publicado em 09 de março de 2015 às 20:24
por Luiz Carlos Azenha
Nunca a classe média militou tanto politicamente quanto em tempos recentes. Nas eleições de 2014, atuou diuturnamente nas redes sociais e, mesmo sem ser convocada, saiu voluntariamente por aí com reproduções da Veja para buscar votos.
Tudo isso deve ser saudado como um passo positivo. O processo de criação de novas lideranças é prolongado e atuar em defesa de seus interesses de classe é não só legítimo, como pode servir de escola.
Porém, as eleições acabaram. Não está previsto um terceiro turno. E a classe média, agora, quer ganhar no grito. Literalmente.
Ela confunde o desabafo apaixonado do torcedor que grita gol de seu clube na sacada com o “fazer política” através de panelas e buzinas. É o barulho que cala o adversário e impede o diálogo. “Vaca”, “vadia” e “filha da puta” fazem parte do repertório de quem, no grito, quer negar ao outro o direito de se expressar.
A classe média, neste sentido, consegue ser ainda pior que o Jornal Nacional, que também cerceia a liberdade de expressão alheia, enquanto privilegia os seus — mas pelo menos o faz de maneira politicamente correta.
Existe um cordão umbilical entre ambos. Há quase 50 anos o JN, com suas mentiras, distorções, omissões e meias verdades, é o principal instrumento para moldar o analfabetismo político no Brasil.
Os governos do PT, como sabemos, quase nada fizeram para mudar isso. José Dirceu, lembrem-se, foi aquele ministro que acreditou que a Globo “era nossa”.
A classe média não quer saber de criar sindicatos, partidos, associações de moradores e movimentos sociais, nos quais um integrante pode tudo, menos ganhar no grito.
Até mesmo na reunião de condomínio é preciso argumentar, perder uma, ganhar outra e seguir a vida, do jeitinho que é na Política com pê maiúsculo.
Porém, os analfabetos políticos não conseguem alcançar intelectualmente a ideia de que conviver com o diferente está no cerne de qualquer democracia. Perder faz parte do jogo.
O GAFE — Globo, Abril, Folha e Estadão — faz o trabalho inverso daquelas máquinas de diálise e cada vez mais envenena o sangue dos desvairados.
O veneno é potencializado pelo organismo do analfabeto político. Lembrem-se, ele é um ser a-histórico, alimentado por doses diárias de informação descontextualizada.
Justamente por isso, vicejam neste ambiente as teorias conspiratórias mais desconexas. A acreditar nelas, o filho do Lula é dono de uma fazenda cuja sede é a Escola de Agronomia Luís de Queiroz (ESALQ), de Piracicaba. Tropas estrangeiras, vindas da Venezuela, já teriam invadido o Brasil com o objetivo de apoiar um golpe de esquerda de um governo cujo ministro da Fazenda é Joaquim Levy. Os médicos cubanos, devidamente infiltrados, estariam apenas esperando um sinal de Dilma para espalhar o vírus vermelho da comunização.
Estes absurdos não parecem absurdos a uma parcela considerável dos analfabetos políticos. Eles acreditam em tudo o que de alguma forma se encaixa em seus preconceitos.
Nesta manhã um colega narrou a seguinte experiência. Ele estava em casa quando ouviu a gritaria e o panelaço vindos, especialmente, de um prédio luxuoso, cujo condomínio custa 5 mil reais mensais. Saiu de casa e manifestou sua opinião contrária. Recolheu-se e foi dormir. Ao acordar, os vidros da porta principal de seu prédio estavam quase todos destruídos.
Este é o nível ao qual chegou o ódio irracional, capaz de fazer muito mais danos à democracia quando se espalha feito fogo pelas redes sociais. Marx talvez nunca tenha imaginado que chegaríamos a tal ponto: a guerra de classes instantânea.
No twitter, chamou minha atenção a mensagem de um internauta dizendo que a classe média brasileira tem sorte de não morar na Venezuela, onde falar mal do governo leva à cadeia. Eu o corrigi. Não é verdade. Pelo menos não enquanto Nicolas Maduro conseguir contemporizar com os militares à esquerda, que podem dar, sim, um golpe preventivo, caso a decisão de Obama de considerar Caracas uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos resulte no isolamento da Venezuela.
Lá, o maior legado de Hugo Chávez foi ter politizado como nunca a população do país. Tendo vivido uma guerra cruenta de Independência, ao contrário de nosso arranjo à brasileira nas margens do Ipiranga, os venezuelanos tem uma relação com a História muito diferente da dos brasileiros. O problema, lá, é que a elite militar que sobreviveu à guerra de extermínio dos espanhóis estabeleceu uma tutela sobre o poder civil, que ainda se manifesta nos dias de hoje.
Nosso problema, pelo menos o mais evidente, é que a famosa “modernização conservadora” nos impõe um pacto muito parecido com o de Punto Fijo, através do qual as elites venezuelanas fizeram um arranjo pelo qual se sucederiam no poder. Tal pacto, lá como aqui, é incompatível com a democracia. Lá, foi detonado por Hugo Chávez. Aqui, persiste, agora em crise profunda.
Se o PT não mexeu nos fundamentos dele, por outro lado ameaça ganhar outra eleição em 2018, impondo aos tucanos uma secura de 20 anos!
Em junho de 2013, a explosão difusa nas ruas chegou a ameaçar o nosso pacto. O analfabetismo político ficou explícito na incapacidade dos atores daquele movimento de tirar um saldo das manifestações de rua. A reação conservadora não tardou, na forma da criminalização dos protestos. Avança, com um Congresso mais conservador que o anterior, liderado por gente como Renan Calheiros e Eduardo Cunha.
Mas, a tensão continua no ar. A verdadeira elite, não a dos batedores de caçarola, parece dividida: “Ruim com Dilma, pior sem Dilma?” ou “Podemos dispensar a Dilma, fatiar a Petrobras e viver de rendas”.
Hoje, duas conhecidas — uma votou na Dilma e a outra em Aécio — falavam sobre seu desconsolo com a situação do Brasil. Reclamaram do preço do dólar, do possível desemprego, do petrolão e da inflação. Concordei com tudo. Acrescentei minhas próprias críticas ao aparente isolamento de Dilma, à sua inépcia política, ao discurso distante no Dia Internacional das Mulheres, ao ministério medíocre, às medidas econômicas que primeiro punem os trabalhadores.
Não disse, mas deveria ter dito, que se o Brasil tivesse uma Constituição como a da Venezuela, que prevê o recall, Dilma poderia ser submetida a um referendo na metade do mandato, cumpridas as exigências de assinaturas, etc. Chávez enfrentou um e venceu por 60% a 40%.
Ainda que tão desgostoso quanto elas com o quadro atual, propus um exercício.
“Ok, vamos derrubar a Dilma. Mas, o que virá em seguida? Temer? Cunha? Novas eleições? Intervenção militar? É possível consertar a economia com passes de mágica? Não seria melhor esperar por novas eleições, já que Dilma acaba de ser reeleita?”
Ambas me pareceram confusas depois de todas as minhas perguntas. É como se tivessem escolhido Dilma para desabafar, o que pode ser positivo do ponto-de-vista psicanalítico, mas não é recomendável quando estamos falando do futuro do Brasil.
Fiz as perguntas só para provocar. Fui embora intrigado: como pessoas inteligentes e bem informadas podem se deixar cegar por sua própria inconsequência política? Como é possível dar um passo de tal envergadura, como contribuir com o impeachment de um presidente, sem sequer avaliar as consequências que tal passo terá amanhã?
Tenho comigo que é o poder do ódio provocando uma epidemia de cegueira, equivalente àquela que o Saramago inventou.
Leia também:
Nenhum comentário:
Postar um comentário