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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

REFORMA PARTIDÁRIA E CLÁUSULA DE BARREIRA

 Artigo de 5 dez. 2006
       

REFORMA PARTIDÁRIA E CLÁUSULA DE BARREIRA

Terminou junto com as eleições de 1º de outubro a ilusão de que as draconianas cláusulas de barreira da legislação dos partidos políticos e eleitoral (são pelo menos três barreiras) organizariam o quadro político partidário brasileiro. Logo após a proclamação dos resultados pela Justiça Eleitoral, vários partidos apressaram-se a anunciar fusões entre si, criando novas siglas, e contabilizando na soma dos resultados a superação do mínimo de 5% dos votos nacionais para a Câmara Federal e ainda 2% dessa eleição em pelo menos nove Estados.

Assim, em medida de ocasião, aos sete partidos que venceram as barreiras na eleição, se juntaram um Partido da República, resultantes da fusão do PL e PRONA. PPS, PMN e PHS se juntaram numa Mobilização Democrática, que nem nome de partido tem. PTB e PAN também se fundiram. Mesmo respeitando a decisão que tomaram, é preciso anotar que a pretensão da lei partidária revelou-se pura bobagem, e repete o erro da época da ditadura militar, quando, em 1965, sob o tacão do AI-2, os algozes da democracia pensavam ser possível extinguir e criar partidos políticos por força de lei.
Contrariando a lógica da restrição à democracia, outros quatro partidos ameaçados pela barreira de 5%, por seus perfis programáticos, trajetória histórica e identidade a preservar, resolveram não seguir o caminho das fusões e incorporações. PCdoB, PV, PSOL e PRB, aos quais não se pode colar a pecha de siglas de aluguel, realizaram no último dia 29 um ato público em Brasília, com a presença do Presidente em exercício, o vice José Alencar, que é filiado ao PRB. Ali bradaram que não aceitam ser varridos do cenário político e que lutarão em todos os terrenos para manter as agremiações. Há esperanças de que o Supremo Tribunal Federal dará solução democrática ao imbróglio gerado pela lei defeituosa, pois há duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, formuladas desde 1996, a serem julgadas, talvez já nesse início de dezembro. Além disso, são intensas as articulações políticas no Congresso Nacional, em busca de saída de cunho democrático para a aberração jurídica contida na lei partidária. Mobilizações populares também não estão descartadas.
Nunca é demais lembrar que esses partidos vítimas da barreira dos 5%, com seus Deputados eleitos, já venceram outros obstáculos legais, desde à obtenção do apoio de centenas de milhares de eleitores para obter registro definitivo no TSE, passando pela superação do quociente eleitoral em cada Estado. E há ainda uma realidade que emergiu das urnas de 2006 e não pode ser desconhecida: em 1º de outubro, o PSOL de Heloísa Helena recebeu mais de 6% da votação para Presidente da República; o PCdoB foi o 5º partido mais votado na eleição para Senador, conquistando mais de 6,3 milhões de votos, e atingindo a marca de 7,5% dos votos para o Senado.  O PRB tem entre o seus filiados nada menos que o vice-Presidente da República.
Mas a lei partidária foi feita de maneira a não enxergar essa realidade multifacética, pois foi adotada no Brasil como cópia malfeita da norma alemã, onde a barreira de 5% se refere à única eleição nacional que ocorre naquela República parlamentarista unicameral, onde não existe Senado. Como desconhecer que no Brasil são três as eleições nacionais: Presidência da República, Senado e Câmara dos Deputados?  Como pretender medir o desempenho nacional dos partidos apenas pela eleição à Câmara Federal?  Como justificar que um partido possa eleger o Presidente, e ao mesmo tempo, ser impedido de ter funcionamento parlamentar? Ante a total falta de coerência e consistência da lei, só mesmo os interesses particularistas, de viés discricionário, que visam manter restrições e controles antidemocráticos sobre a soberania popular, podem explicar a aberração jurídica produzida pela cláusula de barreira. Esse objetivo se coaduna com o ideário neoliberal que aportou em nosso país nos anos 90, com amarga receita de corte nas liberdades, nos direitos sociais, trabalhistas e na organização partidária.
Esse retrocesso legislativo, que quer cassar direitos das minorias, ocorreu apesar da Carta Magna de 1988 ter como um dos princípios norteadores o da igualdade, inscrito no artigo 5º. E o Congresso Nacional, ao aprovar a legislação infraconstitucional veio, em cascata, promovendo grave ruptura com esse princípio da isonomia legal, ao estabelecer privilégios para os partidos que detêm as maiores bancadas no parlamento federal, que são justamente aqueles que reúnem maioria para aprovar a lei em benefício próprio, em detrimento dos demais partidos.
Esse é o ponto central da controvérsia, pois a igualdade de todos há que ser entendida em seu sentido formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei, e também em seu conteúdo material, que é a igualdade de todos na lei, consoante as melhores doutrinas. Assim, o princípio constitucional tem como destinatário não só o aplicador da lei, o Poder Judiciário, que cuida da aplicação da lei para todos depois que ela foi aprovada. Antes disso, o fundamento constitucional se impõe, principalmente, ao legislador, não assistindo ao Legislativo editar leis desprovidas de necessário conteúdo generalizante quanto ao alcance da norma. Assim, a igualdade há de ser observada na própria elaboração da lei, seu texto e conteúdo deve expressar essa igualdade de que trata a Constituição. Se isso não ocorre, como não ocorreu com edição da Lei dos Partidos, no Estado de Direito, os Tribunais devem expurgar do ordenamento jurídico as leis que se desviam da Constituição, cujos dispositivos contrariem a Lei Maior. A lei partidária atual infringe, de conseqüência, o direito de chance, que deriva do direito constitucional de igualdade, e que estabelece que deve haver condições razoáveis de igualdade entre os partidos para concorrer na disputa dos votos. Esse, portanto, é um dos pilares fundamentais que podem motivar a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira.
Na esfera política, o Presidente Lula acerta em cheio quando inclui na agenda do início de 2007 o tema da reforma política, decerto que por compreender que as insuficiências e impropriedades do atual ordenamento legal sobre os partidos e as eleições não organizam o cenário partidário nacional, não conferem as condições de estabilidade política e governabilidade necessárias para um bom funcionamento das relações entre o Executivo e o Congresso Nacional. È de se lembrar ainda que a nossa República possui uma Constituição híbrida, que mescla institutos tanto do presidencialismo quanto do sistema parlamentarista, o que faz avultar a necessidade de entendimento entre os dois Poderes, sob pena de paralisia do funcionamento do Estado brasileiro.  Portanto, o aprimoramento da democracia em nosso país não pode prescindir de uma ampla reforma política de sentido democrático e pluripartidário, onde a fidelidade partidária, a coibição efetiva da prevalência do poder econômico e dos candidatos endinheirados, o fortalecimento das agremiações partidárias, as condições razoáveis de igualdade entre as legendas na disputa do voto, entre outras matérias, se tornem uma realidade.

Como se pode perceber, a cláusula de barreira de 5% está na contramão da história, representa grave retrocesso à plenitude democrática, quer amputar e invalidar direitos constitucionais como o da igualdade, o da liberdade de organização partidária e o de liberdade de expressão, entre outros. Além de pretender restringir o funcionamento parlamentar - a legalidade plena dos partidos, pode-se dizer -, a legislação questionada perante o Supremo Tribunal Federal impõe inaceitáveis regras para a distribuição de direitos entre os partidos, principalmente o horário gratuito de rádio e tv e os recursos do Fundo Partidário, com se vai aqui demonstrar. 

Lei Robin Hood às avessas
           
Se hoje a aplicação da norma já desrespeita o princípio constitucional da isonomia, ou princípio da igualdade, inserto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a partir da vigência plena da cláusula de 5%, prevista para 2007, a norma legal virá a se constituir definitivamente em uma autêntica lei Robin Hood às avessas, que tira direitos dos partidos de pequenas bancadas para dar aos partidos de bancadas maiores! A desproporção e caráter excludente da lei partidária se agravará ainda mais, pois apenas 1% do Fundo Partidário terá distribuição igualitária entre todos os partidos, ao passo em que os tais partidos que a lei sub judice quer tratar como de 1ª classe rateariam com exclusividade entre si os demais 99% dos recursos públicos.
            Os dados do próprio TSE, que organizamos na tabela abaixo (percentual de votação dos partidos na eleição de 2002 versus percentual de recursos distribuído aos partidos) comprovam materialmente que a Lei dos partidos Políticos conflita com princípio da isonomia legal, ao estabelecer privilégios para os partidos que detêm as maiores bancadas no parlamento federal, justamente aqueles partidos que reuniam maioria e, em 1995, aprovaram uma lei em benefício próprio, prejudicando os demais partidos e contaminando com casuísmo a democracia brasileira.
            Veja-se, na tabela abaixo, que a partir da 9ª posição no ranking eleitoral, os partidos vêm recebendo quotas do Fundo Partidário em patamar inferior ao percentual de votos obtidos na eleição imediatamente anterior. Há casos de receberem 20 vezes menos que os votos conquistados nas urnas. Enquanto isso, os nove partidos detentores das maiores bancadas, todos eles, sem exceção, recebem recursos públicos em percentual acima da votação que o povo lhes conferiu. Isso vem ocorrendo desde 1996, e deriva de regra viciada por inconstitucionalidade – os dispositivos da Lei dos Partidos - que se relacionam com a cláusula de desempenho, ou de barreira.
            Constata-se, portanto, que a norma legal não guarda sequer uma lógica interna, nem mesmo respeita um parâmetro que seria o de distribuir direitos aos partidos de acordo com a soberana manifestação das urnas. Com a aplicação da fórmula prevista para 2007, os partidos de maiores bancadas receberão 100 vezes mais recursos públicos que os pequenos. Em respeito à própria Constituição, em atenção ao princípio da isonomia e à garantia do direito de chance, é preciso encontrar uma solução que garanta que pelo menos uma parte considerável dos recursos seja repartida por igual entre todos os partidos, de maneira a aproximar o percentual de votos colhidos nas urnas de 2006 com a fração dos recursos a serem recebidos em 2007.
TV e rádio: 4 minutos contra 2 horas
Essa lógica escorchante também se repete no quesito distribuição do horário gratuito de rádio e tv, no chamado “direito de antena”. Enquanto alguns poucos partidos (os que ultrapassaram os 5% dos votos) terão um tempo total de duas horas por ano para a sua divulgação, distribuídas em redes nacionais e estaduais, além das inserções previstas no malfadado  artigo 49 da Lei dos Partidos, aos demais partidos restará uma migalha de dois minutos em cadeia nacional semestral, e só. A conta fecha com a inevitável conclusão: um partido “grande” terá 3.000% de tempo a mais que um de pequena bancada, o que desrespeita mais uma vez o direito de chance.
Note-se ainda que esse horário gratuito destina-se à difusão do programa do partido, das atividades congressuais, ou à divulgação do posicionamento partidário frente a temas político-comunitários. Consagra a lei, dessa forma, uma premissa falsa: a de que alguns partidos têm mais a dizer que outros. Também nesse ítem, mais uma vez a lei ordinária afastou-se do princípio constitucional da igualdade, e fere de morte o direito de chance, em que alguns partidos, garroteados pelas amarras da barreira, concorrem em situação de absurda desigualdade na busca do apoio popular. Também na Lei Eleitoral, a 9.504/95, a regra de distribuição do tempo para a campanha eleitoral é excludente e discriminatória, segue a equação perversa do privilégio aos partidos detentores das maiores bancadas, condenando vários partidos de antemão ao insucesso eleitoral ou a resultados limitados, mal podem dar um boa noite aos eleitores, em face dos míseros segundos de que dispõem na campanha.
 O Brasil precisa de aperfeiçoamento da atual experiência de democracia. Entre 1985 e 1995, no que respeita ao processo eleitoral e à estruturação partidária, houve mais liberdade política que sob a égide da atual legislação, que repôs parte do entulho autoritário que os ventos de 85 haviam varrido. E esse aperfeiçoamento da democracia só se fará com a ampliação da liberdade, nunca com a sua restrição.  Convém lembrar ainda que nem mesmo sob a ditadura militar prevaleceu a cláusula de barreira de 5%, que existia naquela época, sendo suspensa a sua aplicação, via de Emenda Constitucional aprovada em 1978, o que permitiu que os deputados eleitos em 1982 pelos partidos recém-criados (PT, PDT e PTB) fossem empossados.
 Um quadro partidário mais estável, com partidos de caráter mais permanente, com programas e estruturas consolidadas, poderá surgir desde que a Reforma Política de 2007 aprove a fidelidade partidária, aquela de verdade, em que se o eleito deixar o partido, sai só com a roupa do corpo, só a pessoa física, deixando na agremiação o mandato. Acrescendo a isso o financiamento público de campanha, o voto nas listas partidárias preordenadas, e quem sabe um aumento do prazo mínimo de filiação para 2 ou 3 anos. Com tais institutos aprovados, não se poderia mais falar em partidos de aluguel, que aliás, só podem existir se tiver quem os alugue. E o que se tem observado é que, sempre nos anos posteriores às eleições, os maiores partidos tradicionais têm engordado suas bancadas, com a adesão de eleitos oriundos de partidos menores.  Se há comportamento reprovável de alguns partidos chamados de aluguel, a causa do problema vem de cima, justamente dos chamados partidos de maiores bancadas, que querem crescer sempre mais, ainda que pela via da cooptação.  

Quanto ao número de partidos, o Brasil, com mais de 120 milhões de eleitores, conta com 25 agremiações. E se todos vão manter-se e consolidar-se, só a soberania das urnas poderá decretar, à medida em que amadureça a experiência democrática atual, ainda muito recente, pois a  imensa maioria dos brasileiros votaram apenas teve oportunidade de participar de cinco eleições presidenciais, a primeira delas em 1989. Enquanto isso,  registramos que na Espanha surgiram mais de 160 partidos após o fim da ditadura exercida pelo Generalíssimo Franco, em 1975. Podemos concluir que é evidentemente excessiva a preocupação manifestada pelas elites políticas, após a democratização em 1985, de se  controlar o número de partidos no Brasil.  
Em conclusão, há ainda longo caminho a percorrer no aperfeiçoamento da experiência democrática atual. Faz-se necessário varrer do ordenamento jurídico eleitoral e partidário esses dispositivos que desvirtuam a lei e a caracterizam como lex ad persona, a lei com endereço certo, onde ausente a generalidade normativa, que destina-se não ao conjunto dos partidos, mas sim a beneficiar aqueles aos quais interessam certos fatos passados – a eleição de grande bancada federal no pleito imediatamente anterior. A permanência desses preceitos casuísticos, feitos para o momento e para pessoas determinadas, fragiliza e restringe o processo democrático, salpica de nódoas a ainda tenra experiência democrática atual, de pouco mais de vinte anos, e impõe aos verdadeiros democratas a tarefa de novamente lutar para remover o entulho autoritário que foi reposto.
____________________________

Luiz Carlos Orro de Freitas, consultor jurídico legislativo em Goiânia e advogado  especializado em Políticas Públicas (UFG), é membro do Comitê Central do PCdoB e autor de O Difícil Caminho da Democracia: Crítica da Legislação Eleitoral e Partidária do pós-85 (publicado no site jurídico jusnavigandi - http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6142).

DISTRIBUIÇÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO x VOTAÇÃO PERCENTUAL DOS PARTIDOS
Tabela comparativa

Fonte: CEOF/SA/TSE/Eleições 2002
1: Partidos com registro no TSE
2: Fundo Partidário: apenas Dotação Orçamentária/2005 (Emitido em 28/12/2005)
3: Percentual dos  Recursos do  Fundo Partidário distribuído a cada partido
4: Eleição para a Câmara dos Deputados - 2002  ( percentual de votos)
              1                                       2                                    3                            4
PARTIDO
Dotação Orçamentária
2005
R$ 110.530.140,00
VALOR RECEBIDO (R$)


% do
FUNDO PARTIDÁRIO recebido


% VOTOS 2002 p/
Câmara Federal

PT
22.439.976,92
20,30
18,38
PSDB
17.486.186,61
15,82
14,32
PFL
16.177.843,48
14,64
13,37
PMDB
16.313.192,56
14,76
13,35
PP
9.560.132,98
8,65
7,81
PDT
6.278.894,94
5,68
5,12
PTB
6.308.579,05
5,71
4,63
PSB
6.465.602,28
5,85
5,27
PL
6.271.789,83
5,67
4,32
PPS
1.073.810,46
0,97
3,06
PC do B
798.433,91
0,72
2,25
PV
538.672,60
0,49
1,35
PRONA
40.014,81
0,04
2,06
PSC
40.014,81
0,04
0,58
PHS
40.014,81
0,04
0,34
PSDC
40.014,81
0,04
0,22
PSTU
36.136,99
0,03
0,18
PMN
22.471,91
0,02
0,32
PCO
25.652,41
0,02
0,03
PRTB
21.774,59
0,02
0,35
PMR
11.391,14
0,01
-x-x-
PSOL
8.109,51
0,01
-x-x-
PTC
8.109,51
0,01
0,09
PAN
5.256,79
0,00
0,14
PCB
2.523,11
0,00
0,05
PRP
2.523,11
0,00
0,29
PT do B
0,00
0,00
0,19
PTN
0,00
0,00
0,14
PSL
0,00
0,00
0,47

* O Fundo Partidário ainda distribuiu em 2005 mais R$ 12.569.963,00 referentes às multas eleitorais. Os percentuais para cada partido são praticamente os mesmos.
** O percentual de recursos distribuído a cada partido é distorcido pela regra contida na Lei 9.096, artigo 41 e incisos. A distorção já é gritante agora, antes da vigência plena da barreira de 5%, quando a distribuição dos recursos se faz pela seguinte regra: 1% dos recursos distribuído a todos os partidos; 29% distribuídos aos partidos que atingiram o mínimo de 1% da votação nacional à Câmara e elegeram pelo menos 5 Deputados Federais (regra de transição do art. 57, que vence em 2006); e 70% distribuídos apenas aos partidos que ultrapassaram os 5% 

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