Prestem atenção a esta fábula de Tolstoi:
Um mujique (camponês) entrou com uma ação contra o carneiro. A raposa ocupava naquele momento as funções de juíza.
Ela fez comparecer na sua presença o mujique e o carneiro. Explicou o caso.
— Fale, do que reclamas, oh Mujique?
— Veja isso, disse o mujique, na outra manhã eu percebi que me faltavam duas galinhas; eu não encontrei delas nada além dos ovos e das penas, e durante a noite, o carneiro era o único no quintal.
A raposa, então, interroga o carneiro. O acusado, tremendo rogou graça e proteção à juíza.
— Esta noite, disse ele, eu me encontrava, é verdade, sozinho no quintal, mas eu não saberia responder a respeito das galinhas; elas me são, aliás, inúteis, pois eu não como carne. Chame todos os vizinhos, ajuntou ele, e eles dirão que jamais me tiveram por um ladrão.
A raposa questionou ainda o mujique e o carneiro longamente sobre o assunto, e depois ela sentenciou:
— Toda noite, o carneiro ficou com as galinhas, e como as galinhas são muito apetitosas, a ocasião era favorável, eu julgo, segundo a minha consciência, que o carneiro não pôde resistir à tentação. Por consequência, eu ordeno que se execute o carneiro e que se dê a carne ao tribunal e, a pele, ao mujique.
Esta fábula de Tolstói me faz lembrar muitas coisas: de alegações finais explanacionistas e sherloquianas, de sentenças baseadas em convicções pessoais (como ocorre na fábula de Tolstoi), das negativas de colocar em ata o que ocorreu na audiência, de não se conceder a palavra ao advogado pela ordem, das palestras em que agentes públicos com vitaliciedade insuflam plateias ávidas por uma “hermenêutica de resultados-tipo-os-fins-justificam-os-meios”... até o tratamento que vem sendo dispensado aos advogados (mormente os criminais), cuja função parece estar sendo confundida com os réus defendidos. Já falarei disso.
A fábula de Tolstoi que trata da raposa juíza mostra bem o imaginário autoritário que cada vez mais se espraia no entremeio das instituições. Embargar decisões virou ofensa, quase uma obstrução da Justiça. O “decido e depois fundamento” virou regra. Mais ainda, agora o exotismo está chegando à justiça, a partir de coisas como baiesianismo, deducionismos tipo explanacionista e quejandos. Afinal, se o carneiro passou a noite perto das galinhas e estas sumiram, só-pode-ter-sido-ele quem comeu as galinhas: eis aí, esculpida em carrara, a metáfora do cotidiano das práticas jurídicas. Aliás, é o que se faz quando se inverte o ônus da prova, dizendo: o réu não conseguiu demonstrar que não foi ele quem... Como assim? Alteraram o CPP?
Qual é a diferença do que fez a raposa na fábula de Tolstoi com o que se faz por aí, alegoricamente falando? Pior: já não há urbanidade no trato. Ir ao fórum passou a ser um exercício de humilhação para milhares de advogados. Escrevi uma coluna sobre isso, que teve mais de 80 mil leitores (
leia aqui).
Nesse sentido, não poderia deixar de noticiar o que segue. Recebi um
print de uma decisão em embargos (
ver aqui) que mostra um profundo desrespeito com a Defensoria Pública e a advocacia. O agir da Defensoria, por ter interposto embargos, foi comparado à advocacia de porta de cadeia (sic). Não vou nem colocar todo os dizeres da ementa do acórdão (sim, está na ementa para que ninguém deixe de ler) e tampouco declinar o nome do relator (observação: a decisão consta como unânime). Também não vem ao caso o tribunal em que ocorreu o episódio. Sim, isso não é de 1917; é de 2017.
Sintomas de demonização da advocacia, incluindo nesse rol a Defensoria Pública. Basta ler o manifesto contra a “bandidolatria” (
ler aqui) e perceber o que pensam dos advogados os signatários do tal manifesto. Cumprir o dever é visto como proto-obstrução da Justiça.
Mas o problema não é (só) o fato. É o simbólico. Quantos embargos são aniquilados diariamente? Este o foi com ofensa. Mas tem os que são fulminados sem ofensa pessoal, mas com ofensa à inteligência do advogado. Kill al the lawyers (Henry VI, Schakespeare). Pode ser o próximo passo. Vai chegar o momento em que, para chegar ao prédio da Justiça, o causídico terá de ultrapassar um fosso de jacarés, encarar um meirinho mau humorado, escapar de um sniper... para depois... bem, o resto cada um complementa. Há milhares de histórias que os advogados podem contar. Ou estou exagerando?
E é nesse exato contexto que hoje homenageio o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Teve sua conduta ética e sua honra tisnada pelo procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Primeiro disse que Kakay tinha limites éticos flexíveis, para depois mandá-lo tomar vergonha na cara. Bem assim. Em rede social.
Um procurador da República comportando-se desse modo. Que feio. Tudo porque Kakay fez um comentário sobre matéria da
Folha de S.Paulo de domingo (27.8.2017), que envolvia uma denúncia feita por um advogado acerca de um episódio da operação "lava jato" (
matéria retomada pelo própria
ConJur). O procurador, alguém que deveria guardar prudência, ética e recato, pisou na bola com Kakay. Como o personagem Ancelmo, da
Novela de Um Curioso Impertinente (que faz parte de Dom Quixote), o procurador não se contenta com o que faz e com o que tem: como um pré-moderno, quer encontrar a essência das coisas, como se a ele tivesse sido dada uma missão para buscar a essência da moralidade e quejandos. Cervantes era um moderno e sabia muito da alma humana. Enfim, melhor lerem a Novela.
Penso, de minha parte — e espero estar redondamente equivocado — que tudo isso faz parte de uma tempestade perfeita: primeiro se judicializa a política; depois se politiza o Direito; acrescente-se uma boa pitada de demonização da política, coloque-se a culpa da impunidade nos advogados, berre-se bastante nos meios de comunicação, conclamando a não mais se precisar provar crimes, bastando convicção e fé... e faltará pouco... Na verdade, basta(rá) só um empurrão. Tristes trópicos.
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