26 de Julho de 2016 - 16h00
Passados dias de uma tentativa de golpe militar perpetrada – e frustrada – na Turquia, já temos condições de opinar com mais profundidade as razões do conflito e o mais importante: quais os rumos a Turquia de Erdogan tomará (e seu AKP). Vamos ver aqui um panorama geral do mundo árabe inserido na geopolítica mundial. Veremos também um pouco a correlação de forças no atual cenário mundial. Por fim, emitiremos algumas opiniões sobre os desdobramentos dos últimos acontecimentos.
Entende-se aqui por Oriente Médio, para efeitos de compreensão de nosso estudo, todos os 22 países árabes, incluindo os do Norte da África, mais o Irã e Turquia, com Israel no meio de tudo isso. Ou seja, falamos aqui de quatro nacionalidades e etnias: árabe, turca, iraniana e israelense.
O Oriente Médio (chamado de Oriente Próximo pelos europeus) vem sendo palco de grandes manifestações e conflitos desde pelo menos 17 de dezembro de 2010, quando, em Túnis, iniciou-se uma revolta a partir da imolação em praça pública de um vendedor de frutas desempregado (tinha concluído o nível superior inclusive). Muitos passaram a chamar esse movimento que derrubou o ditador Ben Ali, que ocupava o poder desde 1997, simplesmente de "primavera árabe".
O que ocorreu na verdade foram levantes das massas populares. As tais “revoluções coloridas”, que devastaram o leste europeu, tem o mesmo modus operandi e baseia-se nos mesmos materiais que lhe dão suporte teórico e ideológico, no caso Gene Sharp, filósofo dos Estados Unidos e dos movimentos Otpor, na Sérvia em 1998 e do CANVAS (Center for Applied Non Violent Action and Strategies). Movimentos ditos pela não violência, todos, sem exceção, na folha de pagamentos da CIA. Vivemos isso no Brasil nas manifestações de junho de 2013. O dedo mais claro dos Estados Unidos no que Pepe Escobar chama de “guerra híbrida”.
Vejam o que diz o manual das forças armadas dos Estados Unidos em 2010 sobre as guerras não convencionais: “O objetivo dos esforços dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. […] Em um futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerras irregulares”. Dito de outra forma, guerras não são travadas somente com armamentos militares. Neste caso, potências hostis são todo e qualquer país que conteste a hegemonia dos Estados Unidos, em especial os países do Brics.
Essas revoltas, que muitos chegaram a chamar de “revolução” – eu, inclusive – foram mais rápidas e breves, além de certa forma pacíficas apenas na Tunísia e Egito. Em países como a Líbia e a Síria, o dedo imperialista destruiu a Nação praticamente inteira. Na Líbia, além de matar o seu líder histórico, o coronel Muamar Khadafi, fragmentou o país em vários pedaços que ainda hoje não se unificaram. Na Síria o presidente Bashar al Assad segue no poder, denunciando uma agressão internacional – guerra por procuração – de potências regionais e mundiais para derrubá-lo e implantar um regime fiel ao imperialismo.
Interessante notar que essas tais “revoltas” acabaram ocorrendo apenas em países republicanos. Não se tem notícia de “revoltas” em monarquias. A única exceção o Barein, foi sufocada pelos país do Conselho do Golfo. No caso do Iraque, ele já havia sido destruído e Saddam morto desde a sua invasão de 2003, sob o comando de George Bush (filho).
Essa chamada “primavera árabe” – na verdade um verdadeiro inverno para o povo árabe – devastou praticamente toda a região. Em número gerais, há estatísticas que apontam a morte de (e feridos) 1,5 milhão de árabes e mais 15 milhões de deslocados (refugiados). Fala-se em prejuízos de US$ 830 bilhões e a destruição de quase toda a infraestrutura de países como o Iraque, Líbia, Síria, Iêmen entre outros.
Na prática e na realidade, essa tal “primavera” nada tinha a ver com “levar democracia e garantir direitos humanos” para os países árabes. Pura falácia. O objetivo mesmo era matar os principais resistentes – cada um à sua maneira – e lideranças árabes, como Saddam, Khadafi (esses mortos) e Bashar. Esses ataques além de serem de baixo custo (low cost), pois empregam mão de obra jihadistas barata e armamentos fornecidos pelos bilhões de dólares da Arábia Saudita, elas têm a características de derramar apenas sangue árabe (pouquíssimos soldados imperialistas morrem desde a desocupação do Iraque em 2012.
A Turquia nesse contexto
O mundo foi surpreendido por uma tentativa de golpe militar ocorrida na Turquia na sexta, dia 15 de julho, em um momento que seu presidente, Recep Tayyp Erdogan encontrava-se fora da capital. Para compreendermos em profundidade esses acontecimentos, eles devem ser situados em meio ao que falamos anteriormente das revoltas árabes, bem como da luta por um mundo multipolar, ou seja, pelo fim da unipolaridade representada pelos Estados Unidos e a hegemonia da sua moeda, o dólar. Nesse contexto, fortalecer ou enfraquecer o Brics torna-se questão central, assim como tem reflexos em tudo isso a saída da Inglaterra da União Europeia.
A Turquia é o país de maior percentual populacional de muçulmanos (quase 99%). Em contrapartida, provavelmente o mais laico de todos. O grande responsável por tais mudanças foi o chamado “pai dos turcos” (Atatürk) Mustafa Kemal por volta de 1922, quando a Turquia moderna foi estruturada e concebida.
Erdogan provavelmente é um dos líderes de países mais longevos no poder. Governou a Turquia como Primeiro Ministro por 11 anos seguidos (2003 a 2014) e exerce a presidência desde 28 de agosto de 2014, ou seja, controla o país com seu partido, o Partido pela Justiça e Desenvolvimento (AKP na sigla em turco) já por longos 13 anos. Alguns dizem inclusive que ele tem “nove vidas” ou político “teflon” (em uma alusão que nada de ruim gruda nele).
O grande sonho de Erdogan sempre foi integrar o seu país à União Europeia. Esse sonho lhe foi negado até hoje pelos principais líderes europeus, seja lá por quais argumentos. Isso significa uma operação arriscada na vida política de um líder de uma nação asiática. A primeira é dar as costas ao mundo árabe e muçulmano e a segunda é ficar na órbita dos Estados Unidos e da Alemanha/França. Ainda que não esteja na UE, a Turquia é membro da Otan – a aliança ocidental formada para cercar a antiga URSS – e cede uma das principais bases da aliança militar, que é a base de Incirlik, uma das maiores do mundo. Foi a partir dela que ataques ao Iraque foram desferidos na primeira agressão de 1991 e na segunda de 2003, entre tantas outras.
Erdogan nunca escondeu duas coisas em sua carreira política, ainda que a forma como ele a confessa é sempre dissimulada: a) a volta da islamização maior da Turquia (ele é membro da Irmandade Muçulmana, umas das mais antigas organizações do chamado Islã Político) e b) reconstruir o Califado Islâmico sendo ele o novo sultão (o Império Otomano acabou em 1922).
O descontentamento nas fileiras do exército turco quanto ao primeiro “sonho” já se manifestou de várias formas. Tentativas de golpe e revoltas militares – a maioria abafadas – foram várias. Os militares consideram-se guardiães da laicidade e da Turquia moderna. Quanto à segunda – a mais desastrada fez com que ele se aliasse ao projeto estadunidense de destruir os países e os líderes árabes que contestam a hegemonia dos Estados unidos.
Erdogan nesses anos todos, por sonhar com o Califado acabou se afastando de dois atores fundamentais no Oriente Médio: a Síria, o país árabe mais laico do mundo árabe e o Irã, com a sua democracia islâmica. Já há certo tempo vinha se desenhando na região um chamado “Arco da Resistência” da qual participa a própria Síria, o Irã, mais recentemente o Iraque, o maior agrupamento guerrilheiro da região que é o Hezbolá e em vários momentos e situações os Partidos Comunistas árabes (como é o caso especial da Síria onde os dois maiores participam do governo de Bashar). E, em certa medida, até o Líbano. Esse campo em ligação maior com a Rússia e o Brics.
No campo oposto a isso, vinham as monarquias do Golfo com os wahhabitas da Arábia Saudita os salafistas do Catar e a Irmandade Muçulmana, como seu braço turco de Erdogan, e o braço libanês da família Hariri. Esse campo é aliado preferencial dos Estados Unidos. Os grupos terroristas mais importantes da região – que jamais atacaram Israel, apenas países árabes – como a Al-Qaida, a Frente Nusra e o maior, que aglutina várias organizações, denominado Estado Islâmico (antigo ISIS/Daesh), ou foram formados pelos Estados Unidos ou são apoiados por eles. Erdogan integra esse campo e por isso vinha se afastando dos árabes há algum tempo e se aproximando inclusive de Israel.
As forças do golpe e os interesses envolvidos
Não faltaram analistas a afirmar que não houve golpe algum, mas uma simples encenação feita pelo próprio Erdogan ou um autogolpe. Não estou entre esses e a seguir abordarei esse aspecto. O que nos parece claro é o dedo dos Estados Unidos nesse movimento golpista. Não só pela demora com que condenou o golpe em si, mas pelos interesses econômicos e geopolíticos na Região.
Não há dúvida de que a sede do Império preferiria alguém mais dócil e mais previsível que Erdogan. Também ampliar os efetivos da Otan na Turquia é tudo que Obama e o stablishment americano querem, para ampliar o cerco à Rússia. Ainda que tímidas, as conversas com Putin vinham ocorrendo, pois há muitos interesses econômicos em jogo. Isso pode resultar em alteração de forças no arco da resistência ao imperialismo, beneficiando o povo e o governo sírio.
Há um sonho antigo de Moscou, de construir o Ramo Turco de um grande gasoduto que faça chegar o gás russo à Europa. Esse projeto é da ordem de US$ 15 bilhões. E também há grandes interesses em jogo na concretização de contratos para a construção de usinas nucleares na Turquia em valores da ordem de US$ 20 bilhões.
A questão militar é a mais delicada ainda. Em uma hipótese ainda remota – mas não impossível – de uma possível saída da Turquia da Otan, os EUA perderiam seu acesso ao estratégico Mar Negro (a convenção de Montreux de 1936, estabeleceu que países que não sejam banhados pelo Mar Negro não podem estabelecer navios de guerra na região de forma permanente).
Aqui não há a menor dúvida de que uma mudança de rota na política externa turca beneficia a Síria (evita a sua balcanização, porque Erdogan não quer ouvir falar de um estado do Curdistão), isola os wahhabistas sauditas e os salafistas catarianos, bem como preocupa Israel. Uma possível saída da Turquia da órbita ocidental também beneficia a chamada novas rotas da Seda (China e Irã).
Desdobramentos da tentativa de golpe
Aqui é preciso registrar o importante papel tido pelo povo turco. Independentemente de apoiarem ou não o governo de Erdogan – e nesse sentido a Turquia estava dividida – foram para às ruas para defender a sua democracia e expulsar os militares de volta para onde nunca deveriam ter saído: os quartéis.
Desde os primeiros momentos, com a confusão das informações e manipulações da mídia ocidental, ficou difícil distinguirmos os cabeças do golpe. Hoje pelo menos três altos oficiais estariam envolvidos, dois da ativa e um da reserva: general Adem Huduti, comandante do 2º exército; Erdal Ozturk, comandante do 3º exército e o ex-comandante em chefe da força aérea turca brigadeiro Akin Ozturk.
Os expurgos nas fileiras militares vão para a casa dos milhares. Ainda que os números venham crescendo muito, até o dia 18 de julho tínhamos 2.839 altos oficiais presos, entre eles vários generais (alguns falam em cinco outros em “várias dezenas”). Além disso, registra-se a demissão de 8.777 policiais (sabendo que a polícia turca trabalha sob comando do exército).
Entre os civis, a limpeza que Erdogan, com sua mão de ferro, vem fazendo é também na casa dos milhares. Os dados indicam 7.543 civis presos. Alguns órgãos de mídia falam em mais de 20 mil prisões. A limpa chega ao poder judiciário. Foram presos e/ou demitidos sumariamente 2.745 juízes e procuradores, sendo que dez deles da Suprema Corte de Justiça (o nosso STF daqui).
Um dos dedos apontados por Erdogan na liderança do golpe foi para o clérigo, líder do Movimento Hizmet, Fethullah Gülen que mora nos Estados Unidos. Existem informações confiáveis de que ele mantém fortes vínculos com a CIA e por ela é protegido. Possui nacionalidade norte-americana. Seu movimento religioso islâmico procura construir mesquitas em várias partes do mundo (a Rússia não permitiu). Ele negou qualquer envolvimento no golpe. Fala-se que Erdogan pediria a sua extradição e Obama deve negar.
Algumas primeiras conclusões
Ao que tudo indica, é muito provável que ocorrerá uma mudança de rumo na política externa turca. Penso que olhando o cenário complexo em curso na região, Erdogan vai deixar de lado seu antigo sonho de “virar europeu” e voltar a se aproximar de seus vizinhos asiáticos. Isso irá beneficiar imensamente o conflito na Síria, pois pode fazer cessar a rota de suprimentos aos terroristas do EI, bem como a compra de seu petróleo roubado do Iraque, principal fonte de financiamento do terror. Erdogan já declarou todos os grupos acima mencionados como terroristas.
Erdogan terá que se voltar mais para a Eurásia e Oriente Médio árabe. Deverá esquecer, momentaneamente ou para sempre, seu sonho de sultão e da volta do Califado. Deve dialogar com os xiitas do Irã e as diversas outras correntes do Islã.
É preciso monitorar o impacto que os expurgos no exército podem causar na unidade das forças armadas turcas. Do meu ponto de vista, o exército sai enfraquecido e de certa forma dividido inclusive.
Ao mencionar que se estuda hoje na Turquia voltar a adotar a pena de morte é a clara manifestação de que estariam pouco se lixando ao fato de que só pode ser admitido na UE os países que aboliram a pena capital.
Prevendo já a mudança política na Turquia, no primeiro momento do golpe e da luta do povo turco em defesa da democracia, o ministro das relações exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif, emitiu nota saudando o bravo povo turco que tomou às ruas pela democracia. Isso faz aproximar Erdogan do Irã. E isso fortalece o arco da resistência.
Por fim, a aproximação com a Rússia. Já há tempos o “R” do Brics vem fazendo importantes movimentos geopolíticos mundiais onde se percebe a tentativa da volta da Rússia ao patamar do que um dia foi a URSS. Claro que falta ainda algum chão para se igualar, mas os acordos e alianças que a Rússia vem fazendo a coloca como um dos grandes players no cenário geopolítico mundial. Hoje a presença no mundo árabe já é muito grande. Até o Egito já estabeleceu diversos tipos de acordos bilaterais.
Se os acontecimentos na longínqua Turquia podem facilitar o caminho da multipolaridade e o fortalecimento do Brics e certo isolamento dos EUA na Ásia, por aqui em nosso Brasil varonil, vamos de mal a pior. Os golpistas capitaneados pelo PMDB/PSDB de Temer, Cunha, Serra e Aécio já falam em tirar o “B” do Brics, de forma que, se vingar mesmo o golpe no senado em agosto, o Brics virará apenas Rics e, claro, seus países ficarão mais fracos. Para alegria dos Estados Unidos.
Anotações bibliográficas: este artigo só foi possível, graças a exaustivas leituras de autores como Pepe Escobar, Andrew Korybko, M K Bhadrakumar, Karim Balci e Ahmed Bensaada.
Lejeune Mirhan: Para onde vai a Turquia de Erdogan depois do golpe?
Passados dias de uma tentativa de golpe militar perpetrada – e frustrada – na Turquia, já temos condições de opinar com mais profundidade as razões do conflito e o mais importante: quais os rumos a Turquia de Erdogan tomará (e seu AKP). Vamos ver aqui um panorama geral do mundo árabe inserido na geopolítica mundial. Veremos também um pouco a correlação de forças no atual cenário mundial. Por fim, emitiremos algumas opiniões sobre os desdobramentos dos últimos acontecimentos.
Por Lejeune Mirhan*
Vidraça rompida por tiros no dia seguinte à tentativa de golpe de estado na Turquia
O Oriente Médio (chamado de Oriente Próximo pelos europeus) vem sendo palco de grandes manifestações e conflitos desde pelo menos 17 de dezembro de 2010, quando, em Túnis, iniciou-se uma revolta a partir da imolação em praça pública de um vendedor de frutas desempregado (tinha concluído o nível superior inclusive). Muitos passaram a chamar esse movimento que derrubou o ditador Ben Ali, que ocupava o poder desde 1997, simplesmente de "primavera árabe".
O que ocorreu na verdade foram levantes das massas populares. As tais “revoluções coloridas”, que devastaram o leste europeu, tem o mesmo modus operandi e baseia-se nos mesmos materiais que lhe dão suporte teórico e ideológico, no caso Gene Sharp, filósofo dos Estados Unidos e dos movimentos Otpor, na Sérvia em 1998 e do CANVAS (Center for Applied Non Violent Action and Strategies). Movimentos ditos pela não violência, todos, sem exceção, na folha de pagamentos da CIA. Vivemos isso no Brasil nas manifestações de junho de 2013. O dedo mais claro dos Estados Unidos no que Pepe Escobar chama de “guerra híbrida”.
Vejam o que diz o manual das forças armadas dos Estados Unidos em 2010 sobre as guerras não convencionais: “O objetivo dos esforços dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. […] Em um futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerras irregulares”. Dito de outra forma, guerras não são travadas somente com armamentos militares. Neste caso, potências hostis são todo e qualquer país que conteste a hegemonia dos Estados Unidos, em especial os países do Brics.
Essas revoltas, que muitos chegaram a chamar de “revolução” – eu, inclusive – foram mais rápidas e breves, além de certa forma pacíficas apenas na Tunísia e Egito. Em países como a Líbia e a Síria, o dedo imperialista destruiu a Nação praticamente inteira. Na Líbia, além de matar o seu líder histórico, o coronel Muamar Khadafi, fragmentou o país em vários pedaços que ainda hoje não se unificaram. Na Síria o presidente Bashar al Assad segue no poder, denunciando uma agressão internacional – guerra por procuração – de potências regionais e mundiais para derrubá-lo e implantar um regime fiel ao imperialismo.
Interessante notar que essas tais “revoltas” acabaram ocorrendo apenas em países republicanos. Não se tem notícia de “revoltas” em monarquias. A única exceção o Barein, foi sufocada pelos país do Conselho do Golfo. No caso do Iraque, ele já havia sido destruído e Saddam morto desde a sua invasão de 2003, sob o comando de George Bush (filho).
Essa chamada “primavera árabe” – na verdade um verdadeiro inverno para o povo árabe – devastou praticamente toda a região. Em número gerais, há estatísticas que apontam a morte de (e feridos) 1,5 milhão de árabes e mais 15 milhões de deslocados (refugiados). Fala-se em prejuízos de US$ 830 bilhões e a destruição de quase toda a infraestrutura de países como o Iraque, Líbia, Síria, Iêmen entre outros.
Na prática e na realidade, essa tal “primavera” nada tinha a ver com “levar democracia e garantir direitos humanos” para os países árabes. Pura falácia. O objetivo mesmo era matar os principais resistentes – cada um à sua maneira – e lideranças árabes, como Saddam, Khadafi (esses mortos) e Bashar. Esses ataques além de serem de baixo custo (low cost), pois empregam mão de obra jihadistas barata e armamentos fornecidos pelos bilhões de dólares da Arábia Saudita, elas têm a características de derramar apenas sangue árabe (pouquíssimos soldados imperialistas morrem desde a desocupação do Iraque em 2012.
A Turquia nesse contexto
O mundo foi surpreendido por uma tentativa de golpe militar ocorrida na Turquia na sexta, dia 15 de julho, em um momento que seu presidente, Recep Tayyp Erdogan encontrava-se fora da capital. Para compreendermos em profundidade esses acontecimentos, eles devem ser situados em meio ao que falamos anteriormente das revoltas árabes, bem como da luta por um mundo multipolar, ou seja, pelo fim da unipolaridade representada pelos Estados Unidos e a hegemonia da sua moeda, o dólar. Nesse contexto, fortalecer ou enfraquecer o Brics torna-se questão central, assim como tem reflexos em tudo isso a saída da Inglaterra da União Europeia.
A Turquia é o país de maior percentual populacional de muçulmanos (quase 99%). Em contrapartida, provavelmente o mais laico de todos. O grande responsável por tais mudanças foi o chamado “pai dos turcos” (Atatürk) Mustafa Kemal por volta de 1922, quando a Turquia moderna foi estruturada e concebida.
Erdogan provavelmente é um dos líderes de países mais longevos no poder. Governou a Turquia como Primeiro Ministro por 11 anos seguidos (2003 a 2014) e exerce a presidência desde 28 de agosto de 2014, ou seja, controla o país com seu partido, o Partido pela Justiça e Desenvolvimento (AKP na sigla em turco) já por longos 13 anos. Alguns dizem inclusive que ele tem “nove vidas” ou político “teflon” (em uma alusão que nada de ruim gruda nele).
O grande sonho de Erdogan sempre foi integrar o seu país à União Europeia. Esse sonho lhe foi negado até hoje pelos principais líderes europeus, seja lá por quais argumentos. Isso significa uma operação arriscada na vida política de um líder de uma nação asiática. A primeira é dar as costas ao mundo árabe e muçulmano e a segunda é ficar na órbita dos Estados Unidos e da Alemanha/França. Ainda que não esteja na UE, a Turquia é membro da Otan – a aliança ocidental formada para cercar a antiga URSS – e cede uma das principais bases da aliança militar, que é a base de Incirlik, uma das maiores do mundo. Foi a partir dela que ataques ao Iraque foram desferidos na primeira agressão de 1991 e na segunda de 2003, entre tantas outras.
Erdogan nunca escondeu duas coisas em sua carreira política, ainda que a forma como ele a confessa é sempre dissimulada: a) a volta da islamização maior da Turquia (ele é membro da Irmandade Muçulmana, umas das mais antigas organizações do chamado Islã Político) e b) reconstruir o Califado Islâmico sendo ele o novo sultão (o Império Otomano acabou em 1922).
O descontentamento nas fileiras do exército turco quanto ao primeiro “sonho” já se manifestou de várias formas. Tentativas de golpe e revoltas militares – a maioria abafadas – foram várias. Os militares consideram-se guardiães da laicidade e da Turquia moderna. Quanto à segunda – a mais desastrada fez com que ele se aliasse ao projeto estadunidense de destruir os países e os líderes árabes que contestam a hegemonia dos Estados unidos.
Erdogan nesses anos todos, por sonhar com o Califado acabou se afastando de dois atores fundamentais no Oriente Médio: a Síria, o país árabe mais laico do mundo árabe e o Irã, com a sua democracia islâmica. Já há certo tempo vinha se desenhando na região um chamado “Arco da Resistência” da qual participa a própria Síria, o Irã, mais recentemente o Iraque, o maior agrupamento guerrilheiro da região que é o Hezbolá e em vários momentos e situações os Partidos Comunistas árabes (como é o caso especial da Síria onde os dois maiores participam do governo de Bashar). E, em certa medida, até o Líbano. Esse campo em ligação maior com a Rússia e o Brics.
No campo oposto a isso, vinham as monarquias do Golfo com os wahhabitas da Arábia Saudita os salafistas do Catar e a Irmandade Muçulmana, como seu braço turco de Erdogan, e o braço libanês da família Hariri. Esse campo é aliado preferencial dos Estados Unidos. Os grupos terroristas mais importantes da região – que jamais atacaram Israel, apenas países árabes – como a Al-Qaida, a Frente Nusra e o maior, que aglutina várias organizações, denominado Estado Islâmico (antigo ISIS/Daesh), ou foram formados pelos Estados Unidos ou são apoiados por eles. Erdogan integra esse campo e por isso vinha se afastando dos árabes há algum tempo e se aproximando inclusive de Israel.
As forças do golpe e os interesses envolvidos
Não faltaram analistas a afirmar que não houve golpe algum, mas uma simples encenação feita pelo próprio Erdogan ou um autogolpe. Não estou entre esses e a seguir abordarei esse aspecto. O que nos parece claro é o dedo dos Estados Unidos nesse movimento golpista. Não só pela demora com que condenou o golpe em si, mas pelos interesses econômicos e geopolíticos na Região.
Não há dúvida de que a sede do Império preferiria alguém mais dócil e mais previsível que Erdogan. Também ampliar os efetivos da Otan na Turquia é tudo que Obama e o stablishment americano querem, para ampliar o cerco à Rússia. Ainda que tímidas, as conversas com Putin vinham ocorrendo, pois há muitos interesses econômicos em jogo. Isso pode resultar em alteração de forças no arco da resistência ao imperialismo, beneficiando o povo e o governo sírio.
Há um sonho antigo de Moscou, de construir o Ramo Turco de um grande gasoduto que faça chegar o gás russo à Europa. Esse projeto é da ordem de US$ 15 bilhões. E também há grandes interesses em jogo na concretização de contratos para a construção de usinas nucleares na Turquia em valores da ordem de US$ 20 bilhões.
A questão militar é a mais delicada ainda. Em uma hipótese ainda remota – mas não impossível – de uma possível saída da Turquia da Otan, os EUA perderiam seu acesso ao estratégico Mar Negro (a convenção de Montreux de 1936, estabeleceu que países que não sejam banhados pelo Mar Negro não podem estabelecer navios de guerra na região de forma permanente).
Aqui não há a menor dúvida de que uma mudança de rota na política externa turca beneficia a Síria (evita a sua balcanização, porque Erdogan não quer ouvir falar de um estado do Curdistão), isola os wahhabistas sauditas e os salafistas catarianos, bem como preocupa Israel. Uma possível saída da Turquia da órbita ocidental também beneficia a chamada novas rotas da Seda (China e Irã).
Desdobramentos da tentativa de golpe
Aqui é preciso registrar o importante papel tido pelo povo turco. Independentemente de apoiarem ou não o governo de Erdogan – e nesse sentido a Turquia estava dividida – foram para às ruas para defender a sua democracia e expulsar os militares de volta para onde nunca deveriam ter saído: os quartéis.
Desde os primeiros momentos, com a confusão das informações e manipulações da mídia ocidental, ficou difícil distinguirmos os cabeças do golpe. Hoje pelo menos três altos oficiais estariam envolvidos, dois da ativa e um da reserva: general Adem Huduti, comandante do 2º exército; Erdal Ozturk, comandante do 3º exército e o ex-comandante em chefe da força aérea turca brigadeiro Akin Ozturk.
Os expurgos nas fileiras militares vão para a casa dos milhares. Ainda que os números venham crescendo muito, até o dia 18 de julho tínhamos 2.839 altos oficiais presos, entre eles vários generais (alguns falam em cinco outros em “várias dezenas”). Além disso, registra-se a demissão de 8.777 policiais (sabendo que a polícia turca trabalha sob comando do exército).
Entre os civis, a limpeza que Erdogan, com sua mão de ferro, vem fazendo é também na casa dos milhares. Os dados indicam 7.543 civis presos. Alguns órgãos de mídia falam em mais de 20 mil prisões. A limpa chega ao poder judiciário. Foram presos e/ou demitidos sumariamente 2.745 juízes e procuradores, sendo que dez deles da Suprema Corte de Justiça (o nosso STF daqui).
Um dos dedos apontados por Erdogan na liderança do golpe foi para o clérigo, líder do Movimento Hizmet, Fethullah Gülen que mora nos Estados Unidos. Existem informações confiáveis de que ele mantém fortes vínculos com a CIA e por ela é protegido. Possui nacionalidade norte-americana. Seu movimento religioso islâmico procura construir mesquitas em várias partes do mundo (a Rússia não permitiu). Ele negou qualquer envolvimento no golpe. Fala-se que Erdogan pediria a sua extradição e Obama deve negar.
Algumas primeiras conclusões
Ao que tudo indica, é muito provável que ocorrerá uma mudança de rumo na política externa turca. Penso que olhando o cenário complexo em curso na região, Erdogan vai deixar de lado seu antigo sonho de “virar europeu” e voltar a se aproximar de seus vizinhos asiáticos. Isso irá beneficiar imensamente o conflito na Síria, pois pode fazer cessar a rota de suprimentos aos terroristas do EI, bem como a compra de seu petróleo roubado do Iraque, principal fonte de financiamento do terror. Erdogan já declarou todos os grupos acima mencionados como terroristas.
Erdogan terá que se voltar mais para a Eurásia e Oriente Médio árabe. Deverá esquecer, momentaneamente ou para sempre, seu sonho de sultão e da volta do Califado. Deve dialogar com os xiitas do Irã e as diversas outras correntes do Islã.
É preciso monitorar o impacto que os expurgos no exército podem causar na unidade das forças armadas turcas. Do meu ponto de vista, o exército sai enfraquecido e de certa forma dividido inclusive.
Ao mencionar que se estuda hoje na Turquia voltar a adotar a pena de morte é a clara manifestação de que estariam pouco se lixando ao fato de que só pode ser admitido na UE os países que aboliram a pena capital.
Prevendo já a mudança política na Turquia, no primeiro momento do golpe e da luta do povo turco em defesa da democracia, o ministro das relações exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif, emitiu nota saudando o bravo povo turco que tomou às ruas pela democracia. Isso faz aproximar Erdogan do Irã. E isso fortalece o arco da resistência.
Por fim, a aproximação com a Rússia. Já há tempos o “R” do Brics vem fazendo importantes movimentos geopolíticos mundiais onde se percebe a tentativa da volta da Rússia ao patamar do que um dia foi a URSS. Claro que falta ainda algum chão para se igualar, mas os acordos e alianças que a Rússia vem fazendo a coloca como um dos grandes players no cenário geopolítico mundial. Hoje a presença no mundo árabe já é muito grande. Até o Egito já estabeleceu diversos tipos de acordos bilaterais.
Se os acontecimentos na longínqua Turquia podem facilitar o caminho da multipolaridade e o fortalecimento do Brics e certo isolamento dos EUA na Ásia, por aqui em nosso Brasil varonil, vamos de mal a pior. Os golpistas capitaneados pelo PMDB/PSDB de Temer, Cunha, Serra e Aécio já falam em tirar o “B” do Brics, de forma que, se vingar mesmo o golpe no senado em agosto, o Brics virará apenas Rics e, claro, seus países ficarão mais fracos. Para alegria dos Estados Unidos.
Anotações bibliográficas: este artigo só foi possível, graças a exaustivas leituras de autores como Pepe Escobar, Andrew Korybko, M K Bhadrakumar, Karim Balci e Ahmed Bensaada.
* Sociólogo, especialista em Política Internacional. Foi professor de Sociologia da Unimep. Foi presidente da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil e Vice-Presidente de Relações Internacionais da Confederação Nacional das Profissões Liberais e presidente do SINDSESP. Possui nove livros publicados nas áreas de Política Internacional e Sociologia. É colaborador dos portais Fundação Graboi
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