Dijaci David de Oliveira*
Nunca me esqueço de uma experiência que vivenciei em uma viagem no trajeto entre a Rodoviária do Plano Piloto (DF) e o campus da Universidade de Brasília (UnB). Era um dia agradável, a chegada das primeiras chuvas tinha alterado o cenário da cidade. Quem vive na região do cerrado brasileiro sabe que o prenúncio das chuvas ocasiona o florescimento dos pés de ipês. Qualquer um fica admirado com a beleza de um ipê carregado de flores. Nas vias públicas de Brasília prevalecem os ipês de flores amarelas, brancas, roxas e o ipê rosa.
Entrei no ônibus que me levaria à Universidade e procurei um lugar à janela. Já nos primeiros pontos muitas pessoas foram descendo. Um pouco mais adiante, ao longo do trajeto, sentou-se ao meu lado um homem corpulento com aproximadamente 40 anos. Não demorou muito e puxou conversa. No primeiro momento achei estranho. Anos e anos fazendo aquele trajeto, era raro duas pessoas desconhecidas conversarem. Mas também achei interessante, afinal seria uma oportunidade para quebrar com a cultura da indiferença tão marcante nas relações em espaços públicos.
O sujeito estava bem-disposto ao comentar a respeito da beleza da paisagem. As plantas, as flores, os pássaros. Tudo para ele era motivo de admiração. Conforme comentou, a harmonia entre as cores das flores e as cores dos pássaros era a evidência da supremacia da natureza. E, para fechar seu raciocínio, afirmou que ela era simplesmente “bela e maravilhosa”.
Vendo a beleza dos ipês floridos, tinha tendência em concordar com ele. Claro, falávamos de natureza, mas o que estávamos observando era uma natureza organizada na forma de pequenas áreas verdes do desenho paisagístico de Brasília. O florescimento das árvores que se espalhavam ao longo do trajeto transformava a cidade em um imenso jardim. A conversa transcorria tranquila e sem sobressaltos. Contudo, já próximo à Universidade o meu vizinho de banco fez um comentário inesperado. Na bucha soltou a seguinte afirmação:
U“- Agora não entendo que com tanta beleza ainda podem existir pessoas que não acreditam em Deus. Isso é algo impensável. Para ser sincero se Deus me desse autorização eu colocava todas as pessoas que não acreditam nele em um paredão e metralhava. E ainda faria isso rindo!”
Naquele exato instante o diálogo havia morrido. Não tinha mais sentido, nem possibilidades de continuidade. Fiquei alguns segundos em estado de choque. O que antes se parecia com um simpático sujeito capaz de romper com as barreiras da indiferença era, enfim, um intolerante sanguinário. O sujeito que há pouco apreciava a harmonia dos pássaros e das flores era o mesmo que gostaria de ver o sangue de outras pessoas se espalhando pelo chão.
Aquele diálogo foi uma aula brutal. Não gostaria de tê-la vivenciado nem de recomendá-la a ninguém. Todavia, percebi com mais clareza o que pessoas comuns, transformadas em fanáticos, eram capazes de fazer. Ninguém diria que aquele sujeito não era um “cidadão de bem”. Era homem, era branco e escolarizado. Mas era também um fanático intolerante que afirmou que “mataria rindo” quaisquer outras pessoas simplesmente porque não acreditavam em Deus.
Não me sentia nem um pouco confortável em ouvir as aberrações daquele sujeito corpulento. Mas também me assustava sua possível reação a qualquer questionamento meu. Assim que o ônibus chegou ao meu destino, levantei-me rapidamente. O sujeito se afastou para que passasse. Não troquei palavras ou gestos de despedida. Senti alívio em me afastar de uma pessoa que sentiria prazer em matar outras. A partir do momento em que externou seu ódio, tive uma nítida sensação de que corria risco. Não estávamos no universo do argumento. Se fosse o caso eu até poderia defender que outras pessoas têm direito a acreditar em outros deuses, terem outras religiões ou mesmo nenhuma crença. Mas o discurso de ódio não permite diálogo ou argumentos. Quem não compartilha das ideias do fanático, corre risco de vida.
Desci e pensei. Existem muitos outros tipos de fanatismos. O religioso é um deles, mas sabemos que existe a intolerância política, mas também o fanatismo esportivo (que produz a violência no futebol, por exemplo), a xenofobia, a homofobia, a misoginia, além de muitos outros. Todos, evidentemente, representam uma ameaça constante para a sociedade.
Os fanáticos estão sempre alimentando o ódio. Podem ser um grupo minoritário, mas também podem ser os representantes da maioria. No caso que presenciei no ônibus, o sujeito era um cristão. Os cristãos representam a esmagadora maioria na sociedade brasileira, no entanto o sujeito se sentia “ameaçado” pela presença de ateus. É o que o antropólogo indiano Appadurai chama de “medo do pequeno número”. As maiorias escolhem grupos menores e os transformam em ameaças. Ou seja, elegem um bode expiatório para justificar os seus medos e fracassos, mas sobretudo, para não enfrentar os reais problemas que explicam as crises que atravessam.
A filósofa americana Nancy Fraser afirma que os homossexuais representam um grupo limite. Isto é, de todos os agrupamentos socialmente segregados, eles estão entre os que a sociedade apresenta mais dificuldade em reconhecer. Logo, serão os mais violentados e desrespeitados. Isto é fato. Em muitos lugares do mundo, e mesmo em várias partes do Brasil, espancar e matar um homossexual não é visto como um crime, mas chega a ser uma demonstração de masculinidade e de defesa dos valores “naturais”. Foi o que presenciamos recentemente com o massacre de gays em uma boate na cidade de Orlando, estado da Flórida, nos Estados Unidos.
Os fanáticos, nas suas mais variadas expressões, não estão longe de nós, mas podem estar ao nosso lado. Muitos deles gostam de esbravejar que são “cidadãos de bem” e, no entanto, querem proibir o debate sobre a homofobia nas escolas, querem proibir o direito ao uso do nome social pelas pessoas trans, estão entre aqueles que atacam cotidianamente os direitos humanos e, seguramente, então entre os partidários da “escola sem partido”.
O fundamentalista não está longe de nós. Não é o mulçumano fanático, mas qualquer religioso que acredite que sua crença está acima de qualquer outra e que todos que não compartilhem de sua crença devam pagar com a vida. O fanatismo está no dia a dia dos chamados “cidadãos de bem” que incitam a morte de índios, que assassinam sem-terras, que exterminam moradores de rua, que matam jovens negros, homossexuais, entre tantos outros segmentos socialmente segregados.
O fanático não é apenas o sujeito encapuzado que porta um fuzil ou uma bomba. O fanático pode ser um sujeito pacato, um pai de família amoroso. Ou seja, é um cidadão comum como o passageiro de ônibus havia afirmado que “gostaria que Deus lhe desse autorização para matar” todos que não acreditam em Deus.
O fanático quer a autorização de Deus para matar, mas se Deus não lhe der, não tenho dúvida, ele se contentará em receber essa “autorização” de seu líder político, ou de sua apresentadora favorita de telejornal ou de um artista global. Parafraseando Marx, o espectro do totalitarismo ronda a sociedade brasileira. A ideologia do cidadão de bem que nega os direitos das minorias pode ser uma terrível ameaça para todos e todas.
* Dijaci David de Oliveira é doutor em Sociologia e professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Nenhum comentário:
Postar um comentário