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quinta-feira, 30 de junho de 2016

John Pilger: Por que razão os britânicos disseram não à União Europeia


29 de Junho de 2016 - 16h34 

Portal Vermelho


Os britânicos não deliberaram sair da Europa em nenhuma jangada de pedra!, o que seria muito mais complicado e de consequências mais inimagináveis do que a vontade democraticamente manifestada de sair da União Europeia… Convém distinguir, mesmo que na Europeia estivessem todos os países da Europa. E não estão.

Por John Pilger


Reino Unido votou pela saída da União Europeia em 23 de junho

Reino Unido votou pela saída da União Europeia em 23 de junho

E quiseram sair porque, entre outras razões, "no Reino Unido de hoje, 63% das crianças pobres crescem em famílias onde apenas um membro tem trabalho. Para eles, a armadilha está montada. De acordo com um estudo, mais de 600 mil residentes da segunda cidade britânica, a Grande Manchester, estão "a sofrer os efeitos da pobreza extrema" e 1,6 milhão está caindo na miséria".

O voto majoritário dos britânicos a favor do abandono da União Europeia foi um ato de democracia pura. Milhões de pessoas comuns recusaram ser ameaçadas, intimidadas e rejeitadas com desprezo pelos presumidos dirigentes dos principais partidos, líderes da oligarquia dos negócios e da banca e das mídias.

Em grande parte, este foi um voto dos zangados e desmoralizados pela extrema arrogância dos defensores do "ficar" e a campanha de destruição no Reino Unido de uma vida civil socialmente justa. O último bastião das reformas históricas de 1945, o Serviço Nacional de Saúde, foi tão subvertido pela privatização apoiada por Conservadores e Trabalhistas que agora resolveram lutar pela sua vida.

Um primeiro aviso foi feito quando o ministro das Finanças, George Osborne, uma mescla do antigo regime britânico com a máfia bancária da Europa, ameaçou cortar 30 bilhões de libras aos serviços públicos se as pessoas votassem de forma errada. Foi uma chantagem chocante.

Ao longo da campanha a imigração foi explorada com enorme cinismo, tanto por políticos populistas da direita como por políticos trabalhistas que se inspiraram na sua própria tradição de promoção e fomento do racismo, um sinal, não da corrupção na base mas sim no topo. A razão porque milhões de refugiados fugiram do Oriente Médio – primeiro do Iraque, depois da Síria – está nas invasões e no caos provocado pelos imperialistas do Reino Unido, Estados Unidos, França, União Europeia e Otan. Antes disso, houve a destruição deliberada da Iugoslávia. E antes houve ainda o roubo da Palestina e a imposição de Israel.

Os capacetes podem ter desaparecido, mas o sangue nunca secou. Desde o século 19 que, em função da sua utilidade colonial, o desprezo por países e povos é uma peça central da moderna "globalização" com o seu perverso socialismo para os ricos e capitalismo para os pobres; a liberdade para o capital e a negação da liberdade para o trabalho; os seus pérfidos políticos e os seus funcionários politizados

Tudo isto agora volta à Europa, enriquecendo os amigos de Tony Blair e empobrecendo e despojando milhões de pessoas. Em 23 de junho, os britânicos disseram basta.

O propagandista mais eficaz do “ideal europeu” não foi a extrema-direita, mas a insuportável classe aristocrática para quem a Londres metropolitana é o Reino Unido. Seus principais membros julgam-se liberais esclarecidos, mesmo "brilhantes", tribunos cultos do século 21. O que realmente são é uma burguesia com gostos consumistas, insaciáveis, de instintos antigos quanto à sua própria superioridade. Dia após dia, no seu jornal, o The Guardian, eles olhavam triunfantes para os que consideravam a UE profundamente anti-democrática e uma fonte de injustiça social e de um extremismo virulento conhecido como “neoliberalismo”.

O objetivo deste extremismo é instalar uma teocracia capitalista permanente para assegurar que dois terços da sociedade, na sua maioria divididos e endividados, sejam administrados por uma classe corporativa, e os trabalhadores permanentemente pobres. No Reino Unido de hoje, 63% das crianças pobres crescem em famílias onde apenas um membro tem trabalho. Para eles, a armadilha está montada. De acordo com um estudo, mais de 600 mil residentes da segunda cidade britânica, a Grande Manchester, estão "a sofrer os efeitos da pobreza extrema" e 1,6 milhão está caindo na miséria.

Esta catástrofe social é pouco conhecida nas mídias controlados pela burguesia, nomeadamente pela elite que domina a BBC. Durante a campanha do referendo, quase nenhuma peça informativa teve permissão para se intrometer no histérico clichê de "sair da Europa", como se o Reino Unido estivesse prestes a ser arrastada por correntes contrárias para algum lugar do norte da Islândia.

Na manhã seguinte à votação, um repórter de rádio BBC deu as boas-vindas a políticos no seu estúdio como se fossem velhos amigos. "Bem", disse ele para o "Lorde" Peter Mandelson, o arquiteto da desgraça do blairismo, "por que é que estas pessoas querem isto?" Ora, "Estas pessoas" são a maioria dos britânicos.

O ricaço criminoso de guerra, Tony Blair, permanece um herói da classe "europeia" de Mandelson, embora poucos se atrevam a dizê-lo nos dias de hoje. O The Guardian uma vez descreveu Blair como o "místico" que tem sido fiel ao seu "projeto" de guerra de rapina. No dia seguinte à votação, o colunista Martin Kettle propôs uma solução brechtiana para o mau uso da democracia pelas massas. "Agora certamente que concordamos que os referendos são maus para o Reino Unido", dizia a manchete sobre o seu artigo de página inteira. O "nós" não foi explicado mas foi entendido – assim como "estas pessoas" também foi entendido. "O referendo retirou legitimidade à política, apenas (…); O veredicto sobre os referendos deveria ser implacável. Nunca mais".

A espécie de brutalidade de que Kettle sente saudade é encontrada na Grécia, um país agora em evaporação. Ali, também eles tiveram um referendo mas o resultado foi ignorado. Tal como o Partido Trabalhista no Reino Unido, também os dirigentes do governista Syriza em Atenas são produtos de uma classe média educada, rica, altamente privilegiada, treinada na falsificação e na traição política do pós-modernismo. O povo grego corajosamente utilizou o referendo para pedir ao seu governo "melhores condições" em relação a um status quo venal em Bruxelas que estava a esmagar a vida do seu país. Foi traído, tal como os britânicos teriam sido traídos.

Na sexta-feira, a BBC perguntou ao líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, se homenagearia a despedida de Cameron, seu camarada na campanha do "ficar". Corbyn, repugnantemente, louvou a "dignidade" de Cameron e desviou a conversa para o seu apoio ao casamento gay e as suas desculpas às famílias irlandesas enlutadas pelo domingo sangrento . Nada disse sobre a tendência para a discórdia de Cameron, suas políticas de austeridade brutal, suas mentiras sobre a "defesa" do Serviço de Saúde. Nem tão pouco recordou pessoas que prepararam guerras no governo Cameron: o envio de forças especiais britânicas para a Líbia e os tripulantes britânicos que faziam pontaria para bombas da Arábia Saudita e, acima de tudo, a saudação à terceira guerra mundial.

Na semana da votação do referendo, nenhum político britânico nem, que eu saiba, nenhum jornalista se referiu ao discurso de Vladimir Putin em São Petersburgo, em memória ao 75º aniversário da invasão da União Soviética pela Alemanha nazista em 22 de junho de 1941. Foi a vitória soviética – com um custo de 27 milhões de vidas soviéticas e o confronto com a maioria das forças alemãs – que venceu a Segunda Guerra Mundial.

Putin comparou a atual passagem de tropas e material bélico da Otan para junto das fronteiras ocidentais da Rússia à Operação Barbarossa do Terceiro Reich. Os exercícios da Otan na Polônia foram os maiores desde a invasão nazista; a Operação Anaconda simulou um ataque à Rússia, presumivelmente com armas nucleares. Na véspera do referendo, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, advertiu os britânicos de que eles estariam a por "a paz e a segurança" em perigo se votassem pelo abandono da UE. Os milhões que o ignoraram, tal como ignoraram Cameron, Osborne, Corby, Obama e o homem que dirige o Banco da Inglaterra, deram-lhes uma bofetada, a favor da paz e da democracia na Europa.

Fonte: Diário.Info a partir do original no site http://johnpilger.com
http://johnpilger.com/articles/why-the-british-said-no-to-europe




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