase final do processo de impeachment
É nesse momento que os brasileiros se perguntam: a que tradição o Senado se filiará ao tomar tão graves decisões?
O Senado tem duas tradições que coexistem: a de decidir problemas de repercussão nacional levando em conta os interesses do país, buscando saídas para as crises, e a de submeter-se a motivações menores, oportunistas, fisiológicas, quase sempre corruptas. Uma tradição engrandece a Casa; a outra, a envergonha.
O que o Brasil precisa e quer é que o Senado, ao julgar o impeachment da presidenta Dilma, siga a tradição enobrecedora da Casa e não a outra tradição, mesquinha e arrivista. Há uma longa história, e muitos nomes, que devem servir de exemplo.
Começa pela Roma antiga, quando o Senado foi criado, ainda no tempo da Monarquia. Era a reunião dos “cidadãos mais experientes”. Bem mais à frente, no tempo da República, que durou quase cinco séculos, o Senado romano teve seu período áureo. Com a emergência do Império Romano, em 27 a.C. , ele entrou em declínio, mas nunca desapareceu.
Essa antiga experiência foi reproduzida, sob formas variadas, nos estados modernos. Às vezes, para separar as classes, como na Câmara do Lordes, na Inglaterra; às vezes para concentrar experiências, como no Conselho de Anciãos, na França; ou para equilibrar os poderes, como nos Estados Unidos, no Brasil e em muitos outros países.
O Brasil passou a ter Senado em 1826, há 190 anos. A mesquinharia muitas vezes tem se infiltrado na veneranda instituição, com seu séquito de interesses escusos, de verborreia hipócrita, de manobrismo espúrio e de corrupção deslavada.
Mas outra linha de comportamento também tem marcado presença no Senado e frequentemente ele tem sido trincheira da nacionalidade, da democracia, dos direitos do cidadão, da honradez e da busca de saídas para situações difíceis.
Logo no alvorecer da República, uma questão dividia o Senado: fortalecer os estados, deixando fraca a União, ou fortalecer prioritariamente a União? Um vulto se projeta nessa polêmica, o do senador Ruy Barbosa, que depois viria a ser o patrono do Senado. “A nascente República não vigorará se a União for fraca....”, disse ele. E mais: “Se não denotarmos preocupação com a unidade da Pátria, a República será uma grande decepção”. Prevaleceu o federalismo com a União fortalecida. O grande jurista venceu. E como Ruy conhecia a Justiça como poucos, mais à frente achou por bem advertir: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
A eleição de 1945 para o Senado foi educativa desde a proclamação de seu resultado, pois revelou que a pessoa que mereceu, até então, a maior votação para esse cargo foi um ex-preso político, um comunista, Luís Carlos Prestes, exemplo de idealismo, honradez, patriotismo e combatividade. E os senadores constituintes elevaram o nível das discussões então havidas e contribuíram decisivamente na elaboração da Constituição de 1946.
Em tempos mais próximos, no enfrentamento da ditadura de 1964, também o Senado cumpriu papel proeminente.
Na eleição de 1974, o povo percebeu que votar para senadores poderia ser uma grande manifestação conta a ditadura, e deu ao partido de oposição, o MDB, uma votação altamente significativa, que lhe permitiu eleger 16 das 22 vagas disputadas no Senado. Entre os vitoriosos que lá apareceram estavam nomes como Itamar Franco, Paulo Brossard, Orestes Quércia, Marcos Freire, Danton Jobim, Saturnino Braga e outros. Era uma turma honrada, de combate, que nunca foi apanhada vendendo a Pátria ou vendendo favores. A Arena, o partido da ditadura, elegeu apenas seis senadores.
O Senado, a partir de então, passou a ser visto como um dos centros da rebeldia ao regime. Por isso, a ditadura criou os senadores “biônicos”.
A pressão pela Anistia aos perseguidos do regime militar cresceu muito e em 1979 o governo enviou um projeto de anistia ao Congresso. A comissão que o analisou foi presidida por um dos seis senadores eleitos pela Arena, na safra de 1974. Este senador percorreu todos os presídios políticos do país, ao cabo do que declarou não ter encontrado nenhum terrorista preso. Mudou de partido. Defendeu a anistia ampla, que não passou. Mas contribuiu muito para a anistia conquistada. Notabilizou-se como amante da liberdade. Foi chamado de “o menestrel das Alagoas”, e seu nome era Teotônio Vilela. Mostrou que pessoas de elevado caráter chegam a mudar de partido, para permanecerem fiéis a seus princípios, à sua consciência e a ideais grandiosos.
Representando Pernambuco, eleito pela Arena, o senador Nilo Coelho presidia o Senado em 1983. O governo ditatorial havia editado o Decreto Lei 2024/83, por imposição do FMI, arrochando os salários. A 22 de setembro do mesmo ano, uma sessão do Congresso preparava-se para derrubar o dito decreto. Seria a primeira vez na história da ditadura que isto aconteceria. Nilo Coelho, que era o presidente do PDS, sucedâneo da Arena, e que presidia a sessão do Congresso, começou a receber pressões para virar o jogo. De repente, anunciou que queria fazer um pronunciamento e foi à tribuna, donde, enfático, declarou: “eu não estou aqui como presidente do Congresso do PDS, mas sim como presidente do Congresso do Brasil”. Foi aclamado. E o Decreto 2024 foi rejeitado.
Assim, o Senado do Brasil abriga toda uma linha de comportamentos dignificantes, construída por senadores de diversos partidos, em uma relação onde aparecem, além dos já citados, João Mangabeira(BA), José Américo de Almeida (PB), Afonso Arinos (RJ),Artur Bernardes (MG), Campos Sales (SP), Getúlio Vargas (RS), José Ermírio de Moraes (PE), Juscelino Kubitcheck (MG) Darcy Ribeiro (RJ), Tancredo Neves (MG), Abdias do Nascimento (RJ), Josaphat Marinho e tantos outros.
O Senado tem agora mais uma oportunidade de levantar bem alto a bandeira da Casa que defende os interesses nacionais, no caso, a salvaguarda da democracia, a não sujeição a relatório desmoralizado, enfeitado de pedantismo, distorções e hipocrisia. O Senado deve buscar uma saída democrática para o país.
O impeachment de Dilma não tem base legal, é uma arbitrariedade apoiada em artificialidades e mentiras. Pretende salvar corruptos de investigações criminais, como mostram delações premiadas, e visa desmontar a estrutura que beneficiou os pobres do Brasil na última década. Perpetrado, aprofundaria a crise em nosso país, nosso povo teria que voltar a lutar pela restauração democrática, contra governo ilegítimo, retrógrado, implantado por um golpe parlamentar-judicial. Ao contrário, derrotado o impeachment, a vontade de 54 milhões de eleitores teria enfim prevalecido e a democracia restaurada.
A partir daí, um outro problema se coloca. É que a presidenta Dilma, uma mulher honesta, competente, patriota e de luta, não dispõe neste momento das condições políticas necessárias para dirigir a nação. Ter contra si cerca de 2/3 dos membros de cada uma das duas casas do Congresso é um fato objetivo, que mostra estar a governabilidade comprometida.
Diante disso, diversos setores, entidades e partidos políticos, como o PCdoB, levantam a ideia de um plebiscito para consultar o povo sobre a conveniência de antecipar a eleição presidencial de 2018, e realizá-la. A própria presidenta Dilma, em sua carta aos senadores, defendeu esse caminho. Se voltar ao governo, estará comprometida com ele.
Mas, se o caminho do plebiscito não for o mais aceito, pode o Senado, com criatividade, encontrar e sinalizar uma outra alternativa, conquanto que restaure a democracia e dê uma saída para que um presidente possa governar, o que requer mandato conquistado nas urnas.
Criar alternativas originais, quando a situação é difícil, mas os interesses maiores da nação imperam, é um exercício político com precedentes no Senado.
Nos idos de 1850, por exemplo, eram grandes as ameaças à estabilização do país. Disputas acirradas e contradições diversas desembocavam em revoltas regionais várias e graves. O futuro imperador era menor de idade e o governo dos regentes não estava conseguindo dirigir o país. A própria integridade territorial estava ameaçada. Surgiu a crise. O povo pressionou o Senado. E este encontrou uma saída, absolutamente original, que colocava no poder central um mandatário respeitado, ante o qual a unidade se refazia. O Senado aprovou uma declaração segundo a qual o menino Pedro de Alcântara, de 14 anos, passava a ser considerado “maior de idade”, e assumia as funções de Imperador Constitucional do Brasil, com o nome de Pedro II. Foi a preliminar para se restabelecer a unidade nacional.
Que os senadores juntem seus nomes à relação dos ilustres colegas referidos acima, a começar por Ruy Barbosa, e não se misturem com os nomes que aparecem nas delações premiadas que estão por aí escandalizando a nação. A história é implacável, para realçar o acerto e a coragem, e para condenar o oportunismo e a hipocrisia.
Haroldo Lima é engenheiro, foi deputado federal e diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo e Energia (ANP) e integra a Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
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