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quarta-feira, 1 de março de 2017
Lira Neto: "O samba já sofreu impacto do politicamente correto antes"
1/mar/2017
Para o escritor Lira Neto, que está lançando o primeiro de três volumes de Uma História do Samba, "esse discurso do politicamente correto, de tentar higienizar e limpar o samba é muito antigo, mas agora é reforçado pelas redes sociais".
Néli Pereira/BBC Brasil
A discussão sobre a misoginia e o preconceito de algumas letras de marchinhas ganhou fôlego neste Carnaval, com blocos anunciando que descartaram de seu repertório antigos clássicos carnavalescos como Olha a Cabeleira do Zezé, Maria Sapatão, Índio Quer Apito e o Teu Cabelo não Nega.
Mas o debate não é novo na história da festa popular, nem da trajetória do samba no Brasil.
Para o escritor Lira Neto, que está lançando o primeiro de três volumes de Uma História do Samba, "esse discurso do politicamente correto, de tentar higienizar e limpar o samba é muito antigo, mas agora é reforçado pelas redes sociais".
Em entrevista à BBC Brasil, o autor da trilogia sobre a vida de Getúlio Vargas explica como o Estado Novo quis se apropriar do samba para tentar forjar uma identidade nacional brasileira.
Segundo Lira, "o samba é um elemento interessante para a interpretação do Brasil, com todas as interferências que ele sofreu, de algo que foi cooptado pelo mercado, apropriado politicamente, e de como ele conseguiu, no meio de tudo isso, encontrar mecanismos de continuar existindo, pujante, e de nos emocionar".
BBC Brasil - O seu livro Uma História do Samba: As Origens começa com a tentativa de retomada dos cordões carnavalescos por Villa-Lobos, mas de uma forma mais comportada. Hoje se discute muito o politicamente correto das marchinhas como Olha a Cabeleira do Zezé, Maria Sapatão - essa discussão é inédita na história do samba?
Lira Neto - Não é a primeira vez. O samba já passou por esse processo, já teve o impacto disso antes. Estava lendo uma matéria da Revista da Semana daquela época, na qual o cronista escreve que "o samba é algo muito interessante, mas precisa deixar de ser bárbaro, precisa ser mais civilizado para que a gente possa transformá-lo em algo mais palatável".
Ora, esse discurso do "politicamente correto" é muito antigo, de tentar higienizar, limpar o samba. Se você pega a produção do Sinhô, um dos pioneiros do samba, ou do Ismael Silva - era uma produção machista e misógina até, pois falava da mulher que apanhava, do malandro que não trocava nada pela orgia, ou seja, tudo isso tinha um contingente muito machista.
Eu estava dando uma aula em Vermont, nos Estados Unidos, no meio do ano passado, sobre história da música brasileira, e mostrei as letras aos alunos. Eles ficaram escandalizados, acharam muito machistas. E eu tive que mostrar a eles que aquilo era fruto de determinadas contradições daquele tempo e que precisamos ouvir as músicas no seu devido contexto.
Você acha que Mário Lago era machista por causa da Amélia (de Ai Que Saudades da Amélia), que Ataulfo Alves era machista? A música era profundamente machista para os nossos valores de hoje.
Se você levar a questão das marchinhas ao extremo, o que vai acontecer? Você vai deixar de ouvir Ismael Silva, Sinhô, Mário Lago, de ler Monteiro Lobato? Daqui a pouco você cerceou e policiou de forma absurda.
Meu amigo Luis Antonio Silva falou o seguinte numa entrevista recente: "Não se pode proibir ninguém de cantar nada. Cada um canta o que quiser, e cada um não canta o que não quiser". Quer cantar essas marchinhas no bloco, cante. Não quer, não cante. É importante compreender que elas foram marchinhas feitas num determinado momento histórico e numa determinada situação.
Essa discussão é eterna, mas agora ela se dá com uma estridência maior porque é compartilhada e reforçada nas redes sociais, não somente nas mesas de boteco, ou entre a família.
Você abre o livro com um samba de Caetano Veloso que diz que "o samba é pai do prazer, o samba é filho da dor". Ali parecem estar a dualidade e a tensão do recorte da história do samba que você optou por contar...O livro é sobre essa trajetória, de conflitos do samba?
Exatamente. Tentar entender o samba - e a própria cultura - dentro dessa complexidade. Ou seja, sem tentar fazer uma análise chapada, binária...ou tentando, por um lado, mostrar o samba como um grande símbolo de autenticidade, de resistência, ou, por outro, o samba como um gênero cooptado pelas contingências políticas e pelas circunstâncias do mercado - mostrar que é uma coisa e a outra; mostrar que ele é festa, mas também é fresta. Algo que foi se reelaborando a partir dessas influências que incidiram sobre ele.
A frase do Caetano fala disso: "filho da dor, pai do prazer" - dá essa conotação dialética, para evitar a armadilha de tomar uma posição muito marcada e esquecer que tudo na vida é complexo, e não é simples na análise. Esse é um tema que foi tratado muitas vezes, mas sempre pendendo para um destes lados.
Em tudo o que eu tento trabalhar, exijo essa dose de complexidade, foi assim com Getúlio. Eu procuro ver as coisas na sua fascinante ambiguidade e contradição.
Mas o samba sofreu algum "trauma" com essas apropriações - culturais, políticas, mercadológicas - ao longo da história?
A palavra trauma pode ter muitos significados - ele foi impactado e também impactou. Eu evito utilizar esse conceito de pureza, de autenticidade, de uma coisa genuína, porque a própria gênese do samba é mesclada, permeada pela mistura, por vários vetores e por várias camadas de influência.
Quando você fala em samba autêntico, você trabalha com uma abstração, porque isso não existe. Eu coloco no prólogo uma cena do Heitor Villa-Lobos tentando recriar os velhos cordões do fim do século 19 e começo do 20 como uma espécie de chave, de mote do que eu vou tratar.
Quando o Villa-Lobos tenta recuperar o autêntico, ele faz uma releitura. E quando ele limpa e higieniza o suposto autêntico para que ele possa ser adequado para aquele momento do Estado Novo, ele está recorrendo à folclorização do que ele pretendia autêntico.
O que é o folclórico? O folclore é a morte da cultura popular, ou pelo menos da potência dessa cultura.
Quase uma uniformização?
Uma estilização - você despe, tira da cultura popular o que ela tem de potencial criativo, você estandardiza, cria um estereótipo. Outra coisa que acho fascinante é perceber que, ao longo da história do samba, você vai ter uma série de releituras desse processo.
Por exemplo: quando surgem os primeiros desfiles de escolas de samba, lá no começo dos anos 30 - que é o final do livro - essa primeira geração do Hilário, do Donga, do João da Baiana, vai dizer: "Essas escolas, isso não é samba, samba é o que a gente fazia lá nos terreiros da pequena África da Praça 11".
Bom, aí surge um novo paradigma, instituído pela turma do Estácio e que vai ser adotado pelas escolas de samba na sua gênese dos anos 30. Aí, nos anos 50, o Ismael Silva, que foi um dos indutores desse processo nos anos 30, vai dizer: "Não. O que está se fazendo aqui nos anos 50 não é mais samba - samba é o que a gente fazia nos anos 30".
E aí você vai ter isso como uma constante. Depois, nos anos 70 e 80 você vai ter gente que vai dizer que samba era da década de 50.
Eu fujo desse conceito de autenticidade para mostrar que o samba sofreu esse duplo impacto - de um lado, de uma apropriação política que vai se dar na era Vargas, no Estado Novo, o samba vai ser apropriado politicamente como um dos símbolos do nacionalismo. E do outro lado, o outro impacto da então nascente indústria do entretenimento, o samba vai se despir das suas características iniciais para atender às circunstâncias do mercado fonográfico, do rádio, do cinema, o samba passa por um outro processo de
O samba ganhou ou perdeu com isso? As duas coisas. Ele se transformou, precisou se reinventar. Eu não caio na armadilha de falar "o samba não é mais o samba". É! Só que com outros processos, com novas circunstâncias e com um novo contexto.
O tema apropriação cultural voltou a ser discutido com o caso da menina branca que foi criticada por usar turbante. O samba sofreu algo parecido, pelo que você está dizendo. O que a história dele tem a nos ensinar ou que luz pode jogar sobre essa discussão?
Eu acho que - como toda a discussão que temos hoje no Brasil - ela peca pela polarização. Essa discussão sobre a apropriação cultural acaba resvalando num outro tipo de rotulação: para você dizer se é progressista ou reacionário, racista ou um "branco legal", e coisa desse tipo.
A discussão está enviesada. A apropriação cultural sempre se deu no Brasil, é típica do que Oswald de Andrade chamava de antropofagia, mas tem questões que temos que ter cautela no debate.
Nessa questão do turbante em si, vejo o seguinte: se eu adoto - seja ele qual for - um símbolo, e minha utilização desse símbolo te ofende, eu preciso pensar sobre isso, por que isso o incomoda. Até que ponto isso não está embutido no meu preconceito.
A questão é muito complexa, não dá para assumir um dos pontos dessa disputa e não parecer mais uma vez que estamos trabalhando com a discussão entre "torcidas organizadas" - tudo ficou muito binário, polarizado - seja na política ou na cultura - passamos a ser seres binários - branco ou preto, tucano ou petralha, tudo muito polarizado, e estamos esquecendo da grande capacidade do diálogo, estamos muito estridentes. E aí quando você adota uma atitude de moderação já tem até rótulo: o "isentão", e apanha dos dois lados.
Esse é seu primeiro trabalho depois da trilogia da biografia do Getúlio Vargas. Qual foi o papel do Getúlio na "apropriação" do samba pelo Estado proposto pelo governo no Estado Novo?
O fato de esse livro vir logo depois da biografia do Getúlio não é uma coincidência. Algumas pessoas já me questionaram sobre o que tem a ver escrever sobre samba depois de Getúlio. Tem tudo a ver, estamos falando das mesmas coisas.
A era Vargas, a primeira metade do século 20 no Brasil, quando ele deixou sua marca, é justamente a era em que o samba está saindo de um estado inicial de marginalidade e passa a ser um gênero musical hegemônico. Isso está ligado à apropriação que o Estado Novo fez de forma consciente, higienizando o samba.
O que vai resultar num samba quase sinfônico, que é o samba do Ary Barroso, da Aquarela do Brasil. Aquele ufanismo, típico do Estado Novo, passa a entrar também no repertório do samba.
O Bonde São Januário, que exalta a vida do trabalhador - "o bonde leva mais um operário, sou eu quem vou trabalhar" -, também é exemplo dessa transição?
Exatamente. Olha como as duas histórias se ligam. Quando o Getúlio chega, pré-Estado Novo, logo depois da Revolução de 30, ele estabelece o culto ao trabalho, ao trabalhador, o início das leis trabalhistas. Era o momento em que ele adotava o discurso que até então era dos sindicatos - que é o discurso da conquista de direitos.
'O samba explica como se deu tudo isso. O mito de país cordial, pacífico - tudo isso o samba conta'
Ele se apropria desse discurso, neutraliza de maneira hábil aquele caldeirão social que estava prestes a explodir, com greves, com movimento sindical dominado pelos anarcossindicalistas, ele começa a introduzir os direitos trabalhistas e tira a pressão disso e passa ele mesmo a ser o arauto dessas bandeiras dos direitos dos trabalhadores.
O trabalho estava acima de tudo, ao contrário da figura do malandro do samba. E aí essa figura não é mais bem vista, passa a ser persona non grata por esse novo momento em que o Estado está buscando a exaltação ao trabalho.
E Getúlio vai além: passa a financiar as escolas de samba para que fizessem enredos nacionalistas, com referências aos heróis da pátria. E os sambistas começam a entrar nessa onda - até a famosa polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista, que vai ser explorada melhor no segundo volume da trilogia, que é a disputa do que viria a ser a figura do sambista: é o malandro ou o do bonde São Januário que vai trabalhar?
É aí que se deu o processo de apropriação política e cultural do samba, com todas as nuances. O samba é exemplo dessas apropriações. Isso deu possibilidade ao samba de sair dos guetos e conquistar o país. Ele se torna de fato hegemônico, e isso tem a ver com esse processo de domesticação.
Essa domesticação de manifestações culturais espontâneas pelo Estado, você vê alguma relação com a situação atual?
É muito interessante quando você ouve no discurso das autoridades que o carnaval tem que ter "um certo controle". A palavra "controle" pressupõe, até certo ponto, um aparato repressivo, o que é algo incompatível com a festa, que não tem controle. Você pode dar suporte para essa festa, preparar a cidade, ter um grupo de varredores, tentar minimizar os efeitos colaterais da festa, mas ela é sem regras.
Mas tem gente que se incomoda, que não gosta desse tipo de festa...
Esse pensamento segregacionista é o que temos no começo do século e do qual o samba foi vítima. E você nota, quando você vê as regras do carnaval ditadas pelo Pereira Passos, que dizia "você não pode pegar a serpentina que caiu no chão para jogar de novo na pessoa" - é sempre no sentido da higiene, do perfumado, mas completamente artificial. Tem gente que sabe fazer festa e gente que não sabe - gente que mantém o respeito à privacidade, o ouvido e à rua do outro - e gente que não sabe.
Aí a resposta mais fácil das autoridades: controla, proíbe, reprime. Como a Virada Cultural, que agora "não deve ser espalhada", mas cercada, num lugar específico, num desconhecimento absoluto do que é a gênese do evento, que tem o sentido de trabalhar e espalhar a cultura pela cidade. Então você segrega.
E uma analogia: quando você tem o corredor da Avenida 23 de Maio sendo pintado de cinza: "normatiza, transforma numa cor única, isso não é bem vindo para a paisagem urbana". Ou seja: é um senso de urbanismo tão arcaico, antigo e autoritário - e o mais inacreditável é que ele é anunciado como sendo algo moderno. Quando Getúlio Vargas chega ao poder, diz: "A política está morta, agora é a hora da eficiência técnica sobre a politica. Eu não sou um político, sou um gestor, um administrador".
Veja, esse é um discurso antigo, do início do século 20, e estamos vendo, em pleno 2017, pessoas repetindo esse discurso anacrônico. Porque há agora, como havia lá atrás, a sensação de que tudo que vem da política é sujo, a satanização da política.
E a figura do malandro, ela é romantizada? Ele tem vez no samba como é hoje em dia?
A figura do malandro é mais um desses estereótipos criados pelo entretenimento. Quando a gente pensa em malandro hoje em dia o que vem: a figura de terno branco, alinhado, sorriso no rosto, um sujeito que se dava bem com as mulheres. E a vida do malandro não era assim, pelo contrário: era cheia de sobressaltos, todos eles morriam muito cedo, ou de tuberculose, sífilis, facada ou tiro. Não havia nenhum glamour.
Muitos deles exploravam a mulher, muitos viviam como cafetões, trocavam navalhadas uns com os outros. Não são heróis, não tem heróis aí, o malando não é herói. O malandro romântico é uma criação do cinema, do audiovisual.
A vida do malandro era muito dura. Eu procuro sempre mostrar no livro que essas idealizações precisam ser relativizadas. Eu leio autores desse período que escrevem "São Ismael", ou "São Pixinguinha" - mas não tem santo nessa história, como também não tem só bandido como via a polícia. Eram santos e bandidos ao mesmo tempo, porque eram seres humanos, demasiadamente humanos, eram homens e suas circunstâncias. O livro olha para esse cenário além dos estereótipos, das idealizações - e além dos preconceitos.
E como Uma História do Samba pode nos ajudar a entender um pouco mais sobre nós mesmos, brasileiros, sobre nossa origem e formação?
É importante para entender o que é o Brasil, e o que nos tornamos, quem somos. Só conseguimos entender quem somos se olharmos para quem fomos e para como fomos sendo construídos, como se deu a construção do nosso povo. Acho que o samba é um instrumento riquíssimo para entender esse processo, essas transformações, essas influências, como a mestiçagem que condenava o Brasil ao eterno subdesenvolvimento, passa a ser exaltada como grande símbolo nacional.
O samba explica como se deu tudo isso. O mito de país cordial, pacífico - tudo isso o samba conta. O samba é um elemento interessante para a interpretação do Brasil, uma das possibilidades de interpretação do Brasil, com todas as interferências que ele sofreu, com tudo o que ele representa de reelaboração e transformação permanente, de algo que foi cooptado pelo mercado, apropriado politicamente, e de como ele conseguiu, no meio de tudo isso, encontrar mecanismos de continuar existindo, de continuar pujante - e emocionando a gente até hoje.
Você escreveu biografias de pessoas que tinham uma relação forte com o poder - de Padre Cícero a Getúlio Vargas, passando por Maysa e José de Alencar. Tem alguma história de poder na história do samba?
Totalmente. E de várias instâncias do poder - o poder da indústria do espetáculo, bastante presente nessa história, como ele agiu sobre o samba provocando modificações. O poder do mercado fonográfico. E tem o poder político, de um projeto político de nação constituído de forma consciente pelo Getúlio, e de como ele usou o samba e os sambistas, e essa proximidade - e o capítulo fundamental que vem por aí no segundo volume, sobre o papel da Rádio Nacional nesse processo, da imprensa, do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda.
Então é esse o processo, ou seja: era apropriar-se do que era considerado primitivo, autêntico nacional e tornar esse autêntico "limpinho e cheiroso".
Nessa história do samba, o poder - nas suas mais variadas dimensões e camadas - é o personagem central.
E qual seria hoje o poder mais atuante sobre o samba?
O grande poder do consumo, do mercado - desse poder que transforma tudo em mercadoria, inclusive as privacidades, que transforma a rebeldia em mercadoria, a alegria em mercadoria - "você tem a obrigação de estar feliz" - e transforma o prazer em mercadoria.
E isso sempre produz a neutralização do potencial criativo e insubmisso dessas coisas, dessas instâncias. Quando você transforma em mercadoria, você neutraliza a capacidade de enunciação insubmissa. O grande poder que estamos lidando hoje é esse poder absurdamente exponencial, em que as pessoas de aparente livre e espontânea vontade estão entregando aquilo que elas tem de mais precioso para virar mercadoria, suas privacidades.
Esse é um momento perigoso, em que todo mundo virou produto.
Fonte: BBC Brasil
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