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terça-feira, 30 de junho de 2015

Grécia põe na mesa a carta da democracia


Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:

“A revolução não será televisionada”, lembra um documentário de enorme repercussão na década passada. Em certas ocasiões, os grandes impasses históricos desenvolvem-se diante dos nossos olhos – e o velho jornalismo tornou-se incapaz de narrá-los. Um deles começou a se desenrolar na manhã deste sábado (27/6) e vai se estender até 5 de Julho. Tem como protagonista o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, eleito no início do ano por um partido-movimento organizado em rede e partidário de uma nova ordem internacional.

Pressionado pelos credores do país, que querem impor redução de direitos sociais para rolar uma dívida financeira, o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, convocou, em pronunciamento pela TV, um plebiscito sobre a proposta. Considerou que ela equivale a um “ultimato”, uma “tentativa de humilhar o povo grego”. Disse esperar dos eleitores “um grande não”. Lembrou que passava a palavra a eles por considerar a democracia “um valor supremo da sociedade grega”.

A consulta popular, um recurso essencial da política, foi considerada um tapa na cara pelos demais governantes dos países da zona do euro – todos implicados em políticas de “austeridade”. “Estou muito desapontado”, afirmou Jeroen Dijsselbloem, o membro do Partido Trabalhista Holandês (supostamente de centro-esquerda) que preside o chamado “eurogrupo”. Ainda no sábado, reunido em Bruxelas, o órgão respondeu à convocação democrática com uma demonstração de força bruta. A proposta de Atenas, que pedia adiar a decisão sobre a rolagem da dívida por apenas sete dias – até que se conhecesse a opinião popular –, foi rechaçada.

O Banco Central Europeu (BCE) decidiu não manter as linhas de crédito automáticas que normalmente oferece aos bancos de todo o continente. A consequência imediata, todos sabiam, seria o início de uma crise bancária na Grécia – cidadãos correndo aos caixas para retirar seus depósitos, sem poder fazê-lo. Tsipras não se intimidou. Em novo pronunciamento aos gregos, anunciou um feriado bancário de sete dias (até a apuração dos votos do plebiscito). A medida tem conteúdo igualitário. No período, as retiradas de dinheiro ficarão limitadas a 60 euros por dia, seja qual for o volume depositado em cada conta bancária. Estão suspensas, além disso, as transferências de recursos ao exterior.

A ousadia de Tsipras provocou uma reviravolta. O poder econômico dos gregos é ínfimo, diante dos tecnocratas da União Europeia (UE) – mas a convocação do plebiscito é um tapa democrático sobre um tabuleiro viciado. Nesta segunda-feira, os mercados financeiros europeus abriram em meio a uma incerteza próxima do pânico. As ações estão caindo fortemente, nas bolsas de valores de Londres, Frankfurt, Paris e Amsterdam, as mais importantes do continente. As ações mais desvalorizadas são as dos maiores bancos europeus. O secretário de Finanças dos EUA, Jacob Lew, achou prudente intervir, erecomendar cautela aos governantes do “Velho Continente” empenhados em pressionar Atenas. Há semanas, ele havia advertido: ninguém sabe se o sistema financeiro internacional, ainda envolto em crise, suportará o impacto de um trauma como o de uma eventual expulsão da Grécia do euro.

Nos próximos sete dias, estará em jogo muito mais que uma disputa entre Atenas e Bruxelas. As sociedades têm o direito de construir coletivamente seu futuro? Ou devem curvar-se ao que Marx chamou, de modo sarcástico, de “as águas gélidas do cálculo econômico”? Num tempo em que a “aristocracia financeira” – nova classe global de super-ricos – parece cada vez mais forte e insensível aos velhos valores civilizatórios, será possível encontrar uma brecha em seu sistema de dominação?

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Ao contrário do que tentam fazer crer as manchetes dos jornais de hoje, o está em jogo na disputa entre a Grécia e seus credores muito mais que uma querela econômica e técnica. Do ponto de vista financeiro, a crise grega poderia ser resolvida sem sobressalto algum. Desde 2010, a UE emprestou à Grécia algo como 316 bilhões de dólares. As duas linhas de crédito que precisam ser renovadas nas próximas semanas – 1,8 bilhão de dólares junto ao FMI, mais 7,5 bilhões de euros ao BCE – perfazem apenas 3% deste total. Se as negociações se arrastam há cinco meses é porque está em jogo muito mais que uma ninharia percentual.

Por trás dos números, cada parte tenta validar seus projetos de longo prazo para as sociedades e sua relação com as finanças. Quando evitaram que o Tesouro grego quebrasse, há cinco anos, seus credores, reunidos na chamada troika (BCE, Fundo Monetário Internacional-FMI e Comissão Europeia-CE), impuseram, como condição, um ataque rude aos direitos sociais dos gregos, aos serviços públicos e à soberania do país sobre si mesmo. Os acordos entre as duas partes foram estabelecidos em dois documentos, conhecidos como “Memorandos” (1 2). Produziram políticas que elevaram o desemprego a quase 30% (60% entre os jovens), privatizaram em massa – de portos a redes de infraestrutura a parques públicos e sítios arqueológicos –, ampliaram a carga de impostos (tornando-a, ao mesmo tempo, mais injusta) e reduziram, até mesmo em termos nominais, o salário mínimo e as aposentadorias.

O projeto de unidade europeia construído pacientemente a partir do Tratado de Roma (1957), nas décadas de capitalismo keynesiano, implicava difundir o modelo do Estado de Bem-estar Social. Mas após a crise de 2008, a Europa reduziu-se ao continente da regressão de direitos e aumento da desigualdade O dinheiro destinado ao governo grego jamais produziu benefício coletivo algum: retornou integralmente aos bancos privados a quem o país devia. O movimento foi chamado de “austeridade” – um termo enganoso e interesseiro. Oculta o fato de que os lucros e salários dos banqueiros e demais membros da aristocracia financeira recuperaram-se e voltaram aos patamares nababescos de antes da crise – enquanto, nas ruas, multiplicam-se os sem-teto e os que se alimentam da sopa dos pobres.

A emergência do Syriza, o partido-movimento a que pertence Alexis Tsipras, desmontou a trama, ao jogar luz sobre ela. No país europeu mais atingido pelas “novas” políticas, o grupo chegou ao governo em janeiro. Embora ligados ao pensamento anti e pós-capitalista, seus membros apresentaram um programa moderado e realista, que se apoia em quatro pilares – todos de natureza social-democrata: a) enfrentar a crise humanitária; b) reativar a economia, com Justiça Fiscal; c) um Plano Nacional de Retomada do Emprego; d) Reforma Política para aprofundar a democracia. Embora contido, o projeto é claro: os eleitores gregos votaram numa proposta que exige a revisão dos “Memorandos” firmados com a troika.

Para surpresa de muitos, a oligarquia financeira recusou-se ao diálogo efetivo, mesmo diante desta proposta conciliadora. Em fevereiro, poucas semanas depois de assumir o governo, o Syriza enfrentou a primeira bateria de negociações com a troika. O resultado foi uma espécie de empate. Para postergar, por quatro meses, o vencimento de dois empréstimos, os gregos recuaram de medidas como a reversão das privatizações. Pela primeira vez em cinco anos, no entanto, a resistência de Atenas impediu que o governo fosse obrigado a anunciar novos cortes de direitos. Este fato provocou um primeiro desconforto, num cenário político europeu marcado pelo conservadorismo. Governos como os da Espanha, Portugal e Irlanda constrangeram-se diante de um desfecho que mostrou, para seus próprios eleitores, que poderia valer a pena resistir.

Em junho, quando este acordo provisório expirou e as negociações foram retomadas, a troika voltou com sangue nos olhos. Inspirando-se em medida semelhante oferecida à Alemanha, em 1953, Atenas reivindica uma redução na dívida, para que seja possível melhoras as condições de vida da população e relançar a economia. Os credores não se limitam a repelir a proposta. Exigem que o Syriza traia seu programa e se desmoralize. Não abrem mão de duas medidas emblemáticas, pela enorme repercussão política que teriam junto aos gregos: nova redução no valor nominal das aposentadorias (a terceira, em cinco anos) e aumento dos impostos indiretos – os mais injustos e os que são sentidos mais imediatamente pela população.

Desde meados de junho, o eurogrupo viu-se imerso numa bateria frenética de negociações. Além das reuniões entre chefes de Estado, os ministros de Finanças foram convocados a Bruxelas cinco vezes, nos últimos dez dias. Atenas chegou a lançar propostas aparentemente conciliadoras, para tensionar o discurso dos credores. Sugeriu, por exemplo, que o “ajuste fiscal” reivindicado pela troika poderia ser feito tributando os mais ricos. Não houve o menor sinal de recuo. No sábado, quando todas as possibilidades de negociação se esgotaram, Tsipras colocou na mesa a carta do plebiscito – aprovado pelo Parlamento em sessão de emergência, um dia depois. Agora, as propostas da troika terão de ser feitas a todo o povo grego, que se pronunciará no próximo domingo. Mas quais as condições concretas para continuar resistindo?

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Na era da ultra-mercantilização, nada mais eficaz, para submeter um Estado ou sociedade rebelada, que o fantasma de uma crise bancária. Em 11 de fevereiro, apenas quinze dias após a posse de Alexis Tsipras em Atenas, o Banco Central Europeu agiu conscientemente para evocar uma destas crises na Grécia. Numa decisão casuística, eledecidiu excluir o país do mecanismo de assistência automática que oferece aos bancos da eurozona, quando enfrentam dificuldades momentâneas de liquidez. Desde então, o auxílio aos bancos gregos precisa ser autorizado, caso a caso, pelos dirigentes do próprio BCE. Quem reconheceu o viés político da decisão foi a revista Economist,insuspeita de qualquer simpatia pelo Syriza: “foi um tiro de advertência disparado contra o novo governo”, admitiu ela.

Inserida na zona do euro, a Grécia abriu mão do poder de emitir moeda. E, sociedade dividida em classes, passou a sofrer, também desde a chegada do Syriza ao poder, a pressão das elites, interessadas em fazer todo o possível a mudanças no status-quo. A partir de janeiro, os bancos vivem um processo de retiradas predatórias – e cada vez mais maciças – de dinheiro, feitas pelos mais ricos. Já em fevereiro, o montante total dos depósitos havia caído para 140,5 bilhões de euros, o mais baixo em dez anos, desde a criação da moeda única europeia.

O movimento intensificou-se desde então e se converteu em bola de neve à medida em que os credores endureceram as condições para um acordo. Os saques subiram a € 300 milhões diários na semana entre 13 e 20 de junho e a € bi a cada 24 horas, desde então. No último fim de semana, antes de o governo estabelecer um limite diário equânime para as retiradas, havia longas filas diante dos caixas eletrônicos. Temeu-se pelo pior: além de não haver mais dinheiro nos bancos, surgiu o risco de faltarem recursos para pagar, na virada do mês, os aposentados e pensionistas… O New York Times não deixou de captar as possíveis consequências políticas. Na Argentina, uma crise bancária que eclodiu em janeiro de 2001 derrubou três presidentes em cinco dias. Houve quem especulasse: a União Europeia estará tramando uma mudança de regime em Atenas?

É possível, porém, que estas especulações não levem em conta outro aspecto, de sentido contrário. Caso a ruptura se consume, e impeça Atenas de saldar também seus compromissos internacionais, qual será o impacto sobre os mercados financeiros internacionais? O pensamento convencional prevê repercussão limitada. O PIB anual da Grécia, de € 242 bilhões equivale a apenas 1,34% do europeu. Os grandes bancos do Velho Continente já teriam “precificado” o risco de uma retirada grega da zona do euro (a “Greek Exit”, ou “Grexit”) – ou seja, teriam feito provisões para absorver os eventuais prejuízos.

Mas talvez valha a pena ouvir duas opiniões ilustres e divergentes. No final de maio, o secretário de Tesouro dos EUA, Jacob Lew, advertiu seus colegas do G7 sobre as consequências – a seu ver desconhecidas da possível “grexit”. “Só sabemos ao certo que estamos aumentando os riscos de um acidente [financeiro] quando deixamos de agir até que chegue o próximo prazo fatal”, disse ele. Um dia depois, Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, foi além. “Mesmo no curto prazo, as salvaguardas financeiras de uma saída grega nunca foram tesstadas e poderiam perfeitamente falhar. Além disso, a Grécia, goste-se ou não, é parte da União Europeia e seus problemas iriam se esparramar pelos demais países do grupo, mesmo se a barreira financeira aguentar”, escreveu ele – que enxerga nos governantes europeus atuais a mesma tendência à alienação e cegueira política que levou à I Guerra Mundial.

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Indiferentes até ontem à crise grega, os velhos jornais brasileiros abrem hoje suas manchetes para ela. A descoberta do assunto é bem-vinda, mas em todos os textos sobressai uma distorção. A crise é tratada apenas em seu lado dramático. Destacam-se os limites aos saques nos bancos, as filas quilométricas, os temores dos aposentados. É como se estivéssemos diante de uma fatalidade trágica: os gregos desobedeceram os deuses, os mercados – agora, assistiremos ao castigo.

Nesta cobertura invertida, o que não se menciona, ou se subestima, é precisamente o fato novo, a notícia. Tsipras e o Syriza convocaram um plebiscito. A sociedade será ouvida, ao invés de convidada a submeter-se (como no Brasil do “ajuste fiscal”) a políticas apresentadas como tão inevitáveis como os terremotos ou as grandes secas ou os terremotos. Abriu-se, subitamente, uma brecha na ditadura financeira.

Saberemos aproveitá-la? Os próximos sete dias serão decisivos. O gesto de Tsipras agrega uma nova incógnita à equação, num mundo marcado por imensos riscos e oportunidades. E se as populações da Espanha, Portugal ou Irlanda – para não falar dos outros países europeus – exigirem também ser consultadas, sobre os programas impostos a seus países? E se o recém-fundado Banco dos BRICS oferecer a Atenas – amparando-se na imensa fartura das reservas monetárias chinesas – os recursos de que precisa para se livrar da crise? E se, no Brasil, alguém propuser um referendo sobre o “ajuste fiscal” também concebido para permitir elevação dos juros e enriquecimento ainda maior da aristocracia financeira?

Os dados estão lançados e o resultado final já não depende apenas do interesse dos mercados – mas das atitudes e posturas que tomaremos, coletiva e individualmente. Costumava-se dar a isso o nome de democracia.

sábado, 27 de junho de 2015

A nova roupa da direita

Reproduzido da Carta Capital

por por Marina Amaral, da Agência Pública — publicado 25/06/2015 03h46
Rede de conservadores dos EUA financia jovens latino-americanos para combater governos de esquerda da Venezuela ao Brasil e defender velhas bandeiras com um nova linguagem

Fernando Conrado
Gloria Álvarez
A guatemalteca Gloria Álvarez durante evento em Porto Alegre
“O corpo é a primeira propriedade privada que temos; cabe a cada um de nós decidir o que quer fazer com ele”, brada em espanhol a loirinha de voz firme, enquanto se movimenta com graça no palco do Fórum da Liberdade, ornado com os logotipos dos patrocinadores oficiais – Souza Cruz, Gerdau, Ipiranga e RBS(afiliada da Rede Globo). O auditório de 2 mil lugares da PUC-RS, em Porto Alegre, completamente lotado, explode em risos e aplausos para a guatemalteca Gloria Álvarez, 30 anos, filha de pai cubano e mãe descendente de húngaros.
Gloria ou @crazyglorita (55 mil seguidores noTwitter e 120 mil em sua fanpage do Facebook) ascendeu ao estrelato entre a juventude de direita latino-americana no final do ano passado, quando um vídeo em que ataca o “populismo” na América Latina durante o Parlamento Iberoamericano da Juventude em Zaragoza (Espanha) viralizou na internet. No principal fórum da direita brasileira, Gloria e o ex-governador republicano da Carolina do Sul David Bensley são os únicos entre os 22 palestrantes, brasileiros e estrangeiros, escalados para os keynote – palestras-chave que norteiam os debates nos três dias do evento, batizado de “Caminhos da Liberdade”.
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Radialista há dez anos, hoje com um programa na TV, Gloria é uma show-woman cativante. Conduz com desenvoltura a plateia formada majoritariamente por estudantes da PUC gaúcha, uma das melhores e mais caras universidades do Sul do país. “Quem aqui se declara liberal ou libertarista que levante a mão?”, pede ao público, que responde com mãos erguidas. “Ah, ok”, relaxa. Sua missão é ensinar a seus pares ideológicos como “seduzir e enamorar os públicos de esquerda” e vencer “os barbudos de boina de Che”, explica a jovem líder do Movimiento Cívico Nacional (MCN), uma pequena organização que surgiu em 2009 na Guatemala na esteira dos movimentos que pediam – sem êxito – oimpeachment do presidente social-democrata Álvaro Colom.
A primeira lição é utilizar nas redes sociais o hashtag criado por ela, “república x populismo”, para superar “a divisão obsoleta entre direita e esquerda”. “Um esquerdista intelectualmente honesto tem de reconhecer que a única saída é o emprego, e um direitista do século 21, que já se modernizou, tem de reconhecer que a sexualidade, a moral, as drogas são um problema de cada um; ele não é a autoridade moral do universo”, continua, sob uma chuva de aplausos. Nada de culpa, nem moral nem social, ensina. A mensagem é liberdade individual, “empoderamento” da juventude, impostos baixos, Estado mínimo – a plataforma da direita liberal (em termos econômicos) no mundo todo: “A riqueza não se transfere, senhores, a riqueza se cria a partir da cabecinha de cada um de vocês”, diz. Da mesma maneira, Gloria rebate programas sociais de assistência aos mais pobres, política de cotas para mulheres, negros, deficientes e até mesmo a existência de minorias: “Não há minorias, a menor minoria é o indivíduo, e a ele o que melhor serve é a meritocracia”.
“Há uma verdade que todo ser humano deve alcançar para ter paz, se não quiser viver como um hipócrita. Todos nós, 7 bilhões e meio de seres humanos que habitamos este planeta, somos egoístas. É essa a verdade, meus queridos amigos do Brasil, todos somos egoístas. E isso é ruim? É bom? Não, é apenas a realidade”, diz, definitiva. “Há pessoas que não aceitam essa verdade e saem com a maravilhosa ideia: ‘Não! [imita a voz de um homem], eu vou fazer a primeira sociedade não egoísta’. Cuidem-se, brasileiros; cuide-se, AméricaLatina! Esses espertinhos são como Stálin, na União Soviética, como Kim Jong-il, Kim Jong-un, na Coreia do Norte, Fidel Castro, em Cuba, Hugo Chávez, na Venezuela.” E por que “seguimos como carneirinhos” atrás desses “hipócritas”? Porque [faz careta e vozinha de velha] “nos ensinam que é feio ser egoísta e que pensar em nós mesmos é pecado. Quantos de vocês já não viram alguém dizer ‘ah, necessitamos de um homem bom, que não pense só em si”, diz, encurvando-se à medida que fala para em seguida recuperar a postura altiva: “Mira, señores, a menos que seja um marciano, esse homem não existe, nunca existiu, nem existirá jamais”. Aplausos frenéticos.
Mas, explica, os “defensores da liberdade” também tem sua parcela de responsabilidade. Eles não sabem comunicar suas ideias, usar a tecnologia para “empoderar os cidadãos” e “libertar” a América Latina. “Se ficarmos discutindo macroeconomia, PIB etc., vamos perder a batalha. Temos que aprender com os populistas a falar o que as pessoas entendem, fazer com que se identifiquem”, ela diz. “E aqui vou lhes dar outro conselho porque dizem que nós, os liberais, somos malditos exploradores”, ironiza. “Encontrei um maneira muito bonita de definir o conceito de propriedade privada. E com esse conceito de propriedade privada os esquerdistas fazem assim: Ôooooo! [inclina o corpo para trás].” A propriedade privada, diz, é o que acumulamos em toda uma vida, a partir de nossas primeiras propriedades: corpo e mente. O passado, afirma, não é igual para ninguém, esse acúmulo é pessoal. “Isso nos humaniza, dá um coraçãozinho a nós, liberais, tão desgraçados.” Risos. Aplausos.
“Há pessoas que querem o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia. A ONU agora quer até o direito universal à internet”, desdenha, embora tenha acabado de dizer que a tecnologia é a chave para mudar o mundo. “Imaginem que, nesse auditório, alguns queiram o direito à educação, outros o direito à saúde, outros o direito à moradia. Então, se eu dou a vocês a educação, todos aqui vão pagar por isso, e vocês vão ser VIPs, e eles, cidadãos de segunda categoria. Se eu dou a eles a saúde, todos neste auditório vão pagar pela saúde deles, e eles vão ser VIPs. Se eu dou a esses as moradias, vou ter que tirar de todos vocês para dar moradia a eles, e eles vão ser esses VIPs. Isso não é justiça social, é desigualdade perante a lei”, conclui, novamente sob risos e aplausos.
“Se cada um na América Latina tiver direito à vida, liberdade e propriedade privada, então cada um que vá atrás da educação que queira, da saúde que queira, da casa onde quer morar, sem precisar de super-Chávez, super-Morales, super-Correa”. Ovação. Assobios. Antes de encerrar os 40 minutos de exposição, Gloria convida os presentes a contrapor a visão de mundo que “vitimiza os latino-americanos”, “joga a culpa nos ianques”, mina a “autoestima” e a coragem de assumir riscos que exige o espírito empreendedor. A plateia aplaude de pé.

Neoliberais e libertaristas

Gloria Álvarez não representa nada exatamente novo. A grande diferença é a linguagem. O MCN (movimento a que ela pertence) recebe “fundos de algumas das maiores empresas da elite empresarial tradicional, conta o jornalista investigativo Martín Rodríguez Pellecer, diretor do site guatemalteco Nómada, parceiro da Pública. “Por fontes próximas, soube que uma das indústrias que os apoiam para campanhas de massa e lobby no Congresso é a Azúcar de Guatemala, um cartel poderosíssimo de treze empresas (a Guatemala é o quarto maior exportador mundial de açúcar) e as usinas guatemaltecas têm, inclusive, investimentos em usinas no Brasil.”
O mesmo pode-se dizer em relação a suas ideias. Apesar do título sedutor, os libertarians – libertaristas em português – “são um segmento minoritário entre as correntes que ganharam influência no pós-guerra em oposição às políticas intervencionistas de inspiração keynesiana”, explica o economista Luiz Carlos Prado, da Universidade Federal no Rio de Janeiro.
A partir da crise do petróleo dos anos 1970, economistas pró-mercado como o austríaco Friedrich Hayek (Prêmio Nobel de 1974), monetaristas da Escola de Chicago de Milton Friedman (Prêmio Nobel de 1976) e os novo-clássicos associados a Robert Lucas (Prêmio Nobel de 1995) passaram a dominar o pensamento econômico global e se tornaram conhecidos do grande público sob um único rótulo: “neoliberal”. Seus conceitos foram trazidos para a América Latina pelo setor mais conservador americano, representado principalmente pelos think tanks ligados a Ronald Reagan, que depois de ter perdido as primárias republicanas em 1968 e 1976, se elegeu presidente em 1980, tendo Friedman como principal conselheiro. Também predominaram no governo de Margaret Thatcher (1979-1991) na Inglaterra. “Os defensores do liberalismo clássico eram também defensores da liberdade política, mas a corrente chamada de ‘neoliberal’ defendia essencialmente a não intervenção do Estado na economia sem uma preocupação particular com a questão da liberdade política, chegando, em alguns casos, a apoiar sem constrangimentos governos ditatoriais como o de Pinochet no Chile”, observa Luiz Carlos Prado.
O “herói” do Fórum , Kim Kataguiri, encontra o patrocinador da festa, Jorge Gerdau.
A Guatemala de Gloria Álvarez é um bom exemplo de como as ideias libertarians se traduziram na América Latina. Em 1971,“uma parte muito representativa da elite econômica guatemalteca assumiu como projeto político o libertarismo de direita, quando fundou a Universidade Francisco Marroquín (UFM)”, conta o jornalista Martín Rodríguez Pellecer. “O fundador da universidade, Manuel Ayau, conhecido como El Muso, em alusão a Mussolini, se uniu ao projeto fascista anticomunista da MLN. Desde então, a UFM vem formando quadros políticos e acadêmicos para desacreditar o Estado e a justiça social e converter a Guatemala no país que arrecada menos impostos na América Latina (11% em relação ao PIB) e o que menos redistribui”, explica. Foi nessa universidade que Gloria estudou e “se converteu em uma libertarista um tanto menos conservadora que seus professores, uma mistura de neoliberais e Opus Dei. Álvarez se declara ateia e a favor do aborto e, embora tenha se tornado uma estrela da direita latino-americana, na Guatemala é uma referência menor para a direita, não tem base política nem vai ser candidata. Eu a vejo mais como uma enfant terrible libertarista”, diz Martín.
Os libertarians ressurgiram com força nos Estados Unidos depois da crise de 2008 – e ao clamor subsequente pela regulamentação do mercado – e em decorrência da ascensão do democrata Barack Obama ao poder. Pregam a predominância do indivíduo sobre o Estado, a liberdade absoluta do mercado, a defesa irrestrita da propriedade privada. Afirmam que a crise econômica que jogou 50 milhões de pessoas na pobreza não se deveu à falta de regulação do mercado financeiro, mas pela proteção do governo a alguns setores da economia. E rejeitam enfaticamente os programas sociais do governo Obama. No entanto, uma parte significativa dos libertaristas tem se distanciado do tradicionalismo da direita no campo do comportamento, defendendo posições associadas à esquerda, como a defesa da liberação das drogas e a tolerância aos homossexuais, em nome da liberdade do individual. O senador republicano Rand Paul, pré-candidato à presidência, é um de seus representantes mais conhecidos.
“Os libertarians que estão com os conservadores no Tea Party (a corrente radical de direita no Partido Republicano americano) estão em think tanks como o Cato Institute e compõem a direita pós-moderna, representada, por exemplo, por Cameron, na Inglaterra, que modernizou a agenda da redução do estado do bem-estar social”, resume o professor. Ele acha graça quando falo em libertarians brasileiros, seguidores da escola austríaca de economia de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. “A escola austríaca é uma corrente muito minoritária mesmo na academia”, diz. “Quem são esses libertarians? O que temos no Brasil são economistas sofisticados que seguem correntes como a dos novo-clássicos do prêmio Nobel Robert Lucas e outras similares, políticos de direita pouco elaborados como o Ronaldo Caiado (senador do DEM-GO) e essa classe média conservadora que lê Rodrigo Constantino na Veja”, resume.
Caiado e Constantino são participantes veteranos do Fórum da Liberdade em Porto Alegre. A novidade é que os libertarians do Tea Party mostraram-se enfim capazes de se apresentar como a face convidativa da direita para a juventude brasileira.

Vem pra rua, ciudadano

Na véspera do Fórum, no dia 12 de abril, Gloria Álvarez discursou contra o “populismo maldito” vestida com uma camiseta de lantejoulas formando a bandeira do Brasil para cerca de 100 mil pessoas na avenida Paulista, em São Paulo, na segunda rodada de manifestações “Fora Dilma”. Do alto do caminhão do Vem pra Rua, o líder do movimento, Rogério Chequer, a apresentou à multidão como “uma das maiores representantes da batalha contra o populismo do Foro de São Paulo” e se manteve o tempo todo ao seu lado. Gloria, que havia anunciado antecipadamente sua presença nos protestos em uma entrevista no programa de Danilo Gentili no SBT, tinha dado uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, assistida pelo próprio ex-presidente, três dias antes.
Em palestra no Instituto FHC, Gloria fala para o ex-presidente, sentado à sua frente.
Entre os que lideraram os protestos de março e abrilcontra o governo, o movimento de Chequer foi um dos últimos a assumir a bandeira do impeachment, o que lhe valeu um pito público do vetusto Olavo de Carvalho, que o acusou de “paumolice tucana”. O Movimento Brasil Livre, conhecido principalmente através da figura de Kim Kataguiri, assumiu desde o início a bandeira do impeachment e rompeu publicamente com Chequer, divulgando fotos dele ao lado do senador José Serra (PSDB-SP) na campanha de Aécio Neves – tachado de “traidor” pela hesitação em pedir o impeachment da presidente eleita. Voltaram às boas depois que a comissão de senadores liderada por Aécio e Ronaldo Caiado (DEM-GO) fez sua controversa expedição a Caracas.
Caiado, aliás, estava no debate de abertura da edição do Fórum deste ano. Sem a graça irreverente de Glorita, o senador ruralista conservador arrancou aplausos da plateia com frases de efeito contra a corrupção do governo, menções ao “Foro de São Paulo”, pedido de “renúncia” à presidente Dilma e ataques ao BNDES. Curiosamente, as acusações de Caiado foram feitas sob os logotipos da Gerdau e Ipiranga – do grupo Ultra –, que estão entre os maiores tomadores de empréstimos do BNDES segundo os dados levantados pela Folha de S.Paulo. Ambos obtiveram individualmente mais de R$ 1 bilhão de recursos do banco apenas entre 2008 e 2010.
O empresário gaúcho Jorge Gerdau é um dos idealizadores do Fórum da Liberdade, que surgiu em 1988 com a intenção de promover o debate entre diversas correntes de pensamento. Em suas primeiras edições, o Fórum incluiu o ex-presidente Lula, o ex-ministro José Dirceu e o falecido ex-governador Leonel Brizola entre os debatedores, sem prejudicar sua identidade como principal fórum conservador do país.
Foi ali que, em 2006, foi lançado oficialmente o principal think tank da direita no Brasil, o Instituto Millenium. Armínio Fraga (escolhido para ser ministro da Fazenda de Aécio Neves se ele vencesse as eleições) é sua figura mais conhecida no campo econômico. Seus mantenedores são a Gerdau, a editora Abril e a Pottencial Seguradora, uma das empresas de Salim Mattar, dono da locadora de veículos Localiza. A Suzano, o Bank of America Merrill Lynch e o grupo Évora (dos irmãos Ling) também são parceiros. William Ling participou da fundação do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) em 1984, que, formado por jovens líderes empresariais, organiza o Fórum desde a primeira edição; seu irmão, Wiston Ling, é fundador do Instituto Liberdade do Rio Grande do Sul; o filho, Anthony Ling, é ligado ao grupo Estudantes pela Liberdade, que criou o MBL. O empresário do grupo Ultra, Hélio Beltrão, também está entre os fundadores do Millenium, embora tenha o próprio instituto, o Mises Brasil.
A rede de think tanks liberais e libertaristas no Brasil se completa com mais duas entidades: o Instituto Ordem Livre – que realiza seminários para a juventude – e o Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista, do Rio de Janeiro, ligado ao Opus Dei. O jurista Ives Gandra, autor do controverso parecer sobre a existência de base jurídica para o impeachment da presidente Dilma, faz parte de seu conselho.
A exemplo do Millenium, a grande maioria desses institutos foi criada recentemente. A semente original foi o Instituto Liberal, criado em 1983 pelo engenheiro civil carioca Donald Stewart Jr., falecido em 1999. De acordo com a tese de doutorado do historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), “A ditadura dos empreiteiros (1964-1985)”, a Ecisa (Engenharia Comércio e Indústria S.A.), empresa de Stewart Jr., foi uma das maiores empreiteiras durante a ditadura militar e Stewart Jr. se associou à construtora norte-americana Leo A. Daly para construir escolas no Nordestepara a Sudene. A participação de companhias dos EUA nas obras era exigência dos financiamentos da Usaid – a agência de desenvolvimento americana que funcionava como braço da CIA durante as ditaduras latino-americanas.
Donald Stewart Jr. também era um velho amigo de um personagem crucial nessa história, o argentino radicado nos Estados Unidos Alejandro Chafuen, 61 anos, ambos membros da seleta Mont Pelèrin Society, fundada pelo próprio Hayek em 1947 na Suíça e sediada nos Estados Unidos, que reúne os mais fiéis libertarians. El Muso, o fundador da universidade onde estudou Gloria Álvarez, foi o primeiro latino-americano a presidir aMont Pelèrin, e seu atual reitor, Gabriel Calzada, participa da diretoria com a brasileira Margaret Tsé, CEO do Instituto da Liberdade, o suporte ideológico do IEE. O atual presidente da Mont Pelèrin Society é o espanhol Pedro Schwartz Girón, semeador de think tanks vinculados à FAES, a fundação do Partido Popular (PP) presidida por José María Aznar, que promoveu o Parlamento Iberoamericano da Juventude, de onde Gloria Álvarez foi catapultada para a fama. Pedro Schwartz, Alejandro Chafuen e o colombiano Plinio Apuleyo Mendoza, coautor do livro Manual do perfeito idiota latino-americano, um hit da juventude de direita, participaram do painel “América Latina”, no Fórum da Liberdade. Chafuen também participou discretamente dos protestos de 12 de abril em Porto Alegre. Não resistiu, porém, a postar em seu Facebook uma foto em que aparece vestido com a camisa da CBF abraçado ao jovem cientista político Fábio Ostermann, da coordenação do Movimento Brasil Livre – nome que assumiu nas ruas o grupo Estudantes pela Liberdade (EPL).


O gaúcho Ostermann, o mineiro Juliano Torres e o gaúcho Anthony Ling são fundadores do EPL, a versão local do Students for Liberty, uma organização-chave na articulação entre os think tanksconservadores americanos – especialmente os que se definem como libertários – e a juventude “antipopulista” da América Latina. Mr. Chafuen, presidente da Atlas Network desde 1991, é o seu mentor.
A Atlas Network (nome fantasia da Atlas Economic Research Foundation desde 2013) é uma espécie de metathink tank, especializada em fomentar a criação de outras organizações libertaristas no mundo, com recursos obtidos com fundações parceiras nos Estados Unidos e/ou canalizados dos think tanksempresariais locais para a formação de jovens líderes, principalmente na América Latina e Europa oriental. De acordo com o formulário 990, que todas as organizações filantrópicas tem de entregar ao IRS (Receita nos EUA), a receita da Atlas em 2013 foi de US$ 11,459 milhões. Os recursos destinados para atividades fora dos Estados Unidos foram de US$ 6,1 milhões: dos quais US$ 2,8 milhões para a América Central e US$ 595 mil para a América do Sul.
Com exceção do Instituto Fernando Henrique Cardoso, todas as organizações citadas até agora compõem a rede da Atlas Network no Brasil, incluindo o MCN de Gloria Álvarez, a Universidade Francisco Marroquín e o Estudantes pela Liberdade, uma organização que nasceu dentro da Atlas em 2012. Como veremos, além dos recursos citados há projetos bem mais vultosos financiados por outras fundações e executados pela Atlas.

Students For Liberty e o Movimento Brasil Livre


 


Juliano Torres, o diretor executivo do Estudantes pela Liberdade (EPL), foi mais claro sobre a ligação entre o EPL e o Movimento Brasil Livre (MBL), uma marca criada pelo EPL para participar das manifestações de rua sem comprometer as organizações americanas que são impedidas de doar recursos para ativistas políticos pela legislação da receita americana (IRS). “Quando teve os protestos em 2013 pelo Passe Livre, vários membros do Estudantes pela Liberdade queriam participar, só que, como a gente recebe recursos de organizações como a Atlas e a Students for Liberty, por uma questão de imposto de renda lá, eles não podem desenvolver atividades políticas. Então a gente falou: ‘Os membros do EPL podem participar como pessoas físicas, mas não como organização para evitar problemas. Aí a gente resolveu criar uma marca, não era uma organização, era só uma marca para a gente se vender nas manifestações como Movimento Brasil Livre. Então juntou eu, Fábio [Ostermann], juntou o Felipe França, que é de Recife e São Paulo, mais umas quatro, cinco pessoas, criamos o logo, a campanha de Facebook. E aí acabaram as manifestações, acabou o projeto. E a gente estava procurando alguém para assumir, já tinha mais de 10 mil likes na página, panfletos. E aí a gente encontrou o Kim [Kataguiri] e o Renan [Haas], que afinal deram uma guinada incrível no movimento com as passeatas contra a Dilma e coisas do tipo. Inclusive, o Kim é membro da EPL, então ele foi treinado pela EPL também. E boa parte dos organizadores locais são membros do EPL. Eles atuam como integrantes do Movimento Brasil Livre, mas foram treinados pela gente, em cursos de liderança. O Kim, inclusive, vai participar agora de um torneio de pôquer filantrópico que o Students For Liberty organiza em Nova York para arrecadar recursos. Ele vai ser um palestrante. E também na conferência internacional em fevereiro, ele vai ser palestrante”, disse em entrevista por telefone na sexta-feira passada.
Remunerado por seu cargo na EPL, Juliano conta que tem duas reuniões online por semana com a sede americana e que ele e outros brasileiros participam anualmente de uma conferência internacional, com as despesas pagas, e de um encontro de lideranças em Washington. O budget do Estudantes pela Liberdade no Brasil deve alcançar R$ 300 mil este ano. “No primeiro ano, a gente teve mais ou menos R$ 8 mil, o segundo foi para R$ 20 e poucos mil, de 2014 para 2015 cresceu bastante. A gente recebe de outras organizações externas também, como a Atlas. A Atlas, junto com a Students for Liberty, são nossos principais doadores. No Brasil, as principais organizações doadoras são a Friederich Naumann, que é uma organização alemã, que não são autorizados a doar dinheiro, mas pagam despesas para a gente. Então houve um encontro no Sul e no Sudeste, em Porto Alegre e Belo Horizonte. Eles alugaram o hotel, a hospedagem, pagaram a sala do evento, o almoço e o jantar. E tem alguns doadores individuais que fazem doação para a gente.”
A fundação da EPL no Brasil veio depois de Juliano ter participado de um seminário de verão para trinta estudantes patrocinado pela Atlas em Petrópolis, em 2012. “Ali mesmo a gente fez um rascunho, um planejamento e daí, depois, a gente entrou em contato com a Students for Liberty para oficialmente fazer parte da rede”, diz.
Depois disso, ele passou por quase todo tipo de treinamento na Atlas. “Tem um que eles chamam de MBA, tem um treinamento em Nova York também, treinamentos online. A gente recomenda para todas as pessoas que trabalham em posições de mais responsabilidade que passem pelos treinamentos da Atlas também.”
Os resultados obtidos pelos brasileiros têm impressionado a sede nos Estados Unidos. “Em 2004, 2005 tinha uma dez pessoas no Brasil que se identificavam com o movimento libertário. Hoje, dentro da rede global do Students for Liberty, os resultados que a gente tem são muito bons. Uma das maneiras de medir o desempenho das regiões é o número de coordenadores locais. Em todas as regiões, contando a América do Norte, a África, a Europa, a gente tem mais coordenadores que qualquer região separadamente. Nos Estados Unidos, a organização existe há oito anos; na Europa, há quatro; aqui, há três anos. Então, a gente está tendo mais resultado em muito pouco tempo que acaba traduzindo em maior influência na organização.”
Há dois brasileiros no International Board do Students for Liberty (entre dez membros), e o relatório deste ano dedica uma página especialmente às manifestações do MBL no Brasil. A brasileira Elisa Martins, formada em Economia na Universidade de Santa Maria (RS), é a responsável pelos programas internacionais de bolsas de estudo e treinamento de lideranças jovens na Atlas Network.
Os programas são realizados em parceria com outras fundações, principalmente o Cato Institute, a Charles G. Koch Charitable Foundation e o Institute of Human Studies – fundações ligadas à família Koch, uma das mais ricas do mundo. Juntas, as 11 fundações dos Koch despejaram 800 milhões de dólares nas duas últimas décadas na rede americana de fundações conservadoras. Outra parceira importante é a John Templeton Foundation, de outro bilionário americano. Essas fundações têm orçamentos bem maiores do que a Atlas e desenvolvem programas de fellowships em que entram com recursos e a Atlas, com a execução. Um exemplo desses projetos é o financiamento da expansão da Rede Students for Liberty com recursos da John Templeton, fechado em 2014 com mais de US$ 1 milhão de orçamento.
Por isso, embora apareça em terceiro lugar entre as financiadoras do Students for Liberty, a Atlas levanta um volume bem maior de recursos para a organização através de suas parceiras. Todos os maiores doadores do Students for Liberty também são doadores da Atlas. Nem sempre é possível saber a origem do dinheiro, apesar da obrigação legal de publicar os formulários 990 – entregues ao IRS (Receita). As fundações conservadoras americanas escoam dinheiro por uma grande multiplicidade de canais, o que torna impossível, ao final, saber qual a origem inicial do dinheiro que chega a cada um dos receptores.
Além disso, preocupadas com a vigilância que exercem sobre elas projetos como o Transparency Conservative e órgãos de imprensa, que já revelaram uma série de escândalos envolvendo o uso desses recursos para lobbies no Congresso e nos governos estaduais, bem como para causas controversas como a negação do aquecimento global, em 1999 as fundações criaram dois fundos de investimento filantrópico – Donors Trust e Donors Capital Management – que dispensam os doadores de ter o nome exposto em formulários 990. O Donors Trust é o maior doador do Donors Capital Management (e vice-versa). Como se vê no quadro, o primeiro está entre os maiores doadores da Atlas, e o segundo é o maior doador do Students for Liberty. As fundações Koch são as maiores suspeitas de despejar dinheiro nesses fundos.
O relatório 2014-2015 da Students for Liberty mostra uma arrecadação de fundos impressionante: US$ 3,1 milhões comparados a apenas US$ 35,768 mil dólares obtidos em 2008, quando a organização foi fundada. Desses, US$ 1,7 milhão veio de fundações, segundo o relatório que não detalha o volume doado por cada instituição. O Charles Koch Institute consta no relatório da Students for Liberty, mas, segundo o formulário, doa bolsas apenas para estudantes americanos, enquanto a Charles Koch Foundation, que doa bolsas para estudantes em uma série de fundações, não é citada no relatório.  O Institute of Human Studies (IHS) – outra fundação da família Koch – é um dos principais responsáveis pelos programas de Fellowship para estudantes. Só em 2012 foram distribuídos 900 mil dólares em doações de acordo com o formulário entregue ao IRS.
A Atlas é uma das principais parceiras do IHS. O currículo de Fábio Ostermann, por exemplo, coordenador do MBL, diz que ele foi Koch Summer Fellow na Atlas Economic Research Foundation. Ostermann é assessor do deputado Marcel van Hattem (PP-RS), apontado por Kim Kataguiri como o único político a abraçar totalmente as convicções do MBL. O jovem deputado, que foi eleito com doações da Gerdau e do grupo Évora – do pai de Anthony Ling, fundador do EPL –, também participou de cursos na Acton Institute University, a mais religiosa das fundações libertaristas que compõem a rede de fellowship da Atlas e da Koch Foundation. Entre os seus princípios consta o “pecado”, por exemplo, relacionado de maneira singular com a necessidade de reduzir o Estado.

A festa do mate

O Fórum da Liberdade, afinal, se encerrou como as manifestações de rua que o antecederam: aos gritos de “Fora Dilma”, “Fora PT”. O deputado Marcel van Hattem fez uma apresentação exaltada, depois de ter agradecido ao fórum o cargo – “Se eu sou deputado hoje, devo também ao Fórum da Liberdade” – e fez uma interessante distinção entre as manifestações de 2013 – pluripartidária e desorganizada – e as deste ano – “quando tínhamos pauta”.
O programa foi modificado com a chegada de Kim Kataguiri, que não constava como palestrante. Foi abraçado pelos patrocinadores, como Jorge Gerdau e Hélio Beltrão, posou para fotos com diversos fãs e, com o amigo Bene Barbosa, que lançava um livro pela liberação das armas de fogo para qualquer cidadão, foi para o auditório, novamente lotado de estudantes.
Sentadinho no sofá, Kim esperou Van Hattem desfiar as acusações de praxe – contra o Foro de São Paulo, o poder totalitário do PT e “o maior escândalo de corrupção do universo” –, arrancando aplausos a cada frase de efeito. Também despertou entusiasmo mostrando sua identificação com a plateia: “A vanguarda, hoje, não é esquerdista, é liberal. O jovem bem informado vai para as ruas e pede menos Marx, mais Mises. Curte Hayek, não Lênin. Levanta cartazes hashtag ‘Olavo tem razão’”.
Então, Van Hattem saiu do púlpito e, caminhando pelo palco, foi em direção a Kim. “O próximo passo depende de vocês, mas é difícil. O sistema brasileiro é refratário a novas ideias. Hoje mesmo, Kim, o deputado comunista Juliano Roso te chamou de fascista”, disse. E por fim: “Eu só quero concluir dizendo aquilo que as ruas estão dizendo: ‘Fora PT’. Aplausos, gritos. A plateia canta em coro: “Olê, olê, olê, olê, estamos na rua só pra derrubar o PT”.
Foi a deixa para a entrada de Kim. De tênis, andando pelo palco, Kim conclamou “os institutos liberais “a sair da nossa bolha liberal, da nossa bolha libertária, da nossa bolha conservadora e tomar o país.” E afirmou: “Chegou a hora da gente tirar o monopólio da esquerda da juventude. A gente tem que acabar com essa imagem de que quem defende o livre mercado é aquele tiozão de coturno que defende o regime militar. A oposição é a gente. A gente quer privatizar a Petrobras. A gente quer o Estado mínimo. Brasília não vai pautar o povo. É o povo que vai pautar Brasília”.
Três dias depois do Fórum, Kim Kataguiri partia para sua Marcha pela Liberdade em direção a Brasília, com minguada adesão, enquanto Gloria Álvarez  empreendia um périplo que a levaria da Argentina a Venezuela noticiado efusivamente em suas redes sociais. Na Argentina, passou por Buenos Aires e pela cidade de Azul, convidada pela Sociedade Rural de Argentina. Em Tucumán, suas palestras na Universidade Nacional foram organizadas pela Fundación Federalismo y Libertad, que tem em seu conselho internacional a Atlas Foundation, a Heritage Foundation, Cato Institute, o Hispanic American Center for Economic Research, o CEDICE Libertad (Venezuela) e o Instituto Ecuatoriano de Economía Política (Equador).
Todas essas organizações fazem parte da Atlas Network, assim como as outras fundações que encomendaram o passeio de Glorita: Estudiantes pela Libertad (Bolívia e do Equador), o Cedice, na Venezuela, e a Fundación Para El Progresso, no Chile.
O episódio mais interessante de sua viagem, porém, não foi registrado em suas redes sociais, nem mesmo nos jornais do Chile. No dia 23 de abril, ela e a blogueira cubana Yaoni Sanchez, encontraram-se com o ex-presidente conservador Sebastián Piñera depois de terem realizado palestras na Universidade Adolfo Ibañez em Viña del Mar.
O encontro com o ex-presidente – que também é a única foto em que aparecem juntas – foi noticiado pelo twitter do economista Cristián Larroulet, ex-ministro de Piñera com a legenda “O Presidente Piñera com Yoani Sánchez e Gloria Álvarez, dois exemplos de mulheres latino-americanas que lutam pela liberdade”. Larroulet,  é fundador do think tank Libertad y Desarrollo, obviamente parceiro da Atlas Network.
Originalmente publicado na Agência Pública

quinta-feira, 25 de junho de 2015

China e Rússia, Rússia e China: O que pensam uma da outra


25.06.2015 
 
China e Rússia, Rússia e China: O que pensam uma da outra. 22424.jpeg

The Saker: Por favor, apresente-se e explique sua conexão com a China e sua experiência da China.



Jeff J. Brown: Aprendi ao longo dos últimos 61 anos, que desfazer os efeitos da lavagem cerebral exige muito esforço, humildade e coragem pessoal. Inspirei-me na leitura das jornadas de outros, que muito trabalharam até encontrarem a verdade. Desde então, distribuo o que tenho encontrado.

Fui criado em Oklahoma, EUA, nos anos 50s-60s. Perigo vermelho. Comunistas comem crianças. Abrigos antiatômicos. Professores ensinando "Quando virem o clarão, corram e se escondam". O  Sputnik. Corrida espacial. Kennedy (depois se descobriu que foi golpe de Estado). Vietnã. Nixon. Sexo, drogas 'n rock 'n roll. Passava metade do tempo na cidade, metade numa fazenda familiar. Dirigia trator, colhia o que se plantava, limpava bosta dos currais, ajudava ovelhas a parirem cabritinhos às 3h da manhã, frio de enregelar, montava a cavalo, caçava e pescava - e tudo isso marcou minha alma para sempre. Acontece com todos que sujam as mãos e vivem da arte e da ciência da agricultura.

Formei-me na Estadual de Oklahoma (1976) e na Universidade Purdue (1978) em ciências veterinárias, achando que voltaria para casa e viveria da fazenda. Mas em Purdue havia muitos brasileiros que me adotaram e ensinaram-me português, ocasião em que descobri que tenho uma capacidade especial, inata, para aprender línguas (o que acontece sempre mais depressa, se o sujeito estuda muito). Parti para o Brasil, pensando em me converter em plantador de soja. Mas não achei quem me emprestasse dinheiro para o investimento inicial. Em retrospectiva, foi melhor assim. Se tivesse ficado por lá, com certeza estaria até hoje explorando brasileiros, derrubando florestas e destruindo o meio ambiente, ao mesmo tempo em que enriqueceria muito, à custa dos acima referidos. Quanto mais penso, mais me convenço que não é o que eu queria para meu tempo nesse Planeta Terra.

O Brasil aguçou meu apetite por conhecer o mundo. Apresentei-me como voluntário ao Peace Corps, na Tunísia, como agente de treinamento agrícola (1980-82) e aprendi bom árabe, falar, ler e escrever. Essa experiência levou-me para o mercado internacional de produtos agrícolas na África e no Oriente Médio (1982-90). Nesses dez anos, aprendi francês, conheci minha esposa parisiense em 1988 na Argélia, de onde, em 1990 partimos para a China.

Vivemos na China de 1990 a 1997, durante o que chamo "Dias do Caubói Deng no Velho Leste". Aprendi ótimo mandarim e recebi a cidadania francesa. Continuei a trabalhar como vendedor (o que me permitiu viajar muito por grande parte da China rural) e depois construí e gerenciei a primeira padaria McDonald na Terra Central. Nossas duas filhas nasceram na China. Desnecessário dizer que esses sete anos são parte inesquecível da nossa vida. 

Depois, minha esposa e eu tivemos e administramos um negócio de varejo na Normandia, France (1997-2001). E voltamos para Oklahoma, de onde eu saíra há tanto tempo, para viver mais perto dos meus pais. Cheguei aos EUA no primeiro voo (United, de Paris) que pôde entrar no espaço aéreo dos EUA, poucos dias depois do 11/9 (que hoje já se sabe que foi golpe de Estado sob falsa bandeira). Que modo simbólico de voltar para casa, antes de acontecer tudo que depois aconteceria.

Os EUA de onde eu partira e os EUA para os quais voltei eram dois países diferentes. Foi um choque ver o quanto tudo parecia degradado e arruinado, a miséria pulsando logo abaixo do chão, todos tão superficiais e autocentrados, e muito, muito reacionários e isolados. Só comprar-comprar-comprar-eu-eu-eu. Por causa de nossas experiências ecléticas, minha mulher e eu parecíamos seres exóticos, criaturas de outro planeta. Nunca nos encaixamos bem, mas o tempo com os velhos da família foi maravilhoso. Construímos um grande negócio de compra e venda de imóveis e perdemos tudo que algum dia tivemos nesse mundo em 2008, graças à implosão da classe média na operação "Salvem os Grandes Bancos". Os planos que tínhamos de dar aulas nos anos de aposentadoria foram rapidamente antecipados. Começamos a trabalhar em Oklahoma City naquele mesmo ano, dando aulas em escolas urbanas de grupos minoritários.

Em 2010, voltamos para Pequim, para dar aulas em escolas para estrangeiros, e levamos conosco nossa filha menor. Tanto quanto fora deprimente voltar aos EUA em 2001, foi deslumbrante e surpreendente rever a China, depois de 14 anos. Uau! 

Queria tanto partilhar o que vi lá acontecendo à nossa volta, que iniciei um blog, ao mesmo tempo em que me dedicava a extensas pesquisas. Então, parti para minha viagem solo pela China, no verão de 2012, para escrever um diário a ser publicado. Daí resultou meu primeiro livro, 44 Days, cujas viagens são realmente uma metáfora sobre descobrir a China na história e nos eventos atuais, e como tudo isso tem a ver com o Ocidente. 

Também comecei a escrever postados no blog Reflections in Sinoland, que serão reunidos num e-book, a ser lançado no verão de 2015. Minhas experiências com ensino e aprendizado de línguas inspiraram-me a desenvolver um método para ensinar inglês, que acaba de ser publicado, Doctor WriteRead's Treasure Trove to Great English.

Depois que Xi Jinping foi eleito presidente da China, eu vivia, como vivo até hoje, tão impressionado com o homem - que chamo com ironia de Baba Pequim -, que estou escrevendo um romance de ficção histórica, Red Letters - The Diaries of Xi Jinping [Cartas Vermelhas - Os diários de Xi Jinping], planejado para ser lançado como e-book no verão de 2016. Obriga-me a uma quantidade gigantesca de pesquisas, mas estou vivendo o melhor tempo literário da minha vida.

Meu arco pessoal de aprendizado e ilustração sobre como o mundo realmente funciona vinha seguindo uma lenta curva hiperbólica, até que repentinamente tomou direção para cima em passado muito recente. Em 1972, se meu número de alistamento tivesse sido sorteado, eu provavelmente teria partido patrioticamente para o Vietnã. Naquele ano, votei em Richard Nixon, não em George McGovern. Trabalhar e viver com camponeses durante dois anos no Peace Corps abriu meus olhos para como os outros 80% do mundo vivem, bem como os oito anos de viagens pela África e Oriente Médio. 

Trabalhando com agricultura, meu trabalho levou-me para fora das grandes cidades e para o interior de cada país por onde viajei, o que me fez ver a África e o Oriente Médio "reais". Foi educativo humilhante.

Ao mesmo tempo em que via e sentia as desigualdades e as injustiças, eu ainda vivia com pés bem fincados nos mitos da superioridade moral dos EUA, de sua divina perfeição e eterna correção. Só quando retornei aos EUA em 2001 e vivi no Mundo Bush por nove anos é que comecei a perceber a podridão do império. Mas mesmo assim, ainda me agarrava à nobreza do processo "democrático" e ao consenso que a mídia inventa e nunca para de repetir e repetir. Eu ainda acreditava, naquele tempo, que o New York Times e The Economist eram a vanguarda do mais respeitabilíssimo jornalismo.

Foi quanto voltei à China em 2010 que comecei a ter ideia mais clara das coisas. Desde então, consumi milhares de horas de estudo sobre genocídio, impérios, colapso social, guerra, capitalismo, colonialismo, socialismo, comunismo, fascismo, golpes, estado profundo, etc.

Já desistira dos EUA, mas, com dupla nacionalidade francesa-norte-americana, ainda me agarrava à ilusão de que a Europa, com seu socialismo, Carta dos Direitos Humanos da ONU e as lições aprendidas de duas guerras mundiais seria a derradeira esperança para uma recuperação moral do mundo. E foi quando, como um Furacão Katrina ampliado, veio o genocídio que a junta ocidental perpetra na Ucrânia. Acompanhei durante meses com horror mórbido (e continuo a acompanhar) a cara horrenda não só do fascismo norte-americano, mas também do fascismo europeu. Meu mais amargo desgosto, toda a minha desilusão com o meu lar ancestral, a Europa, foram expostos, tristemente, numa coluna que escrevi em setembro de 2014. 

Assim sendo, tudo está hoje bem claro, para mim. O colonialismo ocidental, as revoluções e os golpes dissimulados por trás de falsas bandeiras, e as revoluções coloridas, nada disso nunca parou desde 1492. Os métodos e instrumentos de desestabilização, exploração e extração de recursos foram, apenas, adaptados. O Império, com seus capitalismo, guerra e fascismo, é uma Hidra de três cabeças, e é insaciável.

Há luta titânica pela alma da humanidade, nossa sobrevivência como espécie nesse século 21: o Império Ocidental versus China, Rússia, BRICS, Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e o Movimento dos Não Alinhados (MNA). 

Trata-se de Xi, Putin, Maduro, Castro, Correa, Kirchner, Zuma, Afwerki e todos os centenas de líderes mundiais que o ocidente assassinou ou depôs, versus Obama, Cameron, Hollande, Merkel, Abe e as centenas de sátrapas dos mal-assombrados quartéis do poder imperial.

O mundo precisa de mais um milhão de vozes como The Saker, Pepe Escobar, André Vltchek, Kevin Barrett, Rory Hall, Dave Kranzler, Greanville Post, e os muitos outros autores e jornalistas envolvidos nessa luta mundial pela sobrevivência da humanidade. É uma honra emprestar minha voz, que fala do ponto de vista do povo chinês, que chamo, com ironia, de "Baba Pequim", e dos governantes chineses.


*****

 


The Saker: Sabe-se muito pouco no Ocidente sobre Xi Jinping (Larchmonter445 enviou-me um grosso volume intitulado "On Ruling the State" com 79 artigos políticos redigidos por Xi, mas, que eu saiba, não está traduzido ao inglês). Como você descreveria o homem, suas ideias, seus objetivos? Que tipo de homem é Xi?

Jeff J. Brown: Se você é membro da elite ocidental, é militar a serviço delas e/ou do estado profundo em que aquelas elites reinam, você deve começar a preocupar-se muito, agora que Xi Jinping está no poder (vale o mesmo para Putin, na Rússia). Para começar a compreender Xi, ajuda se se conhece o pai dele, Xi Zhongxun, porque Xi é árvore desse tronco.

Xi Zhongxun foi revolucionário empenhado desde a infância. Esteve preso aos 14 anos, por tentar envenenar uma professora que ele e os colegas consideravam lacaia dos colonialistas estrangeiros. Alistou-se no Partido Comunista da China ainda na prisão, em 1928, com apenas 15 anos. Adolescência auspiciosa.

Xi Zhongxun foi também militar comandante no Exército Popular da China, conhecido por excepcionais capacidades de organização e administração. Foi quem organizou as operações na província Shaanxi, quando da chegada de Mao & Co. ao final da Longa Marcha em 1935. Sem ele, o Exército Popular da China talvez não tivesse conseguido derrotar os fascistas japoneses e do Partido Nacionalista (Kuo-Min-TangKMT) e expulsar os colonialistas ocidentais, rumo à libertação nacional que viria em 1949.

Xi-Pai e a mãe de Xi, Qi Xin, foram inquebrantavelmente comprometidos com o Partido e com a Revolução Comunista chinesa. O casal fez sacrifícios pessoais hercúleos e muito amargos, pela China e pelo Partido. Nunca desistiram, ao longo de toda a vida, de defender o socialismo para as massas chinesas, apesar de terem sido expurgados, de o pai ter sido preso e de a mãe ter sido mandada para uma fazenda de trabalhos forçados (1962-1976).

O pai de Xi sempre foi conciliador e negociador bem sucedido na China Ocidental, antes e depois da libertação em 1949, com tibetanos locais e uigures muçulmanos. Foi o pai de Xi que Deng Xiaoping enviou à Província Guangdong, do outro lado da fronteira de Hong Kong, in 1978, para dissipar o descontentamento que crescia entre os locais, e que estavam atravessando a fronteira, para a colônia britânica, em busca de trabalho e de outro estilo de vida. Foi do pai de Xi - não de Deng - a brilhante ideia de criar pequenas Hong Kongs dentro de Guangdong, onde as massas pudessem trabalhar e realizar seus sonhos.[1] E assim, Shenzhen e as outras Zonas Econômicas Especiais [ing. Special Economic Zones (SEZs)] foram confirmadas pelo Congresso Nacional do Povo, pelo Comitê Central, pelo Politburo e por Deng. Deng & Co. não tinham dinheiro, mas tinham poder político para tornar legais as Zonas Econômicas Especiais de Xi-Pai. O resto é história.

O pai de Xi também foi homem excepcionalmente erudito e culto. A casa onde Xi foi criado era repleta de livros. Xi Jinping foi mandado para o interior do país em 1969, para trabalhar como camponês por sete anos, durante a Revolução Cultural. Xi trabalhou sem sapatos, curvado sobre as sementeiras, aprendeu a viver entre pulgas e percevejos. E aprendeu muito. Chegou lá com caixas cheias dos  livros de seu pai. E leu muito, às vezes à noite, em voz alta sob um lampião de querosene, para camaradas camponeses ainda iletrados.

Hoje, Xi Jinping é provavelmente um dos governantes mais cultos e ilustrados do mundo. Nunca parou de ler e reler clássicos russos, gregos, franceses, alemães, ingleses, espanhóis e norte-americanos (ficção e não ficção), todo o enorme cânon dos trabalhos chineses, e é muito versado nos escritos marxistas-leninistas-maoístas. Entre 1998 e 2002, quando foi governador de Fujian, Xi completou mais uma pós-graduação em Teoria Marxista e Direito. Diz que ler e estudar são suas duas grandes paixões. (...)

Nenhum outro moderno líder chinês, com a única exceção de Mao, jamais soube usar tão bem a comunicação pública, como Xi. Como já disse em entrevistas de rádio e por escrito inúmeras vezes, o ocidente não tem resposta para Xi Jinping (nem para Putin, de fato). 

O mundo já está oficialmente na Era Xi - e com toda a justiça pode-se acrescentar: também na Era Putin. Conto toda essa história, do nascimento de Xi até hoje, emRed Letters - The Diaries of Xi Jinping (incluindo encontros e telefonemas entre Putin e Xi).

The Saker: Nós dois, Larchmonter445 e eu, vemos o novo relacionamento que está sendo construído entre China e Rússia como uma simbiose.Larchmonter445 fala de uma "dupla Hélice" e eu chamo de "simbiose". 

Em minha opinião, essa relação simbiótica entre dois impérios/civilizações/superpotências é evento único na história e, provavelmente, dos mais importantes eventos na história do mundo. Você acha que estamos exagerando a importância do que Putin e Xi puseram em movimento, ou não? Se estamos, como você caracteriza e avalia o tipo de relacionamento que está sendo construído entre Rússia e China?

Jeff J. BrownEmbora claramente venham de backgrounds e civilizações diferentes, Putin e Xi têm muito em comum, filosoficamente, porque muitos dos valores de que falei acima transcendem culturas. A chave é se homens que lideram seus povos escolhem seguir aqueles valores ou não, e o chamado Ocidente claramente não os segue, pelos últimos 500 anos. Acho que é claro que Xi e Putin estão tentado modificar a dinâmica sórdida do colonialismo ocidental e estão trabalhando ombro a ombro para fazer o século 21 ser diferente do passado.

Putin e Xi obviamente gostam um do outro e se respeitam como seres humanos e como governantes, mas os dois países e os respectivos povos também têm muita coisa em comum. Sim, houve genocídios na Rússia e na China, na expansão pela Sibéria e nas bacias dos rios Amarelo e Yangtze River respectivamente, para criarem suas fronteiras "naturais". Mas exceto quando a China colonizou o Vietnã de cerca do ano 100 aC, ao ano 900 dC, nenhum país impôs-se pelo planeta como fizeram a Europa, EUA e Israel, devorando, como gafanhotos, tudo que encontrassem em seus caminhos de colonização e de ocupação.

China e Rússia também têm fundamentos espirituais diferentes do ocidente católico/protestante/judeu, a China com sua religião '3 em 1' e a Rússia com a Igreja Ortodoxa. Sim, a Rússia tem mais sujas por ter colonizado a China, com os ocidentais, durante os séculos 19 e 20, mas os dois países podem solidarizar-se entre eles por terem sido invadidos por mongóis, japoneses e europeus. Os dois têm impactos imensos na filosofia, na literatura, nas artes, na música mundiais. Os dois países falam línguas não latinas, difíceis de aprender para estrangeiros, o que torna mais difíceis as conexões com o resto do mundo. Ironicamente, seguidamente são forçados a usar um idioma europeu imperial para comunicar-se também entre russos e chineses.

Ao apreciar todas essas características partilhadas, é interessante especular sobre o que teria acontecido se Mao e Khrushchev não tivessem tido aquela infame e afinal desastrosa cisão nos anos 1960. Pense nas possibilidades que haveria para o mundo, se os dois se tivessem aliado contra o ocidente, sobretudo hoje, quando já se sabe que Khrushchev foi um Gorbachev precoce, que trabalhou incansavelmente com John Kennedy por trás do palco, pela paz mundial, até o golpe de estado que culminou no assassinato na Praça Dealey, três anos depois.

Por tudo isso, a aliança Putin-Xi, Rússia-China, não é anomalia alguma. Simplesmente ficou congelada por 55 anos.

The Saker: A imprensa-empresa ocidental simplesmente não noticia uma linha sobre a nova Parceria Estratégica Russo-Chinesa (PERC) [orig. Russian Chinese Strategic Partnership (RCSP)] e quando alguma notícia aparece, eles sempre olham a árvore para não ver a floresta, quero dizer, falam de contratos entre os dois países, exercícios militares conjuntos, e até alguns comentários sobre uma "reaproximação" entre os dois países. Mas a vastíssima e dramática implicação de os dois países estrarem na essência se unindo como irmãos xifópagos em termos econômicos e militares jamais é discutida no ocidente. Quanta cobertura há na China sobre essa simbiose? A maioria dos chineses sabem que Xi e Putin basicamente tornaram interdependentes os dois países?

Jeff J. BrownVocê pode falar com qualquer chinês na rua, e eles sabem o que se passa. Rússia bom. EUA maus. Nesse momento, a Europa Ocidental está ganhando algum espaço na mídia. Como Putin & Co., acho que Baba Pequim também espera que a Europa, especialmente a Alemanha, rompa as cadeias daquela escravização demoníaca sob o tacão do Tio Sam, e saia do lado escuro da força. Isso ainda está aberto a discussão, sobretudo depois dos vergonhosos crimes contra a humanidade que se cometem na Ucrânia, agora na Macedônia e na Sérvia, e a operação Gládio, e OTAN e Grécia e serviços secretos EUA/Grã Bretanha/Alemanha (NSA/MI6/BND) - será que esqueci alguém?

Cada vez que Putin e Xi conversam pelo telefone, cada reunião dos ministros de Relações Exteriores, Sergei Lavrov e Wang Yi, cada autoridade russa que vem à China em visita oficial, cada vez que Baba Pequim manda alguém à Rússia para umtête-à-tête, cada vez que um acordo é assinado - todos esses eventos são matéria de primeira página na China. 

O grande desfile da Vitória, em Moscou, dia 9 de maio, pelos setenta anos da Grande Vitória, com Xi sentado à direita de Putin, assistindo o Exército Chinês a marchar pela Praça Vermelha, foi o ápice, em um ano e meio, do trabalho de Baba Pequim implantar na consciência dos chineses que todos são aliados com os russos, na vitória sobre o fascismo. 

Essa nova consciência alcançará píncaros inimagináveis em Pequim, dia 3 de setembro, quando Putin estará ao lado de Xi na Praça da Paz Celestial, e a China comemorará os seus 70 anos, e um novo feriado nacional será criado: "Dia da Vitória na Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa e o Fascismo Mundial".

Ao incluir o nome do Japão na definição do novo feriado nacional, Baba Pequim está praticamente dizendo aos líderes ocidentais que eles não são bem-vindos. Com isso demarcarão o papel único que China e Rússia (não algum 'ocidente') tiveram na história da 2ª Guerra Mundial. De fato não é celebração da Rússia, nem é celebração da China: é a celebração conjunta de uma vitória coletiva de Rússia e China e de seus povos. Não se pode subestimar a importância desses dois desfiles, a exibição massiva de força e solidariedade militares, na cara do Império Ocidental.

The Saker: Não há dúvida possível de que os EUA fizeram todo o possível para isolar e antagonizar a Rússia. Quanto à Europa, mostrou convincentemente à Rússia que aqueles países não passam de colônias norte-americanas, sem opiniões ou políticas próprias. Assim sendo, o redirecionamento russo para o leste, o sul e o norte é bem fácil de explicar. Mas o que motivou a China a unir-se à Rússia nessa relação simbiótica? Os EUA não teriam mais a oferecer à China que a Rússia?

Jeff J. BrownAmbos, governantes russos e chineses conhecem o livro clássico do almirante Alfred Mahan The Influence of Sea Power upon History, 1660-1783 (1890) [A influência do poder marítimo sobre a história]. A tese do almirante é simples: controle o alto mar em torno de Rússia, China e do resto da Eurásia/Oriente Médio, e você controla os recursos humanos e naturais do maior continente do planeta. Então, na Rússia do pós-1990 e com o crescimento econômico meteórico da China, os dois lados viram a luz (na verdade, até Putin ser eleito primeiro-ministro/presidente em 1999-2000, era Nursultan Nazarbaev do Cazaquistão quem estava lendo Sea Power). 

Primeiro separadas, depois juntas, Rússia e China informalmente logo escreveram seu manifesto eurasiano: o Império Ocidental pode controlar os altos mares à nossa volta, mas não pode controlar nossa massa de terra continental, a menos que o deixemos fazê-lo. Assim, organizações chinesas como a Organização de Cooperação de Xangai, Iniciativa Cinturões e Estradas [orig. Belts and Roads Initiative (B&R)], e as russas Organização do Tratado de Segurança Coletiva e União Econômica Eurasiana tornaram-se parte e item da visão e do léxico de toda a Ásia.

Estrangeiros acham engraçado e riem quando digo que os chineses simplesmente não gostam do ocidente. E com os EUA como a cabeça de cobra do Império, Tio Sam caiu para o último lugar da lista. Os chineses compreendem a história muito melhor que os ocidentais. Eles nunca esquecerão o Século de Humilhação, 1840-1949, imposto a eles quando Grã-Bretanha e EUA engajaram-se no que se chama "a mais duradoura e maior empresa criminosa global da história do mundo" - e escravizaram o povo chinês com ópio. Em seguida, com as potências colonialistas europeias, passaram a esvaziar as reservas de prata do país e a roubar todos os recursos da China, produtos agrícolas, minérios, florestas e recursos humanos.

Quando o tráfico de escravos foi abolido nos EUA em 1865, foram os norte-americanos que levaram para a China esse modelo de negócio fabulosamente lucrativo. Na China, navios com bandeira dos EUA sequestraram e escravizaram estimados um milhão de coolies chineses, que foram vendidos em todo o novo mundo. Esse tráfico vergonhoso só parou em 1874.

Durante a 2ª Guerra Mundial, os norte-americanos subornaram o corrupto Chiang Kai-Shek com bilhões em dinheiro e armas (muitas das quais ele roubou ou vendeu aos japoneses), para lutar contra Mao e o Exército Popular da China. Então os EUA cuidaram para que Chiang e sua máfia KMT chegassem em segurança a Taiwan, para fazer ali a China "real" do ocidente.

Desde a libertação em 1949 até o dia de hoje, os EUA tentaram ininterruptamente desestabilizar a derrubar o governo comunista da China, a partir de Taiwan, do Tibete, de Xinjiang, de Burma, do Vietnã, do Japão, da Coreia, e por aí vai.

Do ponto de vista dos chineses, o que haveria no ocidente de que eles pudessem gostar, especialmente nos EUA?

The SakerRecentemente você gravou três programas de rádio sobre China e Rússia (ouvem-se [ing.] em  http://44days.net/?p=2439, http://44days.net/?p=2451 ehttp://44days.net/?p=2493). Você pode por favor resumir o que você crê que os chineses desejam de sua relação com a Rússia no médio e no longo prazo? Mesmo que os países não se fundam para constituir uma confederação, você acredita que a China se interessaria por associar-se à União Eurasiana ou por negociar algum tipo de tratado de fronteiras abertas com a Rússia?

Jeff J. BrownJá me referi acima a OTSC, UEE, OCX e "Cinturões & Rotas". As duas primeiras são inspiradas pela Rússia, as duas últimas, pelos chineses. A primeira de cada par é orientada para segurança e estratégia. A segunda, é de natureza comercial. Durante sua viagem em maio a Moscou, para encontrar-se com Putin, Xi parou para reunir-se com Nazarbaev no Cazaquistão e, na sequência, com o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko. A mídia chinesa disse que todos conversaram sobre sintetizar todas essas organizações numa única organização-mãe. Obviamente, os dois lados querem manter a capacidade de influir, mas tenho confiança de que acharão o ponto de equilíbrio. Eles têm de encontrar. A 6ª Frota dos EUA está estacionada junto às praias do leste de China e Rússia, os EUA estão militarizando o Japão, ameaçando as duas, para nem falar dos mísseis da OTAN todos apontados diretamente da Europa.

Quanto a contatos e relações de fronteira, ferrovias e pontes estão abertas para livre trânsito em toda a fronteira sino-russa. Ainda essa semana, China e Rússia propuseram uma linha de ferrovia de alta velocidade entre a província Jilin (na Mandchúria) e Vladivostok. O maior projeto de engenharia da história humana, o sistema de gasodutos e oleodutos entre Rússia e China, já está sendo construído. Tudo isso continuará a intensificar-se e diversificar-se. Embora eu não creia que venhamos a ter um Tratado de Maastricht, com o livre momento de cidadãos de um país para o outro, antevejo o dia em que Rússia e China terão uma fronteira como Canadá e EUA: nada de visto, mostre o passaporte e passe pela aduana, de um lado para outro. Acho que a Mongólia será também eventualmente incluída no negócio.

The Saker: Rússia e China conduziram exercícios militares sem precedentes, e oficiais chineses ganharam acesso aos postos de comando estratégico da Rússia. Almirantes russos e chineses apresentaram relatórios conjuntos a Xi e Putin durante uma videoconferência organizada pelos militares russos. A Rússia enfrenta agora ameaça direta de EUA/OTAN na Europa, e a China está ameaçada pelos EUA, do Japão, Taiwan, Coreia e na disputa pelas Spratlys. Se a coisa realmente chegar a guerra de tiros entre EUA e Rússia ou entre EUA e China, você acha que Rússia e China se interessarão por envolver-se e apoiar ativamente a parceira, mesmo contra os EUA?

Jeff J. Brown: Excelente pergunta, Saker. Se os EUA atacarem primeiro seja China seja Rússia, será provavelmente a 3ª Guerra Mundial, e a humanidade deixará de funcionar como a conhecemos. Enquanto não for anunciado algum tratado de aliança, não temos como saber o que Rússia e China comprometeram-se secretamente a fazer. É também possível que China e Rússia tenham feito saber aos canais competentes da OTAN alguma coisa como "Se mexerem com um de nós, mexem com os dois." Sempre penso que pode já ter acontecido bem assim, dada a relutância dos EUA em meter o pé no acelerador por conta da Ucrânia e no Mar do Sul da China. China e Rússia juntas nem precisarão disparar um tiro. É só usarem suas tecnologias e truques para neutralizarem os satélites, radares, comunicações, sistemas de computadores etc., da OTAN. Ou qualquer dos dois países pode começar a vender as montanhas de papéis que têm, do Tesouro dos EUA. Verdade é que qualquer dos dois países podem já ter dito a Obama que se ele exagerar, haverá, sim, queima pública daqueles papéis, vendidos a preço de banana. Como disse Napoleão Bonaparte, naquela frase memorável: quem manda no jogo é o credor.

E se a Rússia sentir que é necessário intervir militarmente no Donbass, ou se os norte-americanos conseguem convencer japoneses ou Taiwan a fazer alguma coisa realmente estúpida? Ou o já testado verdadeiro meio para manipular a história: um grande, gordo ataque de falsa bandeira, um de cada lado, para alcançar o resultado desejado? Acho que só descobriremos pela via mais difícil.

Mas pense do seguinte modo: as organizações Cinturões & Rotas/OCX e UEE/OTSC e todas as suas tremendas sinergias e gigantescos potenciais simplesmente derretem, se ou a China ou a Rússia cair ante o Império Ocidental. Se você fosse Putin ou Xi, você ficaria lá parado, e deixaria o século 21 e a humanidade descerem pelo ralo?

Mais uma vez, os dois envolvidos, será a 3ª Guerra Mundial e sabemos como os livros de história serão provavelmente escritos, se sobrar alguém para escrevê-los. O que é mais assustador nessas ponderações é que enquanto Putin e Xi mantém a cabeça no trabalho, cuidando de negócios pelo continente asiático e por todo o planeta, os EUA estão absolutamente enlouquecidos e fora de controle. Tio Sam está como um maluco daqueles cheios de N-metilanfetamina. Tenho calafrios.

The Saker: É bastante óbvio que ambas, China e Rússia precisam de uma desdolarização da economia mundial, mas não querem disparar colapso assim tão brutal que pode abalar a própria economia delas. É especialmente verdade no caso da China, pesadamente investida na economia dos EUA. A Rússia está tentando afastar-se sem tumultos dos mercados centrados no dólar. O que a China está fazendo?  Você acredita que haja planos na China para "des-Walmartizar" a economia chinesa, ou é ainda muito cedo para isso?

Jeff J. BrownEncaremos os fatos, Saker. Quando a economia do dólar norte-americano desabar, será também como um gatilho para a 3ª Guerra mundial. Será cataclismo dessa magnitude. E quando acontecer, Israel sabe que poderá começar a contar os dias até que as portas de Jerusalém mudem de mãos pela 45ª vez, naquela cidade de 5 mil anos de história. Israel está, no mínimo, tão totalmente fora de controle quanto os EUA, se não mais. Suas 200-300 ogivas nucleares jamais declaradas com certeza fariam da Mãe Terra um amontoado de lixo, e o que quer que façam com certeza disparará a 3ª Guerra Mundial, com todos os efeitos deprimentes que a acompanharão.

Por tudo isso, acho que Baba Pequim, assim como todo o resto da humanidade, Rússia inclusive, estão querendo que o castelo financeiro de fumaça, espelhos e cartas chamado 'ocidente' permaneça em pé pelo maior tempo possível. Por quê? Porque como formigas armazenando para o inverno, os BRICS, a CELAC, o MNA e todas das demais coalizões anti-império trabalham febrilmente para organizar, planejar, implementar, encontrar e instituir o maior número possível de entidades, acordos e sistemas, para tentar suavizar o eventual Armageddon econômico. 

Bons exemplos disso são o tratado russo anti-SWIFT, a organização UCRG (anti-três grandes agências de crédito), o novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), o Banco del Sur, a organização PetroCaribe e tantas e tantas outras. Só hoje, a China anunciou que está criando o maior fundo-ouro do mundo ($16,1 bilhões), ao qual já aderiram 60 países, para desenvolver mineração e comércio de ouro simultaneamente - e onde seria? - nas Rotas da Seda, por dentro do continente asiático, que o fantasma do almirante Mahan só pode sonhar com controlar.

Quanto a des-Walmartizar a economia chinesa: ironicamente, para superar a economia baseada em exportações e investimentos, Baba Pequim está fazendo tudo que pode para aumentar o consumo interno. Ambientalmente, com 1,3 bilhão de cidadãos, é pensamento que dá calafrios, se os chineses tentam imitar o modelo de glutoneria dos EUA, superconsumo de porcos Hampshire hog. Mas as palavras chaves do Sonho Chinês de Xi são "sociedade socialista moderadamente próspera". Acredito que Xi, homem formado para a frugalidade e a simplicidade, acha o consumismo norte-americano de "compre até desmaiar" uma espécie de fim de semana em Sodoma e Gomorra. Depois de 35 anos da Era Deng, com aquele materialismo grosseiro, de estilo norte-americano, Xi está definindo uma nova via filosófica para a nação chinesa, com o mantra muito budista de "menos é mais". 

Um jet-ski, uma Harley um SUV gigante na garagem para três carros de sua casa não garantem a ninguém paz e felicidade. Nem se fossem o último modelo da BMW ou de bolsas Hermès.

The Saker: E a Índia, em tudo isso? Parece que na Índia ainda há muita desconfiança sobre os verdadeiros motivos dos chineses, não só sobre o "Tibete Sul" e questões de fronteiras, mas também sobre o apoio dos chineses ao Paquistão e suspeita generalizada de que a China pode vir a usar força militar como fez em 1962 e 1967.  Quais, em sua opinião, os objetivos da China para a Índia? A China ainda tem planos expansionistas na direção da Índia? As desconfianças da Índia têm fundamento? Além do mais, Rússia, China e Índia são países do grupo BRICS. Parece-me que para a Rússia obter acordo de paz amplo e de longo prazo com a Índia seria alto objetivo estratégico, dado que tensões entre China e Índia só beneficiam o Império Norte-americano. Assim também, parece-me que para a China seria muito mais importante alcançar acordo de paz amplo e de longo prazo com a Índia, do que resolver questiúnculas de fronteira e apoiar o Paquistão. Estou correto nesse ponto? Deixei escapar alguma coisa? Você acha que Rússia e os outros países BRICS têm meios para empurrar os dois países China e Índia para longe das atuais relações "frias e cautelosas" e rumo a uma aliança real? Que tipo de relacionamento com a Índia seria ideal para a China?

Jeff J. Brown: A Índia é, de fato, a pergunta de $64 mil dólares, quer dizer, yuan/rublos, não é mesmo? Temos de voltar à história do pós-guerra para conseguir perspectiva adequada. Comparar China e Índia desde então é um estudo de contraste quase total. 

A Índia tornou-se independente em 1947, dois anos antes da China. Foi (como ainda é) a maior democracia 'ocidental'. A independência da China deu início a um dos maiores experimentos na história humana, em termos de revolução política, social e econômica. A Índia foi a Joia da Coroa do Império Britânico, com infraestrutura decente, corpos governantes, instituições e 'sociedade civil', pelo menos entre a elite letrada do país, que ajudara a governar a Índia durante os 300 anos de governo colonial britânico.

Mao herdou um país devastado, restos do inferno do século 19, dependência endêmica de drogas e praticamente nenhuma infraestrutura, exceto a que os britânicos construíram para exportar ópio e embolsar todo o dinheiro. O Raj britânico providenciou para deixar atrás de si um legado de tensões e cisões religiosas, ao dividir o Paquistão e misturar as fronteiras entre Índia, China e Paquistão. Os EUA cuidaram para que os comunistas tivessem sua anti-China, ao ajudarem na fuga de Chiang Kai-Shek e do seu KMT fascista para criar Taiwan. China e Índia, ambos os países, têm território e população gigantes para movimentar a economia.

Antes de Rússia e China porem fim à separação em 1989, Deng Xiaoping anunciou, expressão que ficou famosa, que o século 21 seria da Ásia, e que assim sendo China e Índia teriam de estar juntas para fazê-lo acontecer. Mas não aconteceu bem assim, pelo menos até agora, não é mesmo? 

A Índia teve o que os franceses chamam de revolução "champagne et caviar", na qual a elite colonialista indiana assumiu do ponto que os britânicos deixaram. LordMountbatten que partia, apontou Jawaharlal Nehru como primeiro-ministro, escolha do rei George VI, Mr. Establishment indiano. A hierarquia colonial e todas as suas instituições permaneceram praticamente como estavam, com a diferença que eram administradas pela elite indiana. Esse sistema esclerosado, corrupto, foi mantido como estava.

Muito diferente disso foi a ditadura do proletariado chinês, onde Mao e os comunistas sanearam de cima a baixo toda a casa política, social e econômica. Acabaram-se as elites compradoras coloniais e os capitalistas cães corredores, no processo de conduzir a China do século 19 para o século 20 em apenas uma geração, com o país posicionado de cabeça erguida e orgulhoso de si, sem qualquer ajuda do ocidente. E assim foi feito, com sucesso massivo em todo o território (sobre isso, ouçamhttp://44days.net/?p=2386 (ing.)). A Era Mao transformou a China e melhorou dramaticamente a vida da vasta maioria do povo, enquanto a Índia e sua "democracia ocidental" naufragavam economicamente e politicamente, passando como cocô pelas tripas de um ganso, de um primeiro-ministro a outro.

Foi pílula amarga para os indianos engolirem. E, isso, mesmo antes da Era Deng, com aquele crescimento de dois dígitos e outra revolução econômica e social, como o mundo jamais antes vira e dificilmente voltará a ver. Tudo isso para explicar que não é difícil entender por que os indianos não se sentem bem em comparações com os chineses, e por que desconfiam de tudo. É a natureza humana.

Recentemente, houve novas frustrações, com o trem "Expresso Xi-Putin-China-Rússia voando por lá a velocidades espantosas. A Rússia não fora sempre grande amiga da Índia? Por que, agora, aquele trem... chinês?! Mais uma vez os indianos sentiram-se ultrapassados pelos chineses. Mas quase sempre a coisa reduz-se a disputas por liderança, e a Índia parece que afinal conseguiu um primeiro-ministro que vale o que custa, alguém capaz de não se intimidar ante as barreiras geopolíticas e defender, de fato, os interesses da Índia, Mr. Narendra Modi. 

Com o regimento dos Granadeiros Indianos desfilando ao lado do Exército da Libertação Popular chinês em Moscou dia 9 de maio, com visitas recíprocas dos chefes de estado Xi e Modi, com a visita de estado que Putin fez a Delhi e duas visitas de Modi à Rússia agendadas ainda para esse ano, é possível que, afinal, a visão de Deng possa se concretizar. 

O Império Ocidental ainda é perigoso gigante que quer cavalgar o mundo. Mas acho que Deng pode afinal sorrir, sabendo que seu sonho de China-Índia inclui afinal também a Rússia, irmã socialista da revolução chinesa há tanto tempo afastada.

Mas nada será absolutamente fácil. O Raj britânico deixou intencionalmente um legado terrível nas fronteiras que demarcou entre China e Índia, e também com o Paquistão. China e Índia tiveram guerra de fronteira em 1962; os chineses venceram. Pronto. Mais egos indianos arrepiados. Mas a Índia empatou, retomando Sikkim, em 1967. O fato de que muitas dessas disputas são alimentadas a diferenças religiosas torna tudo ainda mais intratável.

Os indianos acreditam que o mapa da Índia tem o formato da Bharat Mata, a Deusa Mãe da Índia, e qualquer terra dada a China ou Paquistão equivale a remover parte da cabeça da deusa. E nem estou falando de umas poucas ilhas no Rio Amur e tiras de terra entre Mongólia russa, Coreia do Norte e China, para as quais se assinaram tratados formais nos últimos 25 anos, para resolver disputas de fronteira. Modi e Xi têm sobre a mesa 138 mil km2, com budistas tibetanos, muçulmanos paquistaneses e hindus indianos espiando ameaçadoramente pelas costas deles. É um pesadelo. 

Conhecem a mais alta rodovia do planeta, que corre entre China e Paquistão, por cima do Desfiladeiro Khunjerab, descendo dali até o Porto de Gwadar, que os chineses estão administrando? Baba Pequim ofereceu-o primeiro à Índia, que não se interessou, em boa parte por pressão da opinião pública para que não "cedesse" aos chineses na disputa de fronteiras.

Deixando de lado por enquanto o Paquistão, os indianos têm muito mais a perder nisso que os chineses. 

Embora seja difícil para a China ceder em todas as terras que a Índia reivindica, acho que Baba Pequim pode falar ao povo chinês e explicar por que estariam entregando, não tudo, mas mais da metade. Acho que foi o que Modi tinha em mente no discurso que fez em Pequim esse mês, quando pediu que os chineses por favor considerassem a "situação especial" da Índia (na disputa de fronteiras). Pediu publicamente, como cavalheiro, sem se perturbar com os nacionalistas indianos sempre voláteis e aos gritos.

Durante a visita de Modi deram-se passos gigantescos. Não havia qualquer contato nem diplomático nem militar entre China e Índia, desde as guerras de 1962 e 1967, sobre essas questões, apenas gritos e ameaças dos dois lados, seguidos de ocasionais escaramuças. Agora, já há telefones vermelhos instalados em Pequim e Delhi. Haverá reuniões de generais, ao longo da fronteira, para discutir diferenças mais prementes. E, o mais importante, haverá discussões diplomáticas de alto nível a cada seis meses, especificamente pautadas para buscar soluções para as questões de fronteira. O Império britânico foi gênio demoníaco. Foram longos e destrutivos 50 anos.

A disputa de fronteira Índia-China é o elo mais gravemente fraco numa possível aliança entre Rússia, China e Índia. A Rússia, com suas tradicionais calorosas relações com a Índia, já sinalizou que está disposta a trabalhar como intermediária. Esperemos que esses três países mostrem que o consenso Washington-Londres-Paris-Tóquio sempre esteve errado. 

Uma corrente tripla firmemente trançada de China, Rússia e Índia pode deter o Império Ocidental. Ponha aí também o Irã, e é muito provável que Tio Sam até se interesse por sentar para conversar.

The Saker: Há boatos e especulações sobre uma nova moeda conjunta para substituir o dólar. Alguns falam de uma moeda rublo-yuan, outros de uma moeda "BRICS", possivelmente de volta ao ouro. Esses rumores são reforçados pelo fato de que ambas, Rússia e China, andaram e provavelmente continuam a comprar todo o ouro que podiam. Há apoio na China para essa "cesta de moedas BRICS com lastro-ouro"?

Jeff J. Brown: China e Rússia são os maiores mineradores de ouro do mundo. Estão comprando ouro a velocidades prodigiosas (mas não voltei a verificar as compras da Rússia, depois que foi jogado o gambito petróleo versus ouro). Não é segredo que a China quer ter ouro equivalente às (supostas) 8.500 toneladas métricas dos EUA. As reservas de ouro da China são segredo de estado, mas estima-se que Baba Pequim conta com cerca de 3.500 toneladas métricas, talvez um pouco mais. Em breve, ainda nesse verão, a China terá de declarar o montante de suas reservas em ouro, para que o renminbi seja incluído entre as moedas da cesta do FMI que têm special drawing rights (SDR). Acho que gostarão de poder declarar reservas superiores às do #2, Alemanha, que tem oficialmente 3.400 toneladas métricas (embora não haja Banco Federal Alemão, Bundesbank, que consiga arrancá-las dos cofres norte-americanos, que fazem o diabo para não liberá-las). 

Fala-se também do "Brisco", uma moeda dos BRICS. O Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS pode ajudar a tornar realidade essa visão. O "Brisco" poria Rússia e China juntas para comércio e financiamento, ao lado de Índia, Brasil e África do Sul. Parece que a Rússia acaba de convidar a Grécia a unir-se também aos países BRICS, e não o teria feito sem consulta aos demais membros do grupo.

O comércio yuan-rublos crescerá exponencialmente, quando gás e petróleo começarem a circular em 2018, com o CRIFT (o acordo russo anti-SWIFT) e a organização russa UCRG (anti-três grandes agências de crédito) fumegando a pleno vapor. Mas não acho que Rússia e China antevejam alguma moeda binacional tipo "Ruyuan". Para isso, não há suficiente massa crítica. O "Brisco" parece muito mais fungível e internacional.

The Saker: Para encerrar: que tipo de futuro você vê para a China nas próximas décadas? Para onde o país caminha e que tipo de papel você acha que a China vê para ela mesma, no mundo futuro?

Jeff J. BrownPor centenas de anos a China teve a maior economia do mundo. Afinal, em 1872, no fundo do poço do vício do ópio, do tráfico de escravos asiáticos ("coolie") e do colonialismo de predação, o país caiu, do pico onde vivera por tanto tempo, ante o Império Norte-americano colonizador de ocupação. Quero dizer: a China é país habituado à grandeza. Ter-se tornado ano passado a maior economia do mundo em Paridade de Poder de Compra [orig. Purchasing Power Parity (PPP)] soa natural por aqui, e o Século da Humilhação foi simplesmente um pico negativo que não se repetirá.

A China tinha a maior frota naval do planeta 200-300 anos antes da Europa; tinha a pólvora e inventou as armas de fogo. Velejaram o quanto quiseram pelas costas da Ásia, África e Oriente Médio e até o arquipélago indonésio, muito antes de Cristóvão Colombo. Diferente do Ocidente, os chineses só queriam uma coisa: negócios comerciais de tipo ganha-ganha e trocas culturais. Diferente do Vietnã, a China nunca teve ambições imperiais, nem ânsia de hegemonia e de controle sobre os recursos do mundo, nem jamais escravizou povos nativos proprietários daqueles recursos. Para a China, sempre foi "Vamos fazer negócios". 

A diplomacia "ganha-ganha" de Xi não é conversa fiada. Baba Pequim faz o que diz. Xi e Li Keqiang (premiê chinês) estão viajando pelo planeta, assinando bilhões e bilhões de acordos de comércio bilateral e regional, negócios de energia, de aeroespaço, de infraestrutura, culturais, educacionais e científicos, tudo em altíssima velocidade. Mas historicamente, isso é o que os chineses sempre fizeram com o mundo exterior, ao longo dos últimos três mil anos: Cinturões Marítimos e Rotas da Seda.

Fato é , Saker, que goste o ocidente ou não, o leão oriental adormecido de Napoleão está de volta à sua melhor forma histórica. O ocidente tem duas escolhas: sentar à mesa de negociações com os BRICS ou fazer sumir no apagão nuclear esse nosso pequeno planeta azul. O Império é tão corrupto, tão 'do mal' que, sinceramente, tendo a temer que se realize esse segundo cenário. Mas, ao mesmo tempo, sou eterno otimista. Cabe esperar que apareça algum super-herói, algum Vasili Arkhipov ou Stanislav Petrov norte-americanos ("os russos que salvaram o mundo, de uma guerra atômica") que de algum modo consigam neutralizam as ações ensandecidas do estado profundo do Estado-maior das Forças Armadas Conjuntas dos EUA/CIA/Wall Street  que governa os EUA desde a 2ª Guerra Mundial, e resgatem a humanidade da beira do abismo.

Seja lá como for, bem-vindos à Era Xi e à Era Putin - e, com os dedos cruzados - à Era Modi também. 

Saudações cá da China, de dentro da barriga da Besta do Novo Século.

 

Entrevista: The Saker entrevista Jeff Brown
26/5/2015, in The Vineyard of the Saker e Reflections on Sinoland

 

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