quarta-feira, 27 de setembro de 2017
Cura gay: os “cristãos” contra Cristo
Por Fran Alavina, no site Outras Palavras:
O debate sobre a decisão judicial que dá margem legal para a estapafúrdia “cura gay” além de ter recebido as reações devidas nos últimos dias – reações que devem aumentar –, também dá lugar para que se possa ter uma visão mais complexa do que se esconde sobre esta lógica do absurdo.
Absurdidade que, por se manter na longa duração da história da repressão dos desejos dissidentes e da objetivação do corpo, acaba por se apresentar para muitos como normalidade na história da nossa cultura.
De fato, quando comparado com a história da sexualidade no Ocidente, este absurdo é a regra e não a exceção. Regras de uma suposta “normalidade”, datada desde quando o cristianismo como forma religiosa hegemônica e como tipo de consciência política dominante estabeleceu para nós a moralidade dos afetos tristes.
Tristes, pois afetos que se regem não pela liberdade do agir, mas pela conduta proibitiva; não pela completude, porém pela interdição. Trata-se de uma submissão do desejo àqueles que não gozando – no caso católico está parcela que em tese não possui o gozo sexual é o clero – podem prescrever as regras do gozo permitido.
Ora, o que é esta bizarrice da “cura gay” senão a velha proibição do prazer, a antiga interdição do gozo que o cristianismo na sua versão protestante, evangélica ou neopentecostal, herdou da versão católica?
A estratégia evangélica que agora obteve uma vitória temporária, porém expressiva, não possui nada de novo. Ela imita um projeto de poder sobre o corpo por meio da submissão às superstições teológicas de um saber determinado e legitimamente constituído.
Uma submissão do saber ao proselitismo da crença, em primeiro lugar, pois capaz de oferecer uma garantia segura para uma submissão dos corpos e dos desejos, já que discurso de poder mascarado de discurso de saber.
Em outras palavras, o debate sobre a “cura gay” é um dos dispositivos que nos permitem ver em sua inteireza a relação entre saber e poder,síntese de um inescrupuloso desejo de dominação, desejo que se dá a ver em um momento em que não basta apenas a servidão voluntária, ou seja, quando os mecanismos hodiernos da corrida proselitista estão esgarçados.
Não é mera coincidência que agora, após os neopentecostais, evangélicos e católicos chegarem ao ápice de sua escalada midiática, recorra-se a um discurso que, por princípio, os prosélitos rechaçam: o discurso científico.
Não é pouca coisa que se tente usar de um determinado saber médico que não se dirige diretamente ao uso dos corpos, mas à subjetividade: a psicologia.
Ora, é justamente sobre este âmbito, o âmbito da psique,que se dá o campo de atuação das religiões. Um grande pensador disse uma vez que o poder mais forte é aquele que reina sobre os ânimos. É aí que reina o discurso religioso, capaz de propiciar a mais forte das coações: a coação interna.
O homem religioso é, antes de tudo, um ser de paixão. Seu mundo é tecido por camadas de afetividade que se desdobram para além das razões, ou dos absurdos aparentes. O que carece de sentido aos olhos do crente terá sentido único e reconciliador no sentimento.
Como descreve Pascal ao longo dos seus fragmentários Pensamentos, a razão da fé é demostrar que ela não possui razão alguma.
Isso não quer dizer que o sentimento religioso se confunda com o puro irracionalismo, ou que seja uma esfera carente de sentido, mas que por sua própria constituição será sempre mais um discurso de paixão do que de razão – potanto um discurso auto-referente que fará do outro, daquilo que lhe é estranho e diferente, um elemento de incômodo que quando não pode ser apagado sem deixar resquícios, deve ser modificado para ser subsumido.
Ou seja, deve deixar de ser o que é, o diferente, para se tornar o igual. Portanto, da alteridade à repetição.
Absurdidade que, por se manter na longa duração da história da repressão dos desejos dissidentes e da objetivação do corpo, acaba por se apresentar para muitos como normalidade na história da nossa cultura.
De fato, quando comparado com a história da sexualidade no Ocidente, este absurdo é a regra e não a exceção. Regras de uma suposta “normalidade”, datada desde quando o cristianismo como forma religiosa hegemônica e como tipo de consciência política dominante estabeleceu para nós a moralidade dos afetos tristes.
Tristes, pois afetos que se regem não pela liberdade do agir, mas pela conduta proibitiva; não pela completude, porém pela interdição. Trata-se de uma submissão do desejo àqueles que não gozando – no caso católico está parcela que em tese não possui o gozo sexual é o clero – podem prescrever as regras do gozo permitido.
Ora, o que é esta bizarrice da “cura gay” senão a velha proibição do prazer, a antiga interdição do gozo que o cristianismo na sua versão protestante, evangélica ou neopentecostal, herdou da versão católica?
A estratégia evangélica que agora obteve uma vitória temporária, porém expressiva, não possui nada de novo. Ela imita um projeto de poder sobre o corpo por meio da submissão às superstições teológicas de um saber determinado e legitimamente constituído.
Uma submissão do saber ao proselitismo da crença, em primeiro lugar, pois capaz de oferecer uma garantia segura para uma submissão dos corpos e dos desejos, já que discurso de poder mascarado de discurso de saber.
Em outras palavras, o debate sobre a “cura gay” é um dos dispositivos que nos permitem ver em sua inteireza a relação entre saber e poder,síntese de um inescrupuloso desejo de dominação, desejo que se dá a ver em um momento em que não basta apenas a servidão voluntária, ou seja, quando os mecanismos hodiernos da corrida proselitista estão esgarçados.
Não é mera coincidência que agora, após os neopentecostais, evangélicos e católicos chegarem ao ápice de sua escalada midiática, recorra-se a um discurso que, por princípio, os prosélitos rechaçam: o discurso científico.
Não é pouca coisa que se tente usar de um determinado saber médico que não se dirige diretamente ao uso dos corpos, mas à subjetividade: a psicologia.
Ora, é justamente sobre este âmbito, o âmbito da psique,que se dá o campo de atuação das religiões. Um grande pensador disse uma vez que o poder mais forte é aquele que reina sobre os ânimos. É aí que reina o discurso religioso, capaz de propiciar a mais forte das coações: a coação interna.
O homem religioso é, antes de tudo, um ser de paixão. Seu mundo é tecido por camadas de afetividade que se desdobram para além das razões, ou dos absurdos aparentes. O que carece de sentido aos olhos do crente terá sentido único e reconciliador no sentimento.
Como descreve Pascal ao longo dos seus fragmentários Pensamentos, a razão da fé é demostrar que ela não possui razão alguma.
Isso não quer dizer que o sentimento religioso se confunda com o puro irracionalismo, ou que seja uma esfera carente de sentido, mas que por sua própria constituição será sempre mais um discurso de paixão do que de razão – potanto um discurso auto-referente que fará do outro, daquilo que lhe é estranho e diferente, um elemento de incômodo que quando não pode ser apagado sem deixar resquícios, deve ser modificado para ser subsumido.
Ou seja, deve deixar de ser o que é, o diferente, para se tornar o igual. Portanto, da alteridade à repetição.
Toda paixão forte, como aquela da religião, quer fazer de si a regra e a régua do mundo. É próprio da passionalidade forte acomodar-se apenas àquilo que lhe é semelhante. As divisões em inúmeras seitas e denominações que pululam na história do cristianismo é prova viva do expurgo do diferente.
É próprio deste tipo de consciência religiosa, em que a paixão encontra seus níveis mais altos, expurgar o dessemelhante.
O que é a história dos primeiros concílios senão a longa batalha do expurgo do diferente, que uma vez expulso completa a figura do herege, daquele que não possuindo mais nenhum vínculo com sua antiga comunidade pode ser objeto do mais poderoso dos ódios, segundo Espinosa, o ódio teológico?
Ao longo dos séculos, o outro para o cristão tornou-se em primeiro lugar aquele que não pertence mais ao grupo primitivo, mesmo que este outro ainda se diga cristão.
O modo como o cristianismo – em suas mais diversas versões – lida com a homossexualidade é um espelho de como ele se fossilizou no trato com a diferença.
É por isso que a homossexualidade traz à tona o ódio, quase insano, dos prosélitos, pois é a mais absoluta diferença em relação a uma moralidade dita “normal” e “natural”.
É a liberdade de um corpo e a autodeterminação de um prazer constituinte que não apenas rompe com o círculo do gozo prescrito, mas reinventa os lugares e os objetos do gozo.
Não por outro motivo, o prosélito sempre verá menor culpa no homem adúltero do que no homem gay. Um desobedece certo aspecto da moralidade aceita, mas não se coloca fora dela; já o outro, está completamente fora dos seus limites.
Há aqui, neste dispositivo do afeto, uma sutileza que não deve ser desconsiderada. O gay só se faz outro porque estabelece uma relação incomum entre iguais.
Nossa alteridade é a expressão dos iguais, e não uma alteridade da exclusão, ou do expurgo do diferente.
Sutileza irônica esta, posto que foi justamente por também estabelecer uma relação incomum entre iguais, por se fazer um com os seus, que o galileu das periferias do império romano tornou-se o outro, o absolutamente outro, tanto que foi remetido à execração pública e à morte ignominiosa. Era tão outro que não poderia mais ser subsumido e aceito no interior de sua antiga comunidade.
A transexual que corajosamente se apresentou publicamente crucificada, há alguns anos, na Parada Gay de S.Paulo, apenas nos deu simbolicamente esta semelhança entre o dispositivo afetivo de gays e lésbicas e o dispositivo afetivo do cristianismo das origens.
Uma vez que a relação incomum entre os iguais torna-se o pecado sem perdão, é preciso – já que não é mais possível realizar fogueiras públicas – retirar a homossexualidade da esfera do pecado, isto é, do simples discurso religioso e realocá-lo no discurso médico, portanto transformando em uma patologia que se submete a certa clínica.
Assim, o pecado sem perdão transfigura-se em “doença curável”, enfermidade não apenas da alma, mas do desejo que pode ser passível de tratamento. Já que não se pode apagar fisicamente o diferente, se distorce àquilo que é sua maior determinação, o desejo, para apagar a diferença e subsumir o “anormal” na “normalidade”.
Por isso, o uso de um saber que, além de ser capaz de emprestar rigor de ciência às meras opiniões de uma moralidade imposta, também é um saber médico, um conhecimento clínico.
Um saber capaz de se prestar ao papel, quando manejado na mão torta dos prosélitos, de realizar a medicina da culpa. Aí, se dá a passagem do pecado à enfermidade, ou seja, do discurso meramente religioso para o discurso médico.
É um instrumento de poder refinado que gente como Silas Malafaia declare-se psicólogo, que os proponentes da “cura gay” sejam prosélitos dos setores mais alinhados com o atraso, mas que sejam tratados, segundo a determinação judicial, como “pesquisadores”.
O uso interessado de um certo saber médico para a confirmação das posições teológicas é o reconhecimento dos limites da crença, porém expõe também que o desejo de dominação de um tipo de consciência religiosa tende a não encontrar limites – é o mesmo tipo de consciência religiosa que distorce os sentidos do Estado laico, que confunde propositalmente violência simbólica com liberdade de expressão.
Este desejo de dominação, para não se apresentar tão claramente – pois sabe que não pode mostrar à luz do dia suas entranhas protofascistas –, subverte saberes e agora encontra amparo no último poder que faltava à sua conquista: o Judiciário, o protagonista do momento.
É um momento difícil, no qual o dispositivo afetivo de desejo entre os iguais é confrontado violentamente por outro desejo, o desejo de dominação e submissão.
Assim, para além de absurda e quão caricata possa ser a questão, está em jogo um problema político dos mais determinantes, pois como dizia certo odiado pensador, é própria do corpo político saudável o desejo de não se deixar dominar.
Ora, quando um dos elementos desse corpo político deseja dominar, vê-se o quanto está doente este corpo. Portanto, vale agora, mais uma vez, o alerta de Pasolini: “Estamos Todos Em Perigo”!
-do blogdomiro
É próprio deste tipo de consciência religiosa, em que a paixão encontra seus níveis mais altos, expurgar o dessemelhante.
O que é a história dos primeiros concílios senão a longa batalha do expurgo do diferente, que uma vez expulso completa a figura do herege, daquele que não possuindo mais nenhum vínculo com sua antiga comunidade pode ser objeto do mais poderoso dos ódios, segundo Espinosa, o ódio teológico?
Ao longo dos séculos, o outro para o cristão tornou-se em primeiro lugar aquele que não pertence mais ao grupo primitivo, mesmo que este outro ainda se diga cristão.
O modo como o cristianismo – em suas mais diversas versões – lida com a homossexualidade é um espelho de como ele se fossilizou no trato com a diferença.
É por isso que a homossexualidade traz à tona o ódio, quase insano, dos prosélitos, pois é a mais absoluta diferença em relação a uma moralidade dita “normal” e “natural”.
É a liberdade de um corpo e a autodeterminação de um prazer constituinte que não apenas rompe com o círculo do gozo prescrito, mas reinventa os lugares e os objetos do gozo.
Não por outro motivo, o prosélito sempre verá menor culpa no homem adúltero do que no homem gay. Um desobedece certo aspecto da moralidade aceita, mas não se coloca fora dela; já o outro, está completamente fora dos seus limites.
Há aqui, neste dispositivo do afeto, uma sutileza que não deve ser desconsiderada. O gay só se faz outro porque estabelece uma relação incomum entre iguais.
Nossa alteridade é a expressão dos iguais, e não uma alteridade da exclusão, ou do expurgo do diferente.
Sutileza irônica esta, posto que foi justamente por também estabelecer uma relação incomum entre iguais, por se fazer um com os seus, que o galileu das periferias do império romano tornou-se o outro, o absolutamente outro, tanto que foi remetido à execração pública e à morte ignominiosa. Era tão outro que não poderia mais ser subsumido e aceito no interior de sua antiga comunidade.
A transexual que corajosamente se apresentou publicamente crucificada, há alguns anos, na Parada Gay de S.Paulo, apenas nos deu simbolicamente esta semelhança entre o dispositivo afetivo de gays e lésbicas e o dispositivo afetivo do cristianismo das origens.
Uma vez que a relação incomum entre os iguais torna-se o pecado sem perdão, é preciso – já que não é mais possível realizar fogueiras públicas – retirar a homossexualidade da esfera do pecado, isto é, do simples discurso religioso e realocá-lo no discurso médico, portanto transformando em uma patologia que se submete a certa clínica.
Assim, o pecado sem perdão transfigura-se em “doença curável”, enfermidade não apenas da alma, mas do desejo que pode ser passível de tratamento. Já que não se pode apagar fisicamente o diferente, se distorce àquilo que é sua maior determinação, o desejo, para apagar a diferença e subsumir o “anormal” na “normalidade”.
Por isso, o uso de um saber que, além de ser capaz de emprestar rigor de ciência às meras opiniões de uma moralidade imposta, também é um saber médico, um conhecimento clínico.
Um saber capaz de se prestar ao papel, quando manejado na mão torta dos prosélitos, de realizar a medicina da culpa. Aí, se dá a passagem do pecado à enfermidade, ou seja, do discurso meramente religioso para o discurso médico.
É um instrumento de poder refinado que gente como Silas Malafaia declare-se psicólogo, que os proponentes da “cura gay” sejam prosélitos dos setores mais alinhados com o atraso, mas que sejam tratados, segundo a determinação judicial, como “pesquisadores”.
O uso interessado de um certo saber médico para a confirmação das posições teológicas é o reconhecimento dos limites da crença, porém expõe também que o desejo de dominação de um tipo de consciência religiosa tende a não encontrar limites – é o mesmo tipo de consciência religiosa que distorce os sentidos do Estado laico, que confunde propositalmente violência simbólica com liberdade de expressão.
Este desejo de dominação, para não se apresentar tão claramente – pois sabe que não pode mostrar à luz do dia suas entranhas protofascistas –, subverte saberes e agora encontra amparo no último poder que faltava à sua conquista: o Judiciário, o protagonista do momento.
É um momento difícil, no qual o dispositivo afetivo de desejo entre os iguais é confrontado violentamente por outro desejo, o desejo de dominação e submissão.
Assim, para além de absurda e quão caricata possa ser a questão, está em jogo um problema político dos mais determinantes, pois como dizia certo odiado pensador, é própria do corpo político saudável o desejo de não se deixar dominar.
Ora, quando um dos elementos desse corpo político deseja dominar, vê-se o quanto está doente este corpo. Portanto, vale agora, mais uma vez, o alerta de Pasolini: “Estamos Todos Em Perigo”!
-do blogdomiro
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