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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Para enfrentar a direita, só os "jacobinos" (mas onde estão eles?)


Carta Maior
20/01/2015 - Copyleft

Para enfrentar a direita, só os "jacobinos" (mas onde estão eles?)

Não está na hora de revigorar a verdadeira Esquerda, aquela Iluminista, saintsimoniana, revolucionária? Onde estão os 'jacobinos'. 

Marcos Dantas



Marcos Dantas
Gongashan / Flickr

O terrível ato assassino contra a redação do Charlie Hebdo, ceifando a vida de 12 artistas e jornalistas ligados pelas ideias e pela biografia a posições de Esquerda, foi um crime cometido em nome de uma religião. No entanto, não poucas análises à Esquerda buscam encaixá-lo nos paradigmas usuais do debate político, acusando, por exemplo, um possível fortalecimento da "direita"; denunciando-o como conseqüência das "políticas neoliberais" ou como reação à "agressão imperialista" aos países árabes; esforçando-se para entendê-lo no contexto de um difícil arranjo entre a "liberdade de expressão" ou "respeito às religiões"; entre outras pautas correntes. Não se dão conta que enfrentamos, não de agora, um profundo impasse civilizatório que análises do tipo "a culpa é do Bush", ou da Merkel, ou da Thatcher, ou do Aiatolá ou de seja quem for, pouco ajuda a esclarecer.
 
Artigo assinado por Gonzalo Frasca, publicado em CNN Español, sob o título "O humor ofensivo de Charlie Hebdo era mesmo necessário?", nos aponta o caminho para começar a entender o problema. Para Frasca, "estamos em um momento de transição no Ocidente entre a hegemonia cultural francesa e a estadunidense". A cultura francesa é aquela do Iluminismo, da universalidade da razão humana, da livre expressão do pensamento, da laicidade do Estado. Nessa cultura, formaram-se tanto os "girondinos" quanto os "jacobinos", tanto conservadores quanto liberais, tanto os reacionários quanto os revolucionários, isto é, tanto os representantes políticos e culturais da grande burguesia, dos financistas, de boa parte da classe média profissional, como os representantes políticos e culturais dos trabalhadores, de parte da pequena burguesia, da baixa classe média. Uns e outros, na dialética das suas contradições, vêm construindo a nossa Civilização há 200 ou mesmo 300 anos.
 
Por maiores que fossem as diferenças políticas entre as muitas tendências que atravessam, conectam ou defrontam esses campos aqui apenas esquematicamente recortados, elas se baseiam em alguns pressupostos introvertidos por nós todos e nós todas ao longo desses últimos 300 anos, dentre estes o primado das leis dos homens para a organização da vida pública, sobre qualquer lei de Deus. Religião é assunto da esfera privada. Admita-se que as pessoas podem ser livres para praticá-la. A lei civil ou secular deverá até dar garantia ao livre culto religioso, mas jamais silenciará os críticos desse culto mesmo. Já houve uma época, no Ocidente, quando debater o culto religioso poderia levar alguém à fogueira. Esta época estava há séculos superada em qualquer sociedade civilizada. É a volta a esta época, com pedras e forcas, ou kalashnikovs, que pregam os talibãs e similares. Só eles? Não. Na Arábia Saudita, no Paquistão, no Irã, entre outros países, as leis punem, com chicotadas ou morte, a "blasfêmia", entendida como "ofensa" a uma específica religião, não a qualquer religião (http://tinyurl.com/o484s8q). Rejeitam e querem revogar uma das maiores conquistas, entre outras, do Iluminismo Ocidental: criticar a religião é um direito tão livre quanto o de praticá-la.
 
Ocorreu que, desde as últimas décadas do século passado, os Estados Unidos tomaram em suas mãos a "tocha ideológica e cultural do planeta", escreveu, infelizmente com razão, Gonzalo Frasca. O discurso desta cultura "proclama a coexistência pacífica, a não ofensa ao vizinho assim esperando viver-se em paz" – isto é, cuida ele de lembrar, este é o discurso ideológico, "não o que faz o governo dos Estados Unidos"... bem lembrado! "O que chamamos politicamente correto", prossegue, "é uma estratégia que os Estados Unidos tiveram que empregar para lidar com sua diversidade e seus conflitos raciais internos e que agora propõem como receita para a convivência em um mundo que se globalizou num só golpe".  Por esta linha de raciocínio, o Charlie  teria sido culpado da própria violência que sofreu, assim como uma mulher vestida provocantemente seria culpada de seu estupro – o argumento (denunciando seu absurdo) é de Frasca.
 
A alternativa a uma tal lógica circularmente discricionária e discriminatória que alguém já apelidou "ideologia californiana", seria insistir na razão comunicativa. A razão não tem religião, não tem raça, não tem sexo. Felizmente, todo e qualquer ser humano pode ser dotado de razão e educado para a razão. Numa sociedade de classes, a razão negocia, a razão concede, a razão equaliza, sobretudo a razão convence. Por isto mesmo a razão não serve a ideologias identitárias que, por definição, não têm poder de convencimento, somente de pertencimento. Na falta da razão prevalecem as comunidades imaginadas a gosto da "ideologia californiana", sejam religiosas, étnicas, sexuais, etárias, locais, nacionais, históricas etc.; comunidades, algumas, que se podem pretender fundadas nas origens dos tempos; ou outras, que se querem expressão destes tempos efêmeros em que vivemos. A falta de razão só pode dar lugar à violência: ou simbólica, quando olhares, expressões faciais, certas palavras acusatórias ou mesmo palavrões impõem o consenso pelo silêncio; ou física, método preferido de talibãs e similares.
 
Essa "ideologia californiana" é a ideologia da divisão. Divida e domine. Não deve ter sido por acaso que originou-se nos Estados Unidos, de onde espalhou-se para o mundo.
 
Durante os últimos 300 anos, viemos construindo um mundo laico, progressista, que desejava imaginar-se uma única grande, embora diversa, comunidade humana universal. Não significa dizer que o processo fosse pacífico ou sem contradições. Muito ao contrário ou, ao longo da história, não teriam existido os "girondinos" e os "jacobinos" – e suas mútuas guilhotinas. "Girondinos" ou "jacobinos", em suas muitas matizes, épocas ou situações, eram também líderes como Ataturk, Nasser, Ben Bella, Massadegh, Karin Kassen, Sekou Touré, Nehru, Lumumba, Mandela, Ho Chi Min, Mao Tsé-tung, Stálin, Trotski, Che Guevara, Allende, os nossos Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek, Luis Carlos Prestes, Carlos Marighela, Carlos Lacerda, Ernesto Geisel... Isto é, quando se defrontava com o colonialismo e o imperialismo das potências iluministas centrais em disputas que podiam assumir formas mais conciliadoras ou mais radicais, pró-capitalistas ou pró-socialistas, o mundo periférico também reivindicava a razão, a ciência, o progresso como fundamento legitimador de suas demandas e projetos. Os líderes, suas equipes de apoio, seus povos tinham, claro, suas religiões. Mas seus movimentos eram laicos, os Estados que buscavam fundar e alguns fundaram eram laicos. Até hoje, a Al Fatah palestina e o regime sírio do alauíta Bashar al-Assad são laicos. Na Argélia, em 1992, um golpe militar assegurou que o Estado continuasse laico, ante a vitória parlamentar de um partido religioso. O mesmo se repetiu no Egito, em 2013.
 
A pergunta que os analistas da Esquerda deveriam estar-se fazendo é: por que um grande contingente, em todo o mundo, de pobres e miseráveis aderiu a movimentos para lá de reacionários, obscurantistas, milenaristas, irracionais? Por que, após 300 ou mais anos de esforços para  desencantar  e desalienar o mundo, defrontamo-nos com um poderoso movimento de volta ao passado encantado, de submissão suicida a poderes metafísicos alienados?
 
Tarik Ali, ele mesmo um socialista paquistanês exilado na Inglaterra, nos oferece parte da resposta em Choque de fundamentalismos. No clima da Guerra Fria e acirrada disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética, muitas daquelas lideranças e movimentos desenvolvimentistas do então Terceiro Mundo, eram vistas pelos estadunidenses como aliados reais ou potenciais dos soviéticos. Quase todas foram derrubadas do poder por golpes organizados pela CIA, algumas foram assassinadas. Seguiram-se regimes anti-populares, repressivos, que perseguiram um desenvolvimento elitista, do qual resultará a exclusão social de grandes e majoritárias parcelas de suas populações. O caso do Brasil e sua "modernização conservadora", ou "thermidoriana", sob a ditadura civil-militar, é um exemplo paradigmático, com conseqüências bem conhecidas e experimentadas por todos e todas nós. A construção iluminista ficou a meio caminho. No mundo islâmico, isto iria se revelar devastador.
 
O progresso capitalista, na medida em que se expandia pelo mundo ao longo do século XX, enquanto invadia todos os interstícios da sociedade, em qualquer lugar, através da televisão, dos outdoors, dos carrões atravancando o trânsito, do consumo conspícuo ofensivamente exibicionista das minorias privilegiadas, traduzia-se, para uma imensa maioria, sobretudo na África, Ásia e América Latina, como um progresso injusto, que parecia só lhe oferecer um dia a dia duro, triste, extremamente desconfortável, quase sem prazeres, sobretudo sem nenhum sentido. A vida humana precisa de sentidos. Torcer por um time de futebol, exibir roupas de grifes famosas na night ou corpos esculpidos nas academias aparenta dar sentido de vida para muita gente. Ter que lutar hoje para garantir a comida de amanhã, sem depois de amanhã, num mundo que, entretanto, exibe tanta ostentação e desperdício, não parece fazer qualquer sentido para milhões de damnés de la terre.
 
E foi assim que o próprio capitalismo engendrou uma sociedade mundial dividida não mais em "burguesia" e "proletariado" mas em "McMundo" e "Jihad", na feliz metáfora de Benjamin Barber. De um lado, milhões de pessoas ocupando-se em algum trabalho decente que podem se diferenciar entre si, inclusive politicamente, pelos limites mais largos ou estreitos de seus cartões de crédito, mas integradas em um mesmo sistema "global" de produção, consumo e lazer. Do outro, milhões e milhões de pessoas que já não servem para o capital nem mesmo como exército industrial de reserva. Mas que vivem em suas fímbrias. Não podem deixar de manter com as classes sociais integradas predominantemente urbanas, simbióticas relações das quais extraem suas migalhas de sobrevivência e nas quais constroem suas frustrações e rancores.
 
Por "Jihad", Barber não quer se referir apenas ao fundamentalismo muçulmano. Deixa claro que a metáfora se aplica aos diversos fundamentalismos: o judeu, o cristão (em especial, o evangélico), o hinduísta etc. Trata-se de uma rejeição cultural, de base sociomaterial, a um modelo de progresso e modernidade que reduziu-se praticamente ao capitalismo e suas imagens depois de derrocada a primeira experiência jacobino-comunista. Deve ser claramente dito que, muitas vezes, a religião, especialmente a islâmica, serve de véu a encobrir o que são, de fato, profundas marcas culturais cultivadas até hoje por alguns grupos humanos desde o início dos tempos. O Livro islâmico ou também o evangélico são usados para justificar práticas ou costumes que, não raro, são até mesmo anteriores ao nascimento dessas religiões, são pré-medievais, radicam lá nas origens das primeiras sociedades humanas, são tipicamente bárbaros: a mutilação genital feminina, por exemplo; e muitas outras regras hamurabianas sobre as relações homem-mulher ou pais e filhos que nessas comunidades sobrevivem até hoje. Não poucos imigrantes, mesmo melhor inseridos profissional e materialmente nas sociedades européias, fazem questão de se agarrarem a esse passado irracional e primitivo. O quase extremista, hoje cientista, Usama Hasan explicou, em entrevista a Silio Bocanera, no programa "Milênio" do Canal GloboNews (http://tinyurl.com/p36tevq), como o próprio ambiente familiar imigrante extremamente conservador, porém, no mais, com bom acesso aos recursos materiais e educacionais que o Ocidente sabe oferecer, pode favorecer a formação de mentes criminosas. Hasan só não acabou "terrorista" porque, pelo que narra, conseguiu desatar o double bind de uma tal conflitiva e reprimida vivência infanto-juvenil em meio aos "chamados" da liberal e espetaculosa cultura ocidental. Será que, se de fato existem segmentos sociais europeus que as rejeitam e as agridem, muitas comunidades imigrantes, reciprocamente, por suas posturas e comportamentos, não estariam também rejeitando e agredindo a Europa e sua (nossa) cultura iluminista, que porém lhes permitiu melhorar de vida? Não tem anjo nessa história. E todos se dizem "vítimas"...    
 
OK, para a "ideologia californiana", apesar disso, temos que conviver e tolerar...
 
Diante das incertezas deste mundo, incertezas que o indivíduo moderno (de qualquer religião) assume como desafio competitivo; diante da liquefação das coisas, liquefação que o indivíduo moderno (de qualquer religião) assume como descartabilidade renovadora; diante da velocidade do tempo, velocidade que o indivíduo moderno (de qualquer religião) assume como presente permanente; esses que se sentem excluídos ou semiexcluídos, por razões materialmente objetivas ou por idiossincrasias culturais, precisam de certezas, solidez, eternidade. Se neste nosso mundo, o que era sólido desmanchou-se no ar, para aquele a quem a vida é completamente fugidia por imposição, sem recompensas, será necessário acreditar num tempo imutável, eterno, que recompense ao menos a alma, já que o corpo não tem chances. Sobretudo para esses milhões, sem acesso a shopping centers, exceto, quando muito, como limpador(a) de latrinas, não será possível o paraíso na Terra. Para estes, a mensagem linear do Livro chega como consolação e salvação. A palavra de Deus, conforme convenientemente vocalizada por "pastores" e "imãs", enche de sentido o vazio e falta de objetivos de suas vidas.  
 
Os soldados da "Jihad", em boa parte, são recrutados nesse lumpemproletariado, o nome dado por Karl Marx a essa franja social amorfa, desclassificada, que sobrevive como pode, no meio da qual se encontram e se misturam, entre outros, trabalhadores precários, biscateiros(as), camelôs, seguranças, prostitutas(os) e também bandidos, como aqueles que assassinaram, no último dia 9, no Rio de Janeiro, o universitário Alex Schomaker Bastos, ele também um rapaz de idéias esquerdistas, filho de pais desde jovens militantes da agenda da Esquerda. Para o lúmpem isto é irrelevante. Ele odeia o mundo ao qual Alex, mesmo crítico, pertencia. Ele odeia o nosso mundo. Claro está que nem todo lúmpem é bandido, mas todo bandido é lúmpem. Circunstâncias pessoais, ambiente familiar, características da personalidade, inconseqüência juvenil, favorecem, em alguns indivíduos, extravasar no mundo à sua volta a violência revoltada já latente de suas duras condições de vida. Em geral, seriam apenas casos de polícia. Mas pode acontecer dessa violência ser organizada e canalizada politicamente. O caso mais notório é o das multidões irracionais que vandalizaram a Europa nos anos 1930-1940,  conduzidas  fanaticamente  por um lúmpem intelectualmente bem dotado – Adolf Hitler. Hoje em dia, um novo perfil de liderança fanática – "pastores", "imãs", os falsos profetas da "Jihad" – está organizando e mobilizando o lumpensinato nas periferias das grandes cidades européias, na África, no Oriente Médio, mas também do lado de cá do Atlântico, para a guerra contra a Civilização. Transformam potenciais bandidinhos comuns, em bandidos políticos. Três deles, em dois dias, mataram 17 pessoas na França, entre elas 12 artistas de Esquerda. 







Marcos Dantas é Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ

Créditos da foto: Gongashan / Flickr

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