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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O Espírito Santo de hoje é o Brasil de amanhã

André Forastieri 8/02/17 O Espírito Santo fez o dever de casa. O governador Paulo Hartung saneou o Estado. Equilibrou as contas públicas. É exemplo a ser seguido pelos outros Estados. No ano passado esse era o discurso dos jornalistas, dos economistas, dos experts. Silenciaram nos últimos dias. Silenciaram também 87 pessoas, assassinadas desde a última sexta-feira. A violência no Espírito Santo está diretamente ligada aos planos de austeridade impostos pelo governo estadual nos últimos anos. Como o crescimento da violência no Brasil - e do desemprego e do desespero - está diretamente ligada aos planos de austeridade impostos pelo governo federal desde 2014. Quando os arrochos nacional e local se somam, as vítimas se multiplicam. O que os 10.300 policiais militares do Espírito Santo querem? É a PM com o mais baixo piso salarial do país, R$ 2460,00. A média do Brasil é R$ 3980,00. Eles não têm aumento há sete anos, e há três anos o governo estadual nem repõe as perdas da inflação. Os PMs também reivindicam a renovação da frota de veículos, a melhora das condições do hospital da polícia, e a compra de coletes à prova de bala, que estariam em falta. É fácil de argumentar que não devia existir Polícia Militar, só civil. Mas vamos deixar isso para lá no momento, e reconhecer que o que os PMs do Espírito Santo pedem não é muito. É muito pouco: salário mais próximo da média nacional e condições mínimas para fazer seu trabalho, que é bem perigoso. Em vez de negociar com a polícia militar, o governador pediu ao governo tropas do exército. Chegaram lá e tomaram tiros dos bandidos. Vitória segue paralisada, comércio e escolas fechadas, ônibus não circulam. Os turistas fogem das praias capixabas. Os corpos se acumulam no departamento médico legal, que não dá conta de tanta morte. A Polícia Civil está avaliando se adere à greve. E as esposas dos PMs seguem protestando nas portas dos quartéis. Qual a proposta concreta do governo do Espírito Santo para a PM? Nenhuma. A questão é que se o governador cede aos PMs, terá que ceder aos policiais civis. E depois ao resto do funcionalismo. O governador Paulo Hartung, do PMDB, começou essa política de arrocho já em 2015. Mesmo tendo os custos com funcionalismo bem abaixo do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. Naturalmente não faltou dinheiro para outras atividades do governo - desonerações a grandes empresas, obras eleitoreiras etc. Foi louvado, e até considerado um bom candidato à presidência da República. Tem outra questão. Se o governo começa a ceder às demandas dos funcionários do Estado, daqui a pouco vai ter que ceder às demandas da população que é atendida pelo Estado. Do povão em geral, que precisa de giz na sala de aula e merenda no intervalo, vaga e leito no hospital, paz para ir e voltar do trabalho, e outras coisas simples assim. E isso é exatamente o que os administradores do país, dos estados e das cidades se recusam a nos dar. Não que nada disso seria "dado", porque que a gente já paga bem caro por isso tudo. Nos últimos tempos ouvimos muito o argumento de que "o Brasil está quebrado" - o país, os estados, as cidades - o que exigiria medidas duras. "Herança Maldita" que exige cortar na carne, no osso. Nos salários, aposentadorias, direitos. Na verdade, a conta é outra. O Brasil não está quebrado. O que o Brasil não pode mais se permitir é ter 99% dos brasileiros pagando muitos impostos, e o 1% dos brasileiros mais ricos pagando quase nada de impostos. Nossos milionários pagam pouco imposto de renda como pessoa física, pagam pouco imposto de herança, e como pessoa jurídica pagam também pouquíssimo imposto. Além disso as grandes empresas têm toda espécie de benefícios do Tesouro Nacional. Empréstimos de pai para filho do BNDES e BB, dívidas perdoadas, "desonerações" etc. Ontem o Espírito Santo já contava 75 assassinatos, depois de três dias de greve da PM. Ontem o Itaú, o maior banco do Brasil, publicou o seu balanço. No ano de 2016, com a maior recessão que o país já viveu, o Itaú lucrou R$ 22 bilhões. Se esse lucro fosse taxado em 50%, ainda assim seria um belíssimo lucro. O que dá para fazer com R$ 11 bilhões? Escola, estrada, esgoto. Esse é só um de muitos exemplos possíveis. Se o Brasil não der um presente bilionário às empresas de telecomunicações, como quer o governo, também teremos um bom dinheiro para pagar policiais, professores, enfermeiras. É a Lei Geral das Telecomunicações, que está para ser aprovada, e transfere para Oi e outras teles um valor tão grande, que nem se sabe exatamente quanto é. O governo diz que é R$ 17 bilhões, o Tribunal de Contas da União diz que é R$ 105 bilhões... E por aí vai. Ainda podemos botar na conta o tanto que se desvia na corrupção, que sabemos não é pouco. E o que se sonega, que sabemos que é muito. Segundo a Procuradoria da Fazenda Nacional, a sonegação de impostos no Brasil pode chegar a R$ 500 bilhões por ano. Para você comparar: o Bolsa-Família custa R$ 27 bilhões por ano. A próxima vítima será o Rio de Janeiro. O estado está para assinar um acordo com o governo federal que inclui um pacotão de arrocho para cima dos funcionários públicos do estado, inclusive policiais. Uma das exigências do governo é a privatização da Cedae, a companhia estadual de águas e esgotos, o que será feita por Pezão, vice de Sérgio Cabral... As políticas de "austeridade" no mundo todo deram errado e estão dando muito errado aqui também. Em 2017 o Brasil não vai crescer nada. O que o poder público nos oferece são serviços públicos cada vez piores, chegando à insanidade de termos 87 mortos em quatro dias no Espírito Santo. Na prática, os brasileiros pobres e da classe média sustentam as benesses dos brasileiros super ricos, a mamata dos sonegadores e a sujeira da corrupção. Então falta dinheiro para cobrir as necessidades básicas da população. Se a gente parar de sustentar os ricos, o Brasil equilibra as contas rápido. E se além disso os ricos passarem a pagar a sua parte, o Brasil rapidamente vai ser tornar... rico. Vamos encarar a realidade: tem dinheiro de sobra para o Brasil ser um país melhor para todos. Esta é a única pauta que importa, a pauta que precisamos impôr a cada dia, e também a cada nova eleição. Basta cobrar mais imposto de quem pode pagar mais, o que nunca aconteceu. Bater forte na sonegação e nos sonegadores, o que nunca aconteceu. E bater forte na corrupção e nos corruptores, o que começou a acontecer - mas só começou e agora, pelo jeito, parou. Na prática, o que está sendo feito pelos nossos governantes, e apoiado pelos economistas, colunistas, especialistas, é o contrário do que precisa ser feito. O Espírito Santo de hoje é o Brasil de amanhã. E a próxima vítima é você.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

NEOLIBERALISMO: SUBJETIVIDADES NO PONTO CEGO DA ESQUERDA

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL Diante da falência de perspectivas, qual a alternativa proposta pela esquerda? A direita estilo-Trump acena com a restauração dos projetos nacionais autoritários, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos. por: Tatiana Roque

3 de fevereiro de 2017

Crédito da Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil
Meritocracia e empreendedorismo são as palavras da moda, com todo o léxico que as acompanha:
capacitação, coaching, diferenciação, profiling e por aí vai. Ideias e valores derivados dos princípios da concorrência que estruturam o projeto neoliberal. Sabemos que o neoliberalismo não se reduz a um sistema econômico. Em escala pouco visível, atuam mecanismos para instalar a concorrência em todas as relações sociais e, por isso, as subjetividades viraram alvos do governo neoliberal. Governar não significa apenas deter o poder político, significa organizar, facilitar e estimular a concorrência nos mais diversos âmbitos da vida social, como resume Foucault¹ .

Todo esse projeto, que parecia viver seu auge nos anos 1990, está em crise. Ainda assim, o tipo subjetivo que o sustenta – o empreendedor de si – permanece surpreendentemente sedutor. Além de bastante difundido, trata-se de um tipo subjetivo que facilita a adesão às formas de sociabilidade contemporâneas, fundadas na concorrência e no sucesso individual. No momento de crise em que estamos vivendo, a solução neoliberal para manter a hegemonia é tentar um passo adiante, explorando as fragilidades do estado de bem-estar social e buscando submeter todas as suas instituições à lógica da concorrência. Pierre Dardot e Christian Laval²  sugerem que essa ofensiva visa os instrumentos que tornavam possível – até aqui – alguma sobrevida livre da concorrência, como os serviços públicos e a aposentadoria. O sucesso da empreitada depende da capacidade das formas de governo neoliberais para continuar convencendo a população que o empreendedor de si é atraente, bem como são suportáveis as relações sociais que o sustentam. Nessa dimensão se dará a disputa de corações e mentes. Por não estar sendo capaz de enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda não tem conseguido adesão às suas propostas. Logo, a tarefa mais urgente
para um novo projeto de esquerda será propor modos de vida alternativos à subjetividade empreendedora fundada na concorrência. Precisamos calibrar as lentes, focar nas subjetividades e buscar figuras capazes de substituir o self empreendedor, elemento-chave da racionalidade neoliberal.

Empreendedorismo é um modo de gestão social que mobiliza desde os empresários propriamente ditos até o setor de serviços e a economia informal, ou seja, enseja modos de vida que tocam a maior parte dos trabalhadores atualmente. Quando Jessé de Souza traça os perfis do novo “batalhador brasileiro”, inclui o batalhador do microcrédito, a empreendedora que vende doces e quitutes, as redes informais, o feirante, a família ampliada e a igreja neopentecostal³.  Uma grande parcela dos antigos assalariados, moradores de periferias, dedica-se hoje a um pequeno negócio, como lanchonete, corte e costura, salão de cabeleireiro ou oficina mecânica. A maior parte dessa população empreendedora atribui qualquer melhoria de vida ao esforço pessoal e quem ainda não tem seu próprio negócio, gostaria de ter4.  Das grandes corporações às igrejas neopentecostais, é a subjetivação empreendedora que mobiliza o engajamento. A ética da empresa – a partir da qual as pessoas se autogovernam no neoliberalismo – não envolve somente a competição, mas também exalta a autoestima, o pensamento positivo, a luta pelo sucesso, as habilidades pessoais, o vigor e a polivalência. Por isso, engloba todas as esferas da vida, desde o casamento, os filhos e os amigos até a família ampliada das igrejas – todos participam do networking necessário ao sucesso dos negócios. Mas nem tudo são flores. A conta não tarda a chegar, pois o self empreendedor sobrecarrega o indivíduo, que deve ser o único responsável por todos os riscos, tendo que assumir sozinho a culpa quando não consegue garantir o básico para si e seus próximos. O endividamento crescente só aumenta a culpabilização, gerando uma insatisfação cada vez maior com os dispositivos de subjetivação neoliberal. Os ideais de emancipação, mobilidade e liberdade, prometidos nos anos 1990, foram desmascarados pela multiplicação de sujeitos endividados; e a subjetivação neoliberal deu lugar à Fábrica do Homem Endividado 5.

Diante da falência de perspectivas, qual a alternativa proposta pela esquerda? A direita estilo-Trump acena com a restauração dos projetos nacionais autoritários, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos. Enquanto isso, na esquerda, aprofunda-se a dicotomia entre as lutas identitárias e classistas. A única figura subjetiva invocada sem hesitação nos projetos de esquerda é a do trabalhador. Mas essa figura está em crise, devido às transformações profundas do mundo do trabalho. O crescimento do setor de serviços faz com que a figura do trabalhador se aproxime do empreendedor. Além disso, o pacto do bem-estar social, que sustentava o mundo do trabalho, está se dissolvendo em escala mundial. Seus termos fundadores dependiam da separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir condições mínimas de existência ao trabalhador para que fosse possível extrair valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante das configurações atuais do mundo do trabalho?
Trabalho que vem sendo expandido para diferentes âmbitos da existência, com um papel cada vez mais preponderante de todas as esferas da vida nas relações de trabalho, como mostram o setor de serviços e a economia do conhecimento. Em todos esses casos, para continuarem produtivas, as pessoas precisam realizar um investimento contínuo sobre si mesmas, precisam empreender-se. Só que esse esforço já não traz o retorno necessário, levando à descrença e à depressão. Num ambiente social degradado, são os valores reacionários que têm conseguido suplantar a fragilização institucional generalizada. São justamente as mudanças no mundo do trabalho que explicam o crescimento das religiões neopentecostais; a cegueira das esquerdas para compreender o avanço dessas religiões só confirma sua dificuldade em recolocar o problema do trabalho no mundo atual.

Insistir na figura do trabalhador não fornecerá o elã subjetivo necessário para que novas pessoas possam aderir aos projetos da esquerda. Por isso, mesmo com todos os riscos que implica, a figura do empreendedor segue tendo mais apelo, mesmo nas classes populares. Que modos de vida, que suplantem a promessa desgastada de um trabalho assalariado na fábrica, conseguirão mobilizar corações e mentes? Que perspectivas de emancipação serão capazes de nos tirar do impasse atual? Sem enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda continuará perdendo, mesmo reiterando a denúncia da dissolução dos ideais de universalidade, igualdade e justiça. Calibrar as lentes e enxergar o problema na escala das subjetividades é um passo incontornável para qualquer projeto

Tatiana Roque é professora de filosofia na UFRJ

1 Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes, 2008. Aulas de 14, 21 e 28 de março de 1979.

2 A Nova Razão do Mundo. Boitempo, 2016.

3 Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Editora UFMG, 2010.

4 Indicam pesquisas, como a citada em:

https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/11/01/Como-a-substitui%C3%A7%C3%A3o-do-%E2%80%98trabalhador%E2%80%99-pelo-%E2%80%98empreendedor%E2%80%99-afeta-a-esquerda

5 Título de um livro de Maurizio Lazzarato disponível em francês: La fabrique de l’homme endetté: Essai sur la condition néolibérale. Éditions Amsterdam, 2011.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O pior e o melhor do animal humano

O pior e o melhor do animal humano

07.02.2017
 
O pior e o melhor do animal humano. 25967.jpeg
A opção que se coloca no mundo não é apenas a permanência da democracia ou o controle fascista da humanidade, mas as conquistas básicas da civilização humana que permitem a convivência entre as pessoas.
Roberto Malvezzi (Gogó)


A superação da "lei do talião", dente por dente e olho por olho, é uma conquista da civilização humana. Embora com tantas críticas e resistências, a ideia de justiça passou da vingança privada para a esfera do Estado. É ele que detém o monopólio da violência e da justiça.

Embora o Estado seja na maioria dos países o espelho da 
estruturação real da sociedade, o exercício legal do poder pela classe dominante, que faz e executa as leis conforme as suas conveniências - a tal da superestrutura jurídica, como dizia Marx -, há que ser reconhecer que sem regras e sem uma instância de ordem a convivência humana de 7 bilhões na face da Terra seria impossível de existir.
Gandhi, quando criticava a lei do talião, dizia que "no olho por olho todos terminaremos cegos". É simples acrescentar que no "dente por dente todos terminaremos banguelas".

A civilização humana experimenta um quadro de rupturas drásticas, consigo mesma e com o ambiente necessário para a existência da vida, particularmente dos seres humanos. Entretanto, nesse momento que deveria ser o da razão, é quando os instintos piores do animal humano afloram, numa real "struggle for life", construindo muros, enxotando pessoas, "desplazando" os mais fracos, os que menos tem espaços para sobreviver. Para muitos é a predominância do cérebro reptiliano que herdamos de nossos ancestrais.

O capital mudou. Antes desejava que toda humanidade consumisse seus produtos. Hoje, com a consciência dos limites ecológicos - água, solos, minerais, etc. - quer reservar o melhor para uma parte restrita da humanidade. 

Fala-se que, para sustentar o padrão mundial da classe dominante, a Terra comporta cerca de 2 a 3 bilhões de pessoas (Lovelock), sendo que o restante será fatalmente eliminado por tragédias sociais ou climáticas. 

Existem novos humanismos, de respeito ao imigrante, ao meio ambiente, a todos os seres vivos (Laudato Si'), à todas as pluralidades, a consciência da interligação de todos com o tudo. Porém, esse novo é subalterno diante dos instintos primitivos de sobrevivência que se tornam lei, governos e cultura do ódio.

Esse é o embate desse início de milênio. Ou avançamos para formas mais civilizadas de convivência, ou chafurdaremos no pior do animal humano.



Pravda em português. 

- See more at: http://port.pravda.ru/sociedade/curiosas/07-02-2017/42648-animal_humano-0/#sthash.RwXUjG0X.dpuf

A miséria intelectual dos economistas de mercado


6 de Fevereiro de 2017 - 13h08 



Artigo de Lara Resende desmascara uma farsa: já não há sustentação teórica alguma para defender juros altos — apenas o interesse da aristocracia financeira.

Por Felipe Calabrez


 
Um artigo recentemente publicado no Valor Econômico atraiu a atenção de parte dos economistas e jogou lenha na fogueira do debate macroeconômico nacional. Sob o provocante título “Juros e Conservadorismo Intelectual”, André Lara Resende apresenta o debate dito de fronteira da disciplina e que apresentaria achados contraintuitivos e reveladores: O primeiro foi revelado por estudos que analisaram a política do Quantitative Easing na Europa pós-2008. A medida de estímulo à economia por meio do aumento da oferta de moeda revelou, ao contrário do que defendia a Teoria Quantitativa da Moeda, que não produz sempre e necessariamente efeitos inflacionários. De acordo com Resende, as versões dessa teoria, já desacreditadas, deveriam ser enterradas de vez.

O segundo achado seria ainda mais chocante para quem acompanha o debate econômico no Brasil: Ao contrário do que sempre se acreditou, a hipótese neo-fisheriana sugere que taxas de juros altas podem, no curto prazo, reduzir a inflação, mas no longo prazo podem aumentá-la. Essa inversão na relação entre juros e inflação no longo prazo sugere então que toda a teoria sobre a qual o Banco Central constrói seus modelos poderia estar errada, revelando-nos então que pagamos os juros mais altos do mundo, com um brutal custo fiscal, efeitos contraproducentes sobre a dívida pública e, acrescento, efeitos distributivos perversos, em troca de mais inflação?!

TEXTO-MEIO
Como o próprio autor ressalta, é cedo, do ponto de vista da teoria econômica, para conclusões precipitadas. As hipóteses teóricas devem ser testadas e seus testes se dão em condições de nenhum controle sobre variáveis intervenientes, de modo que conclusões definitivas são impossíveis, como é, ademais, o caso de todas as ciências sociais. Deixemos então o desenvolvimento da “teoria pura” e a construção de hipóteses de modelos com seus especialistas e foquemos e uma advertência fundamental de André Lara, e que aparece também em seu segundo artigo: “A teoria monetária, mais ainda do que outras áreas da economia, sempre esteve 

associada a um contexto histórico e social específico”. É a partir dessa afirmação que procurarei desenvolver meu argumento.

A primeira coisa que chama atenção nesse debate não é tanto o questionamento das premissas que orientam a política monetária nacional, mas sim de quem parte o questionamento. André Lara Resende foi negociador da dívida externa e um dos elaboradores do inteligente mecanismo da URV, pelo que é considerado um dos “pais do Real”. Formado na PUC-RJ, com PhD no MIT, onde conheceu figuras graúdas do mundo das finanças, como Larry Summers, Resende é figura importante no processo de construção de nossa arquitetura institucional que lida com a política monetária e importante expoente do pensamento hegemônico desde então. Não por outro motivo, seu artigo atraiu a atenção no debate econômico, o que o levou a produzir um segundo artigo, este intitulado “Teoria, Prática e bom senso”. Peço licença ao leitor para reproduzir um trecho importante do referido artigo:

“No Brasil, a inflação é muito pouco sensível à taxa de juros. As razões da ineficácia da política monetária são muitas e controvertidas, mas a baixa sensibilidade da inflação à taxa de juros é indiscutível, uma unanimidade. Por outro lado, com a dívida pública em torno de 70% do PIB, uma taxa nominal de juros de 14% ao ano exige um superávit fiscal de quase 10% do PIB para que a dívida nominal fique estável. Com a economia estagnada e a inflação perto dos 6% ao ano, isso significa que é preciso um superávit fiscal primário de quase 5% da renda nacional para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB. A carga tributária está perto dos 40% do PIB, alta até mesmo para países avançados, ameaça estrangular a economia e inviabilizar a retomada do crescimento. A dificuldade política para reduzir despesas é enorme. Fica assim claro que o custo fiscal da política monetária não é irrelevante.” (RESENDE, in Valor Econômico, 27/01/2017).
A passagem transcrita acima apresenta dois grandes pontos. Vamos por partes:

Primeiramente, afirma a ineficácia de nossa política monetária, isto é, o instrumento utilizado para controle da inflação, que é a taxa de juros definida pelo Banco Central, produz pouco efeito sobre o nível dos preços.

Essa crítica não é nova. Embora inexistente nos grandes meios de comunicação, que determinam os termos do debate, já foi bastante discutida no ambiente acadêmico, onde foram apresentadas diversas explicações para o fenômeno, inclusive a do próprio André Lara Resende, que falava em “incerteza jurisdicional”. Não entrarei nos argumentos internos de cada explicação para a baixa eficácia da política monetária. Quanto a isso quero fazer duas observações: A primeira é a de que, apesar de haver um importante debate acadêmico, que apresenta argumentos bastante razoáveis sobre como e porquê manter juros altos como mecanismo de combate à inflação é contraproducente, o “debate público” que vemos nas grandes mídias diariamente é absolutamente impenetrável a tais argumentos. Quanto a isso basta lembrar da repetitiva narrativa dos jornalistas econômicos sobre a sacralidade do “tripé macroeconômico” e sobre a necessidade de o Banco Central não “descuidar” da inflação, isto é, manter juros altos. Eis um debate interditado.

Em segundo lugar, a comunidade dos policy-makers responsáveis pela política monetária sabe muito bem dos fracos efeitos de transmissão de suas políticas, isto é, que aumentar os juros produz muito pouco efeito sobre o nível de preços. Ocorre que, ao invés de se fomentar um debate sobre a eficácia dos instrumentos e/ou revê-los em seus fundamentos, eis que a solução que encontraram é, pasme o leitor, aumentar os juros ainda mais, até o ponto em que se obtenha o efeito esperado. Para quem duvidar, basta ler as atas do Copom. Não por outro motivo, André Lara Resende termina seu último artigo perguntando se, diante dos indícios da baixa eficácia do remédio deve-se “ministrar doses maciças” ou “reduzir rapidamente a dosagem”, o que seria uma questão de bom senso. Há décadas a opção do Banco Central tem sido a primeira.

Agora passo ao segundo grande ponto levantado pela passagem transcrita acima: O custo fiscal da política monetária. Este ponto está interligado com o anterior (baixa eficácia da política monetária), mas diz respeito a seus efeitos colaterais, que são o enorme custo que as altas taxas de juros produzem para o Tesouro, produzindo déficits e inflando a dívida pública. Lembremos que, como afirmou Resende, a política monetária está mais associada a questões institucionais do que à própria teoria econômica. Então vejamos.

A taxa Selic, instrumento que o BC utiliza para controlar a inflação, é a mesma taxa que remunera parte expressiva do estoque de dívida pública. Assim, a cada aumento na taxa, sobe a conta de juros que o Tesouro irá pagar por sua dívida.

O Tesouro oferece vários tipos de títulos diferentes, com indexadores diferentes; alguns são pré-fixados, outros são pós-fixados. Dentre eles, há um título denominado Letras Financeiras do Tesouro (LFT’s), que é indexado à taxa Selic, esta determinada de tempos em tempos pelos diretores do Banco Central após ouvir as previsões do mercado. É, portanto, pós-fixado. Acontece que, pelo menos desde o lançamento do Plano Real, a taxa Selic se manteve altíssima no Brasil, devido a inúmeros fenômenos que fogem ao controle do Tesouro, inclusive devido aos próprios fundamentos do plano, que necessita atrair capitais externos para manter um câmbio sobrevalorizado e manter a estabilidade de preços. Se pegarmos as médias anualizadas da Selic, disponíveis no site do Banco Central, encontramos a seguinte média:

Selic Média (anualizada)

1996-2002 - 22,95%

2003-2017 - 13,76%

Fonte: Site do Banco Central. Elaboração própria
Quanto a seu impacto sobre a dívida, se pegarmos os dados de 1995 (primeiro ano do governo FHC), veremos que 37,8% de uma dívida pública de R$108,5 bilhões de reais (em valores da época) era indexada à taxa Selic. Se olharmos para 1998, um ano antes da construção do “tripé macroeconômico”, 69,1% de uma dívida de R$323,9 bilhões era indexada à Selic. Em maio de 1999, o Copom, por conta de “turbulências externas”, definiu a Selic em 45%a.a, taxa que passou a remunerar 61,2% de uma dívida que já estava em R$ 414,9 bilhões (também em valores da época).

Diante disso, não estranha que o segundo governo FHC tenha permitido que a dívida chegasse às alturas mesmo produzindo expressivos superávits primários. O governo teve, nesse período, uma média de gasto com juros de 7,9% do PIB. Portanto, a dívida subiu não porque o governo tenha sido “irresponsável” fiscalmente, mas porque os custos de rolagem de uma dívida tão cara superavam os esforços fiscais não financeiros alcançados para controlá-la, de modo que ela passa a crescer sobre sua própria rolagem. Essa situação não mudou fundamentalmente nos governos Lula, embora tenha-se tentado reduzir o peso das LFT’s na dívida, movimento revertido a cada sobressalto do mercado.

O problema aqui é que o Tesouro é responsabilizado por um deficit que ele é incapaz de controlar, porque sua origem é financeira e monetária. Diante disso, como advertiu André Lara, qualquer pequeno ajuste fiscal se torna draconiano.

E aqui passo ao aspecto que considero mais perverso desse mecanismo: Trata-se de um sistema de espólio que onera as contas públicas e alimenta um sistema financeiro parasitário. Se olharmos para hoje notamos que, em plena recessão e sob o imperativo do “ajuste fiscal”, o Tesouro oferta título com rendimentos de 14% nominais (descontada a inflação, mais de 7% de ganhos reais). Essa anomalia, verdadeira farra financeira, criou um sistema financeiro completamente disfuncional para qualquer projeto de desenvolvimento, pois é muito mais rentável e seguro aplicar em títulos públicos, que, além de tudo, permitem resgates em curto prazo. É uma verdadeira benção para o sistema bancário, que pode se dar ao luxo de cobrar taxas na casa dos 400%! ao ano para o tomador final em plena recessão, já que tem garantidos seus chamados “ganhos de tesouraria”, que advém do carregamento de títulos.

Essa verdadeira anomalia institucional também não é novidade. Economistas como Francisco Lopreato e Yoshiaki Nakano já alertaram para esse problema. Talvez um dos primeiros tenha sido Fernando de Holanda Barbosa, que já em 1992 alertava, em texto preparado para a CEPAL, para o fato de que, nessas condições, uma política monetária contracionista (juros altos) produz uma política fiscal expansionista, já que se tem títulos protegidos contra a inflação e sacáveis no curto prazo. Mas quando isso foi criado?

As LFT’s foram criadas no rastro do repique inflacionário, durante a gestão de Maílson da Nóbrega, e visavam garantir o financiamento do governo oferecendo títulos atrativos para o mercado. Se originaram das LBC’s, que foram criadas também no período de inflação aberta por Mendonça de Barros, Pérsio Arida e…André Lara Resende! Se voltarmos mais atrás chegamos nas ORTN’s de Campos e Bulhões, criadas na primeira reforma do regime militar.

A inflação foi controlada há mais de 20 anos, o grosso da dívida passou a ser em moeda interna, governos tucanos e petistas ocuparam a Presidência da República e até hoje não houve uma revisão desse mecanismo de espoliação e rentismo às custas do contribuinte e da economia real. A dívida virou negócio intocável, uma eterna moeda indexada.

Se argumentos em torno de distribuição, desigualdade e injustiça não comovem a comunidade de economistas e financistas do Banco Central e do mundo das finanças, que pelo menos atentem para os desajustes entre objetivos e instrumentos da política macroeconômica. Isso porque agora começa a ficar claro, mais que nunca, que tais desajustes são fruto não apenas de arranjos institucionais extrativistas, que sugam a renda nacional, como também – e este segundo é André Lara Resende quem o diz – de conservadorismo intelectual e falta de bom senso.

Imagem: Theodor Rombouts, O Arrancador de Dentes (1635)


 Fonte: Outras Palavras
Versão Clássica
Portal Vermelho: Rua Rego Freitas, 192 - 4º andar. Centro - São Paulo - SP - CEP 01220-010 - Tel.: (11) 3054-1837

Advogado empregado é o profissional mais insatisfeito dos EUA

SATISFAÇÃO NO EMPREGO


Uma pesquisa da CareerBliss revelou que o advogado empregado é o profissional mais insatisfeito dos Estados Unidos com o próprio emprego. A pesquisa, na qual 65 mil empregados foram entrevistados, teve o objetivo de determinar o índice de satisfação (ou de felicidade) ou de insatisfação (ou infelicidade) das pessoas no trabalho. No final, a empresa publicou a lista dos 10 profissionais que chamou de mais felizes e mais infelizes no emprego.
Curiosamente, a média salarial do advogado empregado nos EUA (US$ 111 mil por ano) é mais que o dobro da média salarial do corretor imobiliário (US$ 53 mil), o profissional mais satisfeito com o emprego. O índice de satisfação do advogado empregado é de 2,89 (de 0 a 5), enquanto o do corretor imobiliário é de 4,26.
A CEO da CareerBliss Heidi Golledge disse à revista Forbes que uma explicação para a infelicidade do advogado empregado é a “cultura da firma”. É preciso muitos anos de trabalho duro para se tornar um sócio do escritório de advocacia, o que é um objetivo comum entre os advogados empregados.
O trabalho que realizam nem sempre é gratificante, as compensações não são atraentes e recebem menos que profissionais com o mesmo nível de formação de outros setores. Também pesa, nos EUA, o fato de os escritórios de advocacia trabalharem com base em “horas faturáveis”, o que cria uma pressão adicional sobre os advogados.

A área jurídica tem mais um tipo de profissional insatisfeito nos EUA. O auxiliar jurídico ocupa a 7ª posição entre os mais infelizes no país com seu emprego, com um índice de 3,38. Uma das principais queixas dos auxiliares jurídicos é o de passar a maior parte de seu tempo cumprindo tarefas burocráticas, depois de passar anos na faculdade sonhando e se preparando para atuar nos tribunais.
Nas entrevistas da pesquisa, os empregados de diversos setores tiveram de avaliar alguns fatores que afetam a satisfação no trabalho. Entre eles, o relacionamento com o chefe e colegas de trabalho, o ambiente no trabalho, recursos disponíveis, remuneração, oportunidades de crescimento no emprego, cultura da empresa, reputação da empresa, tarefas diárias, controle sobre o trabalho que fazem diariamente.
Cada profissão foi avaliada por pelo menos 50 profissionais. Eles avaliaram cada fator em uma escala de 5 pontos e também indicaram a importância de cada fator para a satisfação no trabalho. 
Profissionais mais insatisfeitos
Pos.
Profissão
Índice
Média salarial por ano
1
Advogado empregado
2,89
US$ 111 mil
2
Rep. de atendimento ao consumidor
3,16
US$ 26 mil
3
Escriturário/escrevente/escrivão
3,18
US$ 27 mil
4
Enfermeiro registrado
3,22
US$ 60 mil
5
Professor
3,22
US$ 39 mil
6
Coordenador de Marketing
3,31
US$ 44 mil
7
Auxiliar jurídico
3,38
US$ 44 mil
8
Técnico farmacêutico
3,39
US$ 28 mil
9
Especialista em suporte técnico
3,41
US$ 43 mil
10
Gerente de caso
3,44
US$ 45 mil
Profissionais mais satisfeitos
Rank
Profissão
Índice
Média salarial por ano
1
Corretor imobiliário
4,26
US$ 53 mil
2
Engenheiro de garantia de qualidade
4,23
US$ 82 mil
3
Rep. de vendas sênior
4,19
US$ 67 mil
4
Superintendente de construção
4,10
US$ 68 mil
5
Desenvolvedor de aplicativos sênior
4,08
US$ 86 mil
6
Gerente de logística
4,07
US$ 62 mil
7
Gerente de construção
4,06
US$ 77 mil
8
Auxiliar administrativo executivo
4,04
US$ 45 mil
9
Engenheiro de rede
4,02
US$ 70 mil
10
Controlador assistente
4,02
US$ 73 mil

 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O que perde a juventude sem Filosofia em sala de aula.

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Tornar opcional o ensino de Filosofia corresponde a tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a pensar sobre o que os torna verdadeiramente humanos





Obra do artista surrealista belga René Magritte (Foto: Reprodução)


Juvenal Savian Filho
Colaboração para a CULT


Na próxima semana o Senado tratará da Medida Provisória referente à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão tornar opcional o ensino de Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como o Senado tem a prerrogativa de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter alguma clareza no debate, apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos senhores senadores.


Certamente uma das razões para desobrigar do ensino de Filosofia é uma razão econômica, embora seja irrisória a quantidade de dinheiro público que será poupada com o corte de professores e de aulas dessa disciplina (maior será o dano social à vida dos profissionais e dos estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se à menção explícita de nomes de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Outra razão, enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm ocorrido em nosso país durante os últimos dois anos, ela parece ser o principal motor para desobrigar do ensino de Filosofia: trata-se de uma razão sócio-ideológica que diz respeito à preocupação de setores da sociedade brasileira com a “doutrinação comunista e ateia” que seria praticada nas aulas de Filosofia.

Dito dessa maneira, tudo parece uma caricatura. Na realidade, porém, não há nada de caricatural. Essa razão foi levantada por vários deputados e senadores, além de representantes da sociedade civil. Professores de Filosofia seriam marxistas, militantes petistas, anticristãos, adeptos do casamento homossexual, abortistas, anticapitalistas, contrários à meritocracia e outras coisas mais.

Assim, para além das simpatias e dos ódios, é necessário e urgente perguntar: esse diagnóstico corresponde à realidade? Seriam todos os professores de Filosofia comunistas e ateus? Seria realmente um ganho para a história mental de nosso país tornar opcional o ensino de Filosofia?
Num momento histórico em que muitas pessoas redescobrem a importância do pensamento filosófico (quando mesmo grandes empresas têm valorizado profissionais dotados de conhecimentos filosóficos, porque são capazes de análises mais globais e de pensamentos mais complexos), urge perguntar por que o Brasil pretende frear a ampliação da cultura filosófica em vez de acelerá-la? Aliás, outros países da América Latina também têm puxado o mesmo freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para desobrigar do ensino de Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como o comunismo, a destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da família etc.

Um parêntese histórico curioso: os partidos de direita e de centro-direita fazem hoje o que setores da esquerda fizeram no passado e fazem também atualmente. Refiro-me a todos aqueles de esquerda que são contra o ensino de Filosofia  porque, como dizem, “diante da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”.

Hoje os membros da direita dizem que quem dá as aulas são “marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas e assim por diante”.

Indo ao núcleo dessa preocupação, é urgente perguntar se esse diagnóstico corresponde à realidade. E a resposta para essa questão é redondamente negativa.
Tenho conhecimento de causa, não apenas pelo trabalho na universidade em que leciono, mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me apenas ao ponto talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o maior número de professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez por motivos sociais (o crescimento das religiões cristãs evangélicas e de setores do cristianismo católico, do budismo, das religiões africanas e outras religiões), o fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de serem petistas.

Obviamente, quando faz parte do programa curricular o estudo de pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los, inclusive os professores religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância desses filósofos para a história do pensamento; não se pode querer evitá-los como se tivéssemos o direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a verdade histórica. Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se em um excelente exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a amadurecer sua fé religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.

Queremos ou não queremos formar cidadãos livres, responsáveis e construtores de uma sociedade respeitosa e democrática? Se esse é um dos objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos estudantes, deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades “opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual, levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da religião, enfim, dos vários aspectos da existência.


O caso do falso debate entre criacionismo e ciência
Para dar um exemplo mais concreto do bem que a formação filosófica pode fazer mesmo a pessoas religiosas, evoco aqui uma experiência que vivi quando lecionei no Ensino Médio (e que constantemente se repete na universidade): um grupo de estudantes estava muito angustiado depois de algumas aulas de Biologia, pois haviam estudado a teoria do Big Bang ou do que se chama em geral de “a grande explosão” que teria ocorrido nos inícios do Universo, e o professor de Biologia teria afirmado que a teoria do Big Bang provava a inexistência de Deus.

A ocasião não podia ser melhor para que eu atuasse como professor de Filosofia. A primeira coisa que propus em aula foi estudar o modo como se constrói o conhecimento em Biologia e nas ciências em geral, avaliando sobretudo a base que permite construir conceitos como início, causa, fim, finito, infinito, além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram logo tirar a conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque perceberam não apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que “viu” ou experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito), mas também que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência nem a existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou outro, nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém, estavam realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por todos os que se instruem nas regras desse discurso.

Depois de várias aulas de reflexão, de leitura de textos de Filosofia da Ciência, de Teoria do Conhecimento e de Filosofia da Religião, o ganho foi enorme, principalmente porque a conclusão mais adequada e mais lúcida era a de que a teoria do Big Bang não anula a fé na criação e que tampouco a fé na criação impede de adotar a teoria do Big Bang.

O dado comum percebido por todos era o de que o debate “criacionismo versus eternidade ou infinitude do Universo” é um falso debate, fundamentado no erro de tomar o criador do Universo por uma “parte” do mesmo Universo (e, por conseguinte, passível de ser provado ou não). Tanto os estudantes religiosos se apegavam a uma visão demasiado infantil do criador, como o professor de Biologia também era imaturo ao achar que sua briga era com aquele criador infantil. O erro conceitual do professor era explícito: ele tratava o ser divino como uma parte do mundo, querendo submetê-lo às leis da Física, da Química e da Biologia, em vez de entender que o ser divino, para ser tratado adequadamente, deve ser visto como transcendente ao mundo e suas leis.O mesmo erro era cometido pelos estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma parte do mundo e traíam sua transcendência.

Trocando em miúdos, o Universo pode ter surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre existido, pode caminhar para um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas teorias impede pensar que um ser divino criador está no fundamento do Universo. Nunca será irracional crer que há um porquê para o dinamismo cósmico, pois provar a irracionalidade dessa crença exigiria provar o absurdo de seu fundamento mesmo, o ser divino, que, por definição, não é parte do mundo, não estando, portanto, sujeito a nenhum tipo de prova. Crer ou não crer são atitudes que envolvem não apenas o pensamento, mas também o sentimento (especificamente o sentimento religioso, na linha do que diziam Friedrich Schleiermacher e Rudolf Otto) e a vontade.

Relegar o ensino de Filosofia à categoria de “opcional” é diminuir ou anular a possibilidade de os estudantes desenvolverem exercícios desse tipo. É construir uma visão formativa em que os saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na ilusão de que mais aulas de Português e Matemática vão realmente fazer os estudantes pensar e exprimir-se com correção.
Nós, brasileiros de hoje, temos uma grave responsabilidade pelo tipo de mente que desejamos formar nas crianças e jovens. São eles que continuarão a construção do Brasil. Queremos um futuro com pessoas de mente aberta, respeitosa e madura ou de mente fechada, medrosa, imatura e agressiva? 

Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio que alguns estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as melhores escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos diante desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um país desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?


Juvenal Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Ódio no Brasil. A guerra ainda não começou. Por Leonardo Sakamoto.

Ódio no Brasil. A guerra ainda não começou

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:

Políticos, religiosos e parte da mídia inflamam a população, desumanizando o adversário e transformando o jogo democrático em uma luta do bem contra o mal. Quando um grupo de pessoas passa a desejar e a festejar a morte daqueles que foram desumanizados, os políticos, os religiosos e essa parte da mídia dizem que não têm nada a ver com isso.

Líderes de certos movimentos travam guerras na internet, dizendo que a esquerda é a razão de toda a corrupção e dor que há no mundo. Quando um punhado de ignorantes resolve espancar quem ousa vestir roupas vermelhas ou quando médicos passam a divulgar e ridicularizar, nas redes sociais, prontuários médicos sigilosos de pacientes de esquerda, os líderes desses movimentos dizem que não têm nada a ver com isso.

Articulistas afirmam que a direita merece ser exterminada pelo que prega. Quando um grupo de malucos passa a pedir o assassinato de juízes e políticos conservadores, esses articulistas dizem que não têm nada a ver com isso.

Certos humoristas elegem apenas iletrados, negros, prostitutas, gays, nordestinos, travestis, população de rua como alvos de suas piadas, ignorando brancos, ricos, grandes empresários. Quando a população reproduz essas piadas no dia a dia, humilhando colegas no trabalho e na escola, esses humoristas dizem que não têm nada a ver com isso.

Campanhas publicitárias transformam mulheres em objetos sexuais, instrumentos de limpeza ou vasilhames de cerveja. Quando homens tratam mulheres como coisas descartáveis, os publicitários e profissionais de mídia dizem que não têm nada a ver com isso.

Grupos sociais e parlamentares defendem que há uma doutrinação comunista nas escolas, militando contra a pluralidade de pensamento e chegando, no limite, a propor que alguns livros sejam vetados, jogados no lixo ou queimados. Quando jovens ignoram a História e cometem os mesmos crimes contra minorias de 80 anos atrás, esses grupos sociais e parlamentares dizem que não têm nada a ver com isso.

Lideranças de taxistas inflamam a categoria contra motoristas de Uber. Quando um grupo espanca um motorista, essas lideranças dizem que não têm nada a ver com isso.

Figuras públicas da TV inflamam a população contra o que chamam de degradação da civilização e das famílias de bem. Quando um grupo resolve amarrar alguém em um poste e linchar até a morte ou quando prefeituras mandam arrancar página de livros didáticos que versam sobre o direito de não ser humilhada por ser mulher, essas figuras públicas dizem que não têm nada a ver com isso.

Parlamentares dizem que as torturas e os assassinatos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira foram necessários para que o país não se tornasse uma grande Cuba. Daí quando a tortura segue sendo utilizada como método de investigação policial e o Estado usa métodos que nem a ditadura cubana usaria, esses políticos dizem que não têm nada a ver com isso.

Certas famílias inflamam seus filhos contra jovens negros e pobres da periferia e pessoas em situação de rua, dizendo que são uma ameaça à vida nas grandes cidades e não valem nada. Quando um grupo resolve despejar preconceito ou dar pauladas e por fogo nessas pessoas, as famílias dizem que não têm nada a ver com isso.

Pastores e padres de certas igrejas inflamam seus fieis contra aquilo que consideram um desrespeito às leis de seu deus. Quando um grupo espanca um gay, uma lésbica ou uma travesti, esses pastores e padres dizem que não têm nada a ver com isso.

Alguns jornalistas, progressistas e conservadores, inflamam seus leitores, ouvintes, telespectadores, repassando conteúdo violento, sem checar e de forma acrítica. Quando um grupo passa a assediar, de forma injusta, pessoas ou instituições com base nesse conteúdo, os jornalistas dizem que não têm nada a ver com isso.

Políticos inflamam seus eleitores contra jornalistas, progressistas e conservadores, por eles estarem divulgando fatos reais e não as opiniões que convém a esses políticos. Quando jornalistas passam a apanhar nas ruas porque cismam em não concordar que emoções superam provas, esses políticos dizem que não têm nada a ver com isso.

No Brasil, ninguém reconhece que fomenta ódio contra outros seres humanos.

Porque, no Brasil, muitos não reconhecem como ser humano quem é diferente deles.

Gritar isso para a nossa bolha nas redes sociais não resolve. Ou você respira fundo e conversa com quem pensa de outra forma, promovendo a empatia onde ela não existe e concedendo – nessa conversa – o mesmo tratamento que confere aos seus amigos, ou continuaremos vendo exércitos se armarem de cada lado para uma guerra em que apenas as baratas sobreviverão.

E não se enganem, ela ainda nem começou.

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Insulto, logo existo. Por Leandro Karnal.



Leandro Karnal      

HOMERO

Insulto, logo existo.

No momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte 25
Leandro Karnal

01 Fevereiro 2017 | 02h00
O ESTADO DE SÃO PAULO

A crítica e o contraditório são fundamentais. Grande parte do avanço em liberdades individuais e nas ciências nasceu do questionamento de paradigmas. Sociedades abertas crescem mais do que sociedades fechadas. A base da democracia é a liberdade de expressão. Sem oposição, não existe liberdade.
Uma crítica bem fundamentada destaca dados que um autor não percebeu. Um juízo ponderado é excelente. Mais de uma vez percebi que um olhar externo via melhor do que eu. Inexiste ser humano que não possa ser alvo de questionamento. Horácio garantia, com certa indignação, que até o hábil Homero poderia cochilar (Quandoque bonus dormitat Homerus - Ars Poetica, 359). A crítica pode nos despertar.

Como saber se a avaliação é boa? Primeiro: ela mira no aperfeiçoamento do conhecimento e não em um ataque pessoal. A boa crítica indica aperfeiçoamento. Notamos, no arguidor sincero, uma diminuição da passionalidade. Refulgem argumentos e dados. Mínguam questões subjetivas. Há mais substantivos e menos adjetivos. Não digo o que eu faria ou o que eu sou. Indico apenas como algo pode ser melhor e a partir de quais critérios. Que argumentos estão bem fundamentados e quais poderiam ser revistos. Objetividade é um campo complexo em filosofia, mas, certamente, alguém babando e adjetivando foge um pouco do perfil objetivo.

Duas coisas ajudam na empreitada. A primeira é conhecimento. Há um mínimo de formação. Não me refiro a títulos, mas à energia despendida em absorver conceitos. Nada posso dizer sobre aquilo do qual nada sei. Pouco posso dizer sobre o que escassamente domino. A segunda é a busca da impessoalidade. Critico não por causa da minha dor, da minha inveja, do meu espelho. Examino a obra em si, não a obra que eu gostaria de ter feito ou a que me incomoda pelo simples sucesso da sua existência. Critico o defeito e não a luz.

Cheguei a essas conclusões por já ter errado. Arrependo-me de críticas passionais. Tomei consciência de que dois ou três temas mexem tanto comigo, que a objetividade tende a diminuir. Questões ligadas ao racismo, à violência contra mulheres e à educação implicam uma carga emotiva forte para mim. Hoje, quando vejo que o debate roça nisso, submeto-me a redobrada atenção para evitar fazer aquilo que estou reclamando em outros.

Reconhecida minha imperfeição, reafirmo: assusta-me a virulência da internet. Há pessoas que querem fazer sucesso a qualquer preço e cimentam a estrada com palavrões. Acreditam que agressões com palavras vulgares e apelidos sejam um grande impacto. Estão corretos: causam impacto, mas vulgaridade é simples concussão.

Suponho que alguns apresentem sintomas ligados à chamada síndrome de Tourette. Hyperlink https://pt.wikipedia. org/wiki/Georges_Gilles_de_la_Tourette. Georges Gilles de la Tourette (1857-1904) descreveu pacientes que tinham compulsão de enunciarem palavrões, especialmente referências a fezes. A coprolalia, este fluxo de temas fesceninos e agressivos, escapa ao controle.

Além de uma síndrome generalizada de Tourette, noto a vontade de classificar mais do que entender. Definido se o autor é X ou Y, encerra-se a discussão. Basta dizer que ele é, por exemplo, conservador ou socialista. Nada mais preciso pensar da obra.
É preciso reforçar que o talento e a criatividade têm pouca exclusividade política ou biográfica. Portinari e Jorge Amado eram gênios na pintura e na escrita. Também foram devotados comunistas. Jorge Luis Borges mudou a maneira de pensar a literatura mundial. Era racista e achava a ditadura de Francisco Franco muito boa. Oscar Niemeyer mudou a noção de arquitetura do século 20. Era adepto do marxismo. Shakespeare, do ponto de vista político, era bastante conservador e desconfiava da participação popular. Descartes e Pascal eram religiosos; Bertrand Russel e Diderot, ateus. Picasso e Hemingway eram sedutores quase agressivos de mulheres. Nelson Rodrigues não era, exatamente, um feminista. O pintor Francis Bacon, o músico Schubert e o economista J. Keynes tinham vida ou desejo homoeróticos. O que eu quero dizer: no momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte. Fixar-se no estereótipo parece ser um recurso de certa estreiteza analítica. Tanto a maestria pode estar presente num indivíduo detestável como a mediocridade pode aflorar no mais engajado lutador dos direitos dos filhotes de foca.
Respondo raramente a críticos agressivos. Basicamente por falta de tempo e também por acreditar ser um direito de todos a manifestação com liberdade, dentro dos limites da lei. Internet funciona como terapia para muitos. Sempre recomendei que as pessoas fossem comedidas não por humildade, porém por vaidade, já que atacando alguém eu falo tanto de mim e dos meus medos que a prudência impõe certo silêncio obsequioso. Poucas coisas desnudam tanto minha alma como o ataque. Podemos sempre evitar o texto de quem discordamos. O impossível é evitar a nós mesmos.
Eis fevereiro entre nós. Hoje, chego ao meu verão de número 54. Nunca havia percebido a vida tão fascinante como agora. Melhorei muito porque tive bons críticos ao longo dos anos. Ajudaram-me a superar mazelas e lacunas. Agradeço a eles. Desejo paz aos outros julgadores. Estou com pouco tempo para odiar. Boa semana a todos.

Presente neoliberal: 5 milhões de desempregados a mais em 3 anos


ibgedez
O desemprego, medido pelo IBGE, chegou a 12% no último trimestre de 2016 (contra 11,8 no trimestre anterior), o que torna certo que a taxa subirá mais no início de 2017, pelo menos. Dezembro é um mês de dispensas, normalmente e, segundo o Ministério do Trabalho, passou de 400 mil o número de pessoas que perderam a carteira assinada no mês passado,  sem contar os “bicos” de Natal.
Pode parecer pequena a variação, mas isso significa que, de 2014  para 2016, passamos de 6,7 milhões de pessoas aptas ao trabalho mas sem emprego para 11,7 milhões. Isto é, mais cinco milhões  de pessoas ao desamparo , desde que  voltaram as políticas neoliberais do “afunda que levanta”. Na verdade, o número já é maior que 12 milhões, porque os cálculos do IBGE são feitos com as médias anuais e não com o resultado mais recente, quando chegou a 12,3 milhões.
O número de desocupados cresceu, portanto,  perto de 80% em três anos.
E o de trabalhadores regularizados, de carteira assinada, caiu 6,5% no mesmo período, ou seja, 2,3 milhões de brasileiros deixaram de ser contribuintes regulares da previdência e não contam tempo para se aposentar com 30 ou 35 anos, que dirá para os 49 anos que Michel Temer quer que se tornem obrigatórios.
A massa de rendimentos habitualmente recedidos de todos os trabalhos caiu abaixo dos níveis de 2013.
E chamam a isso de sanear a economia brasileira.