Portal Vermelho
19 de Julho de 2016 - 17h12
Hipótese provável: Erdogan conhecia trama para a quartelada e deixou que ocorresse. Agora, pode reerguer-se — e para isso, tende a trocar Europa e EUA pela Ásia.
Tudo leva a crer que Deus usa FaceTime. Foi por uma sequência icônica de imagens rodadas num iPhone, de local ignorado e exibida ao vivo pela CNN turca por uma âncora totalmente desentendida, que Erdogan conseguiu convocar sua legião de seguidores às ruas, disparar o Poder Popular e derrotar a facção militar que havia tomado a TV estatal e declarara que assumira o poder.
Deus pois trabalha por misteriosas vias celulares móveis. A convocação de Erdogan mobilizou até os jovens turcos que haviam protestado furiosamente contra ele no Parque Gezi; que levaram muito gás lacrimogênio pela cara e foram espancados com jatos dos canhões de água pela polícia dele; que acham detestável o partido AKP governante; mas que apoiariam Erdogan contra um “golpe militar fascista”. Para nem dizer que virtualmente todas as mesquitas em toda a Turquia repetiram a convocação de Erdogan.
A versão oficial de Ancara é que o golpe foi perpetrado por uma pequena facção de militares comandada à distância pelo clérigo e exilado na Pensilvânia Fethullah Gulen – agente, ele, pessoalmente, da CIA. A autoria permanece por comprovar; mas o certo, mesmo, é que o golpe foi remix turca de Os Três Patetas; os verdadeiros patetas parecem ser os já detidos comandante do 2º Exército general Adem Huduti; comandante do 3º Exército Erdal Ozturk; e ex-comandante da Força Aérea Akin Ozturk.
Como ex-agentes hiper-excitados da CIA ensinavam freneticamente pelas redes norte-americanas – e se há quem entenda de mudança de regime é aquele pessoal! – a regra número um em golpes é mirar e isolar a cabeça da serpente. Mas a esperta cabeça da serpente turca, daquela vez, estava em local incerto e não sabido. Para nem dizer que nenhum alto general capaz de soar suficientemente patriota e convincente foi à TV estatal para explicar os motivos do golpe.
Os golpistas miraram, sim, nos serviços de inteligência – cujas principais posições estão no aeroporto de Istambul, no palácio presidencial em Ancara e perto dos ministérios. Usaram helicópteros Cobra – com pilotos treinados nos EUA – contra aqueles alvos. Miraram também o alto comando do exército – que nos últimos oito anos tem sido nomeado por Erdogan e não goza da confiança do oficialato de médio escalão.
Enquanto ocupavam as pontes do Bósforo, em Istambul, pareciam estar em contato com a polícia militar – que se estende por toda a Turquia e mantém ligações firmes dentro da própria corporação. Mas no fim viu-se que não tinham nem o número – nem a preparação – necessária. Todos os ministérios chaves pareciam comunicar-se entre eles enquanto o golpe ia-se desenrolando, bem como os serviços de inteligência. E no que tenha a ver com a polícia turca, são agora uma espécie de guarda pretoriana do [partido] AKP.
Enquanto isso, o Gulfstream 4, voo TK8456, de Erdogan decolou do aeroporto de Bodrum, à 1h43, e sobrevoou o nordeste da Turquia, com o transponder ligado, absolutamente sem ser perturbado. Foi de seu avião presidencial, enquanto ainda estava em terra, que Erdogan falou pelo FaceTime; depois, do ar, administrou o contragolpe. O avião jamais saiu do espaço aéreo da Turquia – sempre visível aos radares civis e militares. Os jatos F-16 dos golpistas poderiam facilmente tê-lo rastreado e incinerado. Em vez disso, mandaram helicópteros militares bombardearem a residência presidencial em Bodrum horas depois de Erdogan ter deixado o local.
A cabeça da serpente com certeza sabia, 100% de certeza, que entrar naquele avião e permanecer no espaço aéreo turco era tão seguro quanto mastigar um(a) baklava. Ainda mais espantoso, o Gulfstream pousou em absoluta segurança em Istambul nas primeiras horas da manhã do sábado – apesar da ideia dominante segundo a qual o aeroporto estaria ocupado pelos “rebeldes”.
Em Ancara, os “rebeldes” usaram uma divisão mecanizada e dois comandos. Em torno de Istambul, havia um exército completo; o 3º comando é realmente integrado às forças de resposta rápida da Otan. Esse 3º comando forneceu os blindados Leopard posicionados nos pontos-chaves em Istambul – os quais, por falar deles, não abriram fogo.
E ainda os dois exércitos chaves posicionados nas fronteiras com Síria e Irã mantiveram-se em modo “esperar para ver”. Então, às 2 horas da madrugada, o comando também chave do 7º exército, baseado em Diyarbakir – encarregado de combater contra os guerrilheiros do PKK – declarou-se leal a Erdogan. Foi o momento exato, crucial, quando o primeiro-ministro Binali Yildirim anunciou que estava implantada uma zona aérea de exclusão sobre Ankara.
Significou que Erdogan comandava os céus. E que a brincadeira acabara. Misteriosos são os movimentos da história: a zona aérea de exclusão com que Erdogan tanto sonhou, por tanto tempo, sobre Aleppo ou sobre a fronteira sírio-turca, acabou materializada sobre sua própria capital.
“Prenda os suspeitos de sempre”
A posição dos EUA foi extremamente ambígua desde o início. Com o golpe já em andamento, a embaixada dos EUA na Turquia chamou-o de “levante turco”. O secretário de Estado John Kerry, em Moscou para discutir a Síria, também segurou suas fichas. A Otan manteve-se majestaticamente muda. Só quando já não havia dúvidas de que o golpe fracassara, o presidente Obama e os “aliados da Otan” proclamaram oficialmente seu “apoio ao governo democraticamente eleito”.
Erdogan, o “Sultão” voltou ao jogo com fúria. Entrou imediatamente ao vivo, na CNN turca, e exigiu que Washington lhe entregasse Gulen, mesmo sem qualquer prova de que seja responsável pelo golpe. E a exigência trazia uma ameaça embutida: “Se querem continuar a ter livre acesso à base aérea Incirlik, têm de me entregar Gulen”. Difícil não lembrar de história recente, quando os EUA de Dick Cheney, em 2001, exigiram que os Talibã lhe entregassem Osama bin Laden, sem qualquer prova de que tivesse sido responsável pelos ataques do 11/9.
Assim sendo, todas as probabilidades apontam para a possibilidade de que os serviços de inteligência de Erdogan soubessem que havia um golpe em construção; e o esperto sultão deixou acontecer, sabendo que fracassaria, porque os golpistas tinham apoio muito limitado. Pode-se dizer até que sabia – com antecedência – que até o Partido Popular Democrático, pró-curdos, cujos membros Erdogan está tentando expulsar do Parlamento, apoiariam o governo em nome da democracia.
Dois fatos extras acrescentam ainda mais credibilidade a essa hipótese. No início da semana, Erdogan assinou lei garantindo imunidade a soldados que tomassem parte em operações de segurança doméstica – como nas ações anti-PKK; é ação que visa a melhorar as relações entre o governo do AKP e o exército. E a corte superior de justiça da Turquia, HSYK, expulsou da magistratura nada menos que 2.745 juízes, na sequência de uma sessão extraordinária pós-golpe. Só pode significar que a lista já estava preparada com antecedência.
A principal consequência geopolítica, imediata, do golpe é que Erdogan parece agora ter miraculosamente reconquistado sua “profundidade estratégica” – como diria o ex-primeiro-ministro, Davutoglu, já afastado. Não só externamente – depois do colapso miserável de suas duas “políticas”, para o Oriente Médio e para os curdos – mas também internamente. Para todas as finalidades práticas, Erdogan agora controla o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – e não vai carregar prisioneiros no expurgo dos militares. Ladies and gentlemen, o Sultão está in da house.
Significa que o projeto neo-otomano está ainda em andamento – mas agora sob maciça reorientação tática. O “inimigo” real agora são os curdos sírios – não Rússia e Israel (nem ISIS; mas esses, para começar, nunca foram). Erdogan vai à caça do YPG, que para ele é mera extensão do PKK. A ordem do dia para ele é impedir por todos os meios que se crie uma entidade estatal autônoma no nordeste da Síria – um “Curdistão” montado como uma segunda Israel com o apoio dos EUA. Para isso, ele carece de alguma espécie de entente cordiale com Damasco – tipo insistir que a Síria tem de preservar sua integridade territorial. E significa também, é claro, renovado diálogo com a Rússia.
Assim sendo… o que a CIA andou fazendo?
Desnecessário dizer que Ancara e Washington estão agora em comprovada rota de colisão. Se há um Império do Caos escondido no golpe – a arma do crime ainda não foi encontrada –, com certeza vem do eixo neocons/CIA, não do governo pato manco de Obama. No momento, a alavancagem de Erdogan resume-se ao acesso à base aérea Incirlik. Mas sua paranoia está inflando: para ele, Washington é duplamente suspeita, porque protegem Gulen e apoiam o YPG.
O Inferno tampouco não conhece fúria como a de um sultão subestimado. Apesar de todas as suas recentes loucuras geopolíticas, o balé de Erdogan de reconectar-se simultaneamente com Israel e Rússia é eminentemente pragmático. Sabe que precisa da Rússia para o [gasoduto] Ramo Turco e para construir usinas nucleares; e precisa do gás de Israel para consolidar o papel da Turquia como nodo chave de passagem da energia entre oriente e ocidente.
Quando se ouve, crucialmente importante, que o Irã apoiou a “valente defesa da democracia” dos turcos, como tuitou o ministro Zarif, de Relações Exteriores, é claro como Erdogan, em apenas umas poucas semanas, reconfigurou toda a pintura regional. E isso sugere integração da Eurásia, e a Turquia profundamente conectada às Novas Rotas da Seda – não à Otan. Não surpreende que o governo em Washington, na Av. Beltway – para quem, sobretudo, Erdogan é o proverbial “aliado errático e não confiável” – esteja completamente histérico. Aquele sonho de coronéis turcos sob comando direto da CIA acabou – pelo menos, no futuro que se pode antever.
Assim sendo, e quanto à Europa? Yildirim já disse que a Turquia pode reintroduzir a pena de morte – a ser aplicada aos golpistas. Significa bye bye UE. E bye bye a aprovação, pelo Parlamento Europeu, de viagem sem visto para turcos em viagem pela Europa. Erdogan afinal, já obteve o que queria da chanceler Angela Merkel; aqueles 6 bilhões de euros para conter a crise de refugiados que, essencialmente, foi disparada por ele. Angela apostou a fazenda da família em Erdogan. Agora, está falando sozinha – e o Sultão fala diretamente com Deus pelo FaceTime.
Pepe Escobar: O “Sultão” da Turquia sabia de tudo?
Hipótese provável: Erdogan conhecia trama para a quartelada e deixou que ocorresse. Agora, pode reerguer-se — e para isso, tende a trocar Europa e EUA pela Ásia.
Por Pepe Escobar*, no Outras Palavras
Erdogan fala pelo FaceTime com mídia turca durante o golpe militar desferido contra seu regime
Deus pois trabalha por misteriosas vias celulares móveis. A convocação de Erdogan mobilizou até os jovens turcos que haviam protestado furiosamente contra ele no Parque Gezi; que levaram muito gás lacrimogênio pela cara e foram espancados com jatos dos canhões de água pela polícia dele; que acham detestável o partido AKP governante; mas que apoiariam Erdogan contra um “golpe militar fascista”. Para nem dizer que virtualmente todas as mesquitas em toda a Turquia repetiram a convocação de Erdogan.
A versão oficial de Ancara é que o golpe foi perpetrado por uma pequena facção de militares comandada à distância pelo clérigo e exilado na Pensilvânia Fethullah Gulen – agente, ele, pessoalmente, da CIA. A autoria permanece por comprovar; mas o certo, mesmo, é que o golpe foi remix turca de Os Três Patetas; os verdadeiros patetas parecem ser os já detidos comandante do 2º Exército general Adem Huduti; comandante do 3º Exército Erdal Ozturk; e ex-comandante da Força Aérea Akin Ozturk.
Como ex-agentes hiper-excitados da CIA ensinavam freneticamente pelas redes norte-americanas – e se há quem entenda de mudança de regime é aquele pessoal! – a regra número um em golpes é mirar e isolar a cabeça da serpente. Mas a esperta cabeça da serpente turca, daquela vez, estava em local incerto e não sabido. Para nem dizer que nenhum alto general capaz de soar suficientemente patriota e convincente foi à TV estatal para explicar os motivos do golpe.
Os golpistas miraram, sim, nos serviços de inteligência – cujas principais posições estão no aeroporto de Istambul, no palácio presidencial em Ancara e perto dos ministérios. Usaram helicópteros Cobra – com pilotos treinados nos EUA – contra aqueles alvos. Miraram também o alto comando do exército – que nos últimos oito anos tem sido nomeado por Erdogan e não goza da confiança do oficialato de médio escalão.
Enquanto ocupavam as pontes do Bósforo, em Istambul, pareciam estar em contato com a polícia militar – que se estende por toda a Turquia e mantém ligações firmes dentro da própria corporação. Mas no fim viu-se que não tinham nem o número – nem a preparação – necessária. Todos os ministérios chaves pareciam comunicar-se entre eles enquanto o golpe ia-se desenrolando, bem como os serviços de inteligência. E no que tenha a ver com a polícia turca, são agora uma espécie de guarda pretoriana do [partido] AKP.
Enquanto isso, o Gulfstream 4, voo TK8456, de Erdogan decolou do aeroporto de Bodrum, à 1h43, e sobrevoou o nordeste da Turquia, com o transponder ligado, absolutamente sem ser perturbado. Foi de seu avião presidencial, enquanto ainda estava em terra, que Erdogan falou pelo FaceTime; depois, do ar, administrou o contragolpe. O avião jamais saiu do espaço aéreo da Turquia – sempre visível aos radares civis e militares. Os jatos F-16 dos golpistas poderiam facilmente tê-lo rastreado e incinerado. Em vez disso, mandaram helicópteros militares bombardearem a residência presidencial em Bodrum horas depois de Erdogan ter deixado o local.
A cabeça da serpente com certeza sabia, 100% de certeza, que entrar naquele avião e permanecer no espaço aéreo turco era tão seguro quanto mastigar um(a) baklava. Ainda mais espantoso, o Gulfstream pousou em absoluta segurança em Istambul nas primeiras horas da manhã do sábado – apesar da ideia dominante segundo a qual o aeroporto estaria ocupado pelos “rebeldes”.
Em Ancara, os “rebeldes” usaram uma divisão mecanizada e dois comandos. Em torno de Istambul, havia um exército completo; o 3º comando é realmente integrado às forças de resposta rápida da Otan. Esse 3º comando forneceu os blindados Leopard posicionados nos pontos-chaves em Istambul – os quais, por falar deles, não abriram fogo.
E ainda os dois exércitos chaves posicionados nas fronteiras com Síria e Irã mantiveram-se em modo “esperar para ver”. Então, às 2 horas da madrugada, o comando também chave do 7º exército, baseado em Diyarbakir – encarregado de combater contra os guerrilheiros do PKK – declarou-se leal a Erdogan. Foi o momento exato, crucial, quando o primeiro-ministro Binali Yildirim anunciou que estava implantada uma zona aérea de exclusão sobre Ankara.
Significou que Erdogan comandava os céus. E que a brincadeira acabara. Misteriosos são os movimentos da história: a zona aérea de exclusão com que Erdogan tanto sonhou, por tanto tempo, sobre Aleppo ou sobre a fronteira sírio-turca, acabou materializada sobre sua própria capital.
“Prenda os suspeitos de sempre”
A posição dos EUA foi extremamente ambígua desde o início. Com o golpe já em andamento, a embaixada dos EUA na Turquia chamou-o de “levante turco”. O secretário de Estado John Kerry, em Moscou para discutir a Síria, também segurou suas fichas. A Otan manteve-se majestaticamente muda. Só quando já não havia dúvidas de que o golpe fracassara, o presidente Obama e os “aliados da Otan” proclamaram oficialmente seu “apoio ao governo democraticamente eleito”.
Erdogan, o “Sultão” voltou ao jogo com fúria. Entrou imediatamente ao vivo, na CNN turca, e exigiu que Washington lhe entregasse Gulen, mesmo sem qualquer prova de que seja responsável pelo golpe. E a exigência trazia uma ameaça embutida: “Se querem continuar a ter livre acesso à base aérea Incirlik, têm de me entregar Gulen”. Difícil não lembrar de história recente, quando os EUA de Dick Cheney, em 2001, exigiram que os Talibã lhe entregassem Osama bin Laden, sem qualquer prova de que tivesse sido responsável pelos ataques do 11/9.
Assim sendo, todas as probabilidades apontam para a possibilidade de que os serviços de inteligência de Erdogan soubessem que havia um golpe em construção; e o esperto sultão deixou acontecer, sabendo que fracassaria, porque os golpistas tinham apoio muito limitado. Pode-se dizer até que sabia – com antecedência – que até o Partido Popular Democrático, pró-curdos, cujos membros Erdogan está tentando expulsar do Parlamento, apoiariam o governo em nome da democracia.
Dois fatos extras acrescentam ainda mais credibilidade a essa hipótese. No início da semana, Erdogan assinou lei garantindo imunidade a soldados que tomassem parte em operações de segurança doméstica – como nas ações anti-PKK; é ação que visa a melhorar as relações entre o governo do AKP e o exército. E a corte superior de justiça da Turquia, HSYK, expulsou da magistratura nada menos que 2.745 juízes, na sequência de uma sessão extraordinária pós-golpe. Só pode significar que a lista já estava preparada com antecedência.
A principal consequência geopolítica, imediata, do golpe é que Erdogan parece agora ter miraculosamente reconquistado sua “profundidade estratégica” – como diria o ex-primeiro-ministro, Davutoglu, já afastado. Não só externamente – depois do colapso miserável de suas duas “políticas”, para o Oriente Médio e para os curdos – mas também internamente. Para todas as finalidades práticas, Erdogan agora controla o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – e não vai carregar prisioneiros no expurgo dos militares. Ladies and gentlemen, o Sultão está in da house.
Significa que o projeto neo-otomano está ainda em andamento – mas agora sob maciça reorientação tática. O “inimigo” real agora são os curdos sírios – não Rússia e Israel (nem ISIS; mas esses, para começar, nunca foram). Erdogan vai à caça do YPG, que para ele é mera extensão do PKK. A ordem do dia para ele é impedir por todos os meios que se crie uma entidade estatal autônoma no nordeste da Síria – um “Curdistão” montado como uma segunda Israel com o apoio dos EUA. Para isso, ele carece de alguma espécie de entente cordiale com Damasco – tipo insistir que a Síria tem de preservar sua integridade territorial. E significa também, é claro, renovado diálogo com a Rússia.
Assim sendo… o que a CIA andou fazendo?
Desnecessário dizer que Ancara e Washington estão agora em comprovada rota de colisão. Se há um Império do Caos escondido no golpe – a arma do crime ainda não foi encontrada –, com certeza vem do eixo neocons/CIA, não do governo pato manco de Obama. No momento, a alavancagem de Erdogan resume-se ao acesso à base aérea Incirlik. Mas sua paranoia está inflando: para ele, Washington é duplamente suspeita, porque protegem Gulen e apoiam o YPG.
O Inferno tampouco não conhece fúria como a de um sultão subestimado. Apesar de todas as suas recentes loucuras geopolíticas, o balé de Erdogan de reconectar-se simultaneamente com Israel e Rússia é eminentemente pragmático. Sabe que precisa da Rússia para o [gasoduto] Ramo Turco e para construir usinas nucleares; e precisa do gás de Israel para consolidar o papel da Turquia como nodo chave de passagem da energia entre oriente e ocidente.
Quando se ouve, crucialmente importante, que o Irã apoiou a “valente defesa da democracia” dos turcos, como tuitou o ministro Zarif, de Relações Exteriores, é claro como Erdogan, em apenas umas poucas semanas, reconfigurou toda a pintura regional. E isso sugere integração da Eurásia, e a Turquia profundamente conectada às Novas Rotas da Seda – não à Otan. Não surpreende que o governo em Washington, na Av. Beltway – para quem, sobretudo, Erdogan é o proverbial “aliado errático e não confiável” – esteja completamente histérico. Aquele sonho de coronéis turcos sob comando direto da CIA acabou – pelo menos, no futuro que se pode antever.
Assim sendo, e quanto à Europa? Yildirim já disse que a Turquia pode reintroduzir a pena de morte – a ser aplicada aos golpistas. Significa bye bye UE. E bye bye a aprovação, pelo Parlamento Europeu, de viagem sem visto para turcos em viagem pela Europa. Erdogan afinal, já obteve o que queria da chanceler Angela Merkel; aqueles 6 bilhões de euros para conter a crise de refugiados que, essencialmente, foi disparada por ele. Angela apostou a fazenda da família em Erdogan. Agora, está falando sozinha – e o Sultão fala diretamente com Deus pelo FaceTime.
*Jornalista brasileiro, correspondente internacional desde 1985, morou em Paris, Los Angeles, Milão, Cingapura, Bangkok e Hong Kong. Escreve sobre Asia central e Oriente Médio para as revistas Asia Times Online, Al Jazeera, The Nation e The Huffington Post. Tradução do coletivo Vila Vudu
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