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sexta-feira, 7 de março de 2014

Da ditadura militar brasileira – 2ª parte - por Augusto C. Buonicore


Por Augusto C. Buonicore
Sítio Fundação Maurício Grabois
Na primeira parte deste artigo, Buonicore demonstrou que a utilização dos conceitos golpe militar e ditadura militar não foram criados para encobrir o caráter de classe daqueles acontecimentos e sim para captar suas especificidades. Os críticos de esquerda do conceito ditadura militar – que o acusam de encobrir a participação dos empresários naquele regime – incorrem no erro de confundir a natureza de classe do Estado com a sua forma.
Na primeira parte deste artigo buscamos demonstrar que a utilização dos conceitos golpe militar e ditadura militar têm uma longa tradição no seio da esquerda brasileira. Não foram criados para encobrir o caráter de classe daqueles acontecimentos e sim para captar suas especificidades. Como disse Quartim de Moraes: “O sentido de um termo (...) apresenta um valor semântico determinado por seu emprego, isto é, pelas significações que foi vinculando ao longo de sua trajetória”. Os conceitos têm sua história que deve ser respeitada.
Para entender o conceito ditadura militar faz-se necessário retornarmos às bases da teoria política marxista. É isso que faremos de maneira bastante sintética e esquemática. O Estado é uma organização que, fundamentalmente, se destina a garantir a dominação de uma classe sobre outra. Diferentes tipos de Estados correspondem aos diferentes tipos de modos de produção – por exemplo, escravista, feudal, asiático, capitalista e socialista. A forma de governo (ou regime político) é a maneira pela qual o poder classista do Estado se apresenta num determinado momento histórico. Por isso, ela muda mais rapidamente do que o seu conteúdo classista.
Os críticos de esquerda do conceito ditadura militar – que o acusam de encobrir a participação dos empresários naquele regime – incorrem no erro de confundir a natureza de classe do Estado com a sua forma. Não veem que a ditadura militar – como o fascismo, o bonapartismo, a monarquia, a república democrática – é apenas uma das formas pela qual pode se apresentar o domínio da burguesia. Quando a esquerda revolucionária brasileira nas décadas de 1960 e 1970 afirmava que vivíamos sob a égide de uma ditadura militar estava simplesmente se referindo à forma de governo despótico existente, que objetivava defender os interesses da grande burguesia monopolista em aliança com o latifúndio e apoiada pelo imperialismo estadunidense.
Outro erro que alguns críticos do conceito ditadura militar cometem é confundir o caráter de classe de um Estado (vinculado à fração hegemônica no bloco no poder) com a sua base social de apoio. Uma ditadura da burguesia monopolista e financeira pode, em alguns momentos, ter como base social de apoio setores das camadas médias e mesmo das classes populares. Foi o que ocorreu durante o período de domínio nazista na Alemanha. Isso não significa que o nazismo fosse uma ditadura da pequena burguesia, como chegaram a aventar alguns teóricos. Dentro da mesma lógica dos que argumentam a estreiteza do termo ditadura militar, poderíamos dizer que o conceito Estado (ou regime) nazista encobriria o apoio dado pelos grandes industriais e financistas alemães a Hitler.
O Golpe de Estado no Brasil
Ninguém tem dúvida de que entre nós ocorreu um Golpe de Estado em 1964. Apenas meia dúzia de carcomidos ainda chama aquilo de revolução. Mas, o que é tecnicamente um Golpe de Estado? O Dicionário de Política – organizado por Bobbio, Matteucci e Pasquino – afirma que, em primeiro lugar, “é um ato realizado por órgãos do próprio Estado”. Ou seja, é um ato de força  executado fundamentalmente por algum ramo da burocracia civil e militar contra determinada forma de legalidade. Continua: “(...) na maioria dos casos, quem toma o poder político através de golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes militares. O golpe militar (...) tornou-se a forma mais frequente do Golpe de Estado”. Os civis compareceriam como apoiadores e até mesmo como beneficiários, mas não (tecnicamente) como executores. Foi, justamente, o que ocorreu no Brasil em 1964. Contudo, diferentemente dos golpes ocorridos antes, os militares, além de derrubarem o governo legal, resolveram permanecer no centro do poder, desalojando a elite político-civil que os havia apoiado. O resultado foi a implantação entre nós – pela primeira vez – de uma ditadura tipicamente militar.
Isso, é claro, não deve encobrir o fato de que o golpe foi uma reação das classes economicamente dominantes ao crescimento do protagonismo popular, especialmente dos trabalhadores urbanos e rurais. Temiam que as mobilizações crescentes em defesa das reformas de base poderiam levar as coisas a extrapolarem os limites da ordem liberal burguesa. Como sempre acontece nesses momentos, chamaram as Forças Armadas para darem um basta na situação. Assim, pelo seu conteúdo, o golpe foi burguês e visava a preservar a ordem supostamente ameaçada. Contudo, a forma adquirida por ele foi o de um “pronunciamento” militar.
Cabe ressaltar que a base social desse movimento golpista não se reduzia aos burgueses, que representam uma ínfima minoria da população. Para ser bem sucedida, a grande burguesia e o imperialismo estadunidense precisaram mobilizar as camadas médias, sempre temerosas diante da proletarização e do comunismo. Foram elas que encheram as ruas de São Paulo na monumental (e patética) Marcha da Família com Deus pela Liberdade e as do Rio de Janeiro na Marcha da Vitória após o golpe. Nem por isso é correto dizer que o ocorrido em 1º de abril de 1964 foi um golpe das classes médias ou que elas tenham sido as maiores beneficiárias.
Não entraremos nos meandros da conspiração, envolvendo civis e militares, que precedeu ao fatídico “1º de abril”, trataremos do golpe propriamente dito. Ao tomar conhecimento do discurso de Jango numa solenidade promovida por uma associação de sargentos e suboficiais, realizada na noite do dia 30 de março, os generais Mourão Filho e Carlos Luís Guedes resolveram rebelar-se com suas tropas em Minas Gerais, marchar rumo ao Rio de Janeiro e derrubar o governo.
A mobilização da opinião pública conservadora e a inação do governo, que ainda possuía tropas leais e podia ter tentado virar o jogo, decidiram a partida a favor dos golpistas. Os generais que ainda vacilavam, amedrontados de se envolverem numa luta cujo resultado era imprevisível, adquiriram súbita coragem e aderiram ao golpe. Este era o caso de Amaury Kruel, comandante do II Exército de São Paulo. Logo o I e o II Exércitos estavam unificados contra Jango. Dois dias depois seria a vez de o comando do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, incorporar-se à intentona.
Neste momento, a direção dos acontecimentos saiu das mãos do precipitado e atabalhoado Mourão Filho e passou para as do grupo liderado pelos generais Castelo Branco e Costa e Silva. Estes, mais organizados, eram os verdadeiros líderes da sedição nos quartéis e mantinham contatos íntimos com os conspiradores civis e, especialmente, com o embaixador dos Estados Unidos.
Na noite de 1º de abril, com o presidente ainda em território nacional e sem quorum para decretar o seu impeachment, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República e entregou o cargo ao presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili. Este ato ilegal – mais simbólico que efetivo – não desempenhou papel significativo no golpe já vitorioso. Tentava-se apenas dar uma aparência de legitimidade à ação violenta desenvolvida pelos militares diante do público externo. Na verdade, os generais não precisaram disso para chegar e se manter no poder.
O general Arthur da Costa e Silva, autonomeado ministro da Guerra, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo – nomeados ministros da Marinha e da Aeronáutica – constituíram o chamado Comando Supremo da Revolução. Foi este comando que promulgou o primeiro Ato Institucional, em 9 de abril de 1964. O texto não deixava dúvidas de quem tinha as rédeas nas mãos: “(...) fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimidade”.
Outro fato mostra claramente a relação que iria se estabelecer entre os militares e seus apoiadores civis. O Congresso, liderado por udenistas e pessebistas, havia tentado se antecipar aos fatos e aprovar um Ato Constitucional – com o mesmo conteúdo do AI-1 –, dando plenos poderes ao Comando Supremo da Revolução para limpar a cena política dos comunistas, trabalhistas e demais opositores. Os generais, simplesmente, desconsideraram este ato de subserviência e buscaram deixar claro de onde provinha o poder.
Através do AI-1, o presidente poderia apresentar emendas constitucionais ao Congresso, que teria apenas 30 dias para examiná-las, sendo necessário para aprová-las maioria simples e não 2/3 dos votos como determinava a Constituição ainda vigente. Poderia decretar Estado de sítio por até 60 dias, sem autorização do Congresso; teria o direito de suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão; cassar mandatos parlamentares e demitir servidores públicos.
Para garantir que um dos seus pudesse galgar à presidência, revogou a cláusula constitucional que impedia que oficiais da ativa pudessem se candidatar. Em 11 de abril – dois dias depois –, o Congresso elegeu o general Castelo Branco. Talvez, essa tenha sido a última decisão importante que a “elite civil” pode se considerar coautora. Mesmo assim – apesar das aparências –, o ato formal de escolha no parlamento foi apenas o reconhecimento de um fato consumado pela força das armas. Em poucos meses foram cassados 50 deputados e senadores. Entre as vítimas mais ilustres estava Juscelino Kubitscheck, que votara em Castelo Branco.
A legislação determinava e Castelo prometia realizar eleição direta no final de 1965. Contudo, o governo conseguiu arrancar do Congresso a prorrogação do mandato presidencial por um ano. Diante dessa medida, que lhe roubava a possibilidade de chegar à presidência, Carlos Lacerda passou a fazer duras críticas ao governo de Castelo Branco.
Em outubro de 1964 quem entrou na alça da mira dos militares foi Áureo de Moura Andrade – o mesmo que havia declarado vaga a presidência. Acusado de corrupção teve de responder a um Inquérito Policial-Militar (IPM). Diante disso, exclamou: “Esta revolução foi feita para salvar o Brasil, mas está sendo literalmente liquidada por homens que pretendem implantar a ditadura (...). (...). Ninguém ignora que, à sombra dessa revolução, cresceram muitos inimigos da democracia que querem fechar o congresso, revogar a Constituição, suprimir as liberdades do povo e implantar um regime ditatorial fascista”.
No dia 23 de novembro de 1964, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, deuhabeas corpus ao governador de Goiás, Mauro Borges, que estava sendo ameaçado de cassação. Decidiu que ele somente poderia ser processado com o aval da Assembleia Legislativa. Apesar disso, três dias depois, foi decretada a intervenção no Estado e destituído o governador. Assumiu em seu lugar o coronel Meira Matos. Nesse primeiro período outros governadores foram cassados, como o do Rio de Janeiro, substituído pelo marechal Paulo Torres, e do Pará, substituído pelo coronel Jarbas Passarinho.
Uma das análises mais argutas desse processo foi feita por Décio Saes. Segundo ele, em 1964, amplos setores das classes médias e da burguesia desejavam uma ditadura provisória, que limpasse as instituições da influência das correntes comunistas e populistas. Contudo, a militarização do aparelho de Estado tornou-se “uma tendência permanente e irreversível” e levou à “ascendência crescente do poder executivo – controlado em última instância pelo grupo militar – sobre o parlamento e o poder judiciário”. O objetivo dos militares passará a ser a neutralização do conjunto da “classe política” e a “rejeição das próprias formas democráticas parlamentares”.
Os militares avançam
Em 3 de outubro de 1965 ocorreram as primeiras eleições no novo regime. Foram colocados em disputa onze governos estaduais e a oposição venceu nos mais importantes: Minas Gerais, Guanabara, Santa Catarina e Mato Grosso. Os dois primeiros eram governados pelos principais líderes civis do golpe, os udenistas Lacerda e Magalhães Pinto.
Em resposta, no dia 27 de outubro, foi decretado o Ato Institucional nº 2. O presidente agora poderia estabelecer o Estado de Sítio por até 180 dias e decretar o recesso do Congresso e outras casas legislativas. O novo ato extinguiu os partidos políticos existentes, criando o bipartidarismo, e colocou um fim nas eleições diretas para presidente. Alguns dias depois, através do AI-3, estabeleceu-se que os governadores também não seriam eleitos diretamente pelo povo e sim pelas assembleias estaduais. Os prefeitos passaram a ser indicados pelo governador. Em junho de 1966, Castelo Branco cassou o governador Adhemar de Barros – o articulador da Marcha da Família com Deus pela Liberdade –, que foi obrigado a sair do país para não ser preso por corrupção.
Em 12 de outubro de 1966 – nove dias depois da eleição indireta do general Costa e Silva –, desrespeitando um compromisso feito junto às lideranças governistas no congresso, Castelo Branco decretou a cassação de seis deputados do MDB. O presidente da Câmara dos Deputados, o arenista Adauto Lúcio Cardoso, recusou-se a aceitar as cassações e permitiu que os parlamentares punidos continuassem em seus postos.
Diante da resistência, o governo simplesmente fechou o Congresso. Tropas do exército ocuparam as suas dependências, além de cortar a água e a luz do edifício. O jornalista Carlos Chagas descreveu a cena: “Na mesma hora, por todas as entradas do Congresso a soldadesca invadiu em acelerado. O grito era ‘civis fora! Civis fora!’”. O diálogo entre o comandante da operação e o presidente da Câmara, que já se conheciam, muito nos diz sobre as relações assimétricas existentes entre os dois poderes. Diante do parlamentar, o coronel falou em voz alta: “Eu sou o poder militar. E o senhor, quem é?”. Numa postura dramática de reverência, o deputado respondeu: “Eu sou o poder civil e curvo-me à força dos canhões”.
O Congresso desfalcado pelas cassações foi reconvocado em dezembro para, a “toque de caixa”, aprovar o projeto de Constituição enviado pelo governo militar. Nascia, assim, guarnecida pelas armas, a Constituição de 1967. Nela, o poder Executivo militarizado era ainda mais fortalecido. O Congresso, inclusive, já havia perdido a capacidade de legislar sobre matéria orçamentária.
Lacerda, então, resolveu fazer um lance arriscado e se jogou na formação da Frente Ampla. Para isso procurou seus adversários históricos Juscelino Kubistchek e João Goulart, ambos cassados. A experiência durou pouco. Bastou que se iniciassem as primeiras manifestações estudantis em 1968 para que a frente oposicionista fosse fechada. Em junho, o ex-presidente Jânio Quadros foi detido e confinado em Mato Grosso. Esses exemplos mostram a falácia dos que afirmam que a ditadura militar começara apenas em 1969.
No final de 1968 o regime estava novamente em crise – e não pelas manifestações de ruas que haviam retrocedido, mas devido às resistências surgidas no seu próprio campo. Em dezembro a Câmara se recusou a dar permissão para que se processasse o deputado Márcio Moreira Alves. Inúmeros deputados da Arena votaram a favor da imunidade do parlamentar. O STF, contra a vontade do governo, deu habeas corpus para os líderes estudantis presos em Ibiúna. Vozes discordantes já se ouviam no Tribunal Superior Militar.
Em 13 de dezembro, um dia depois da votação no Congresso e no STF, o governo baixou o Ato Institucional nº 5 – o mais truculento de todos. O parlamento foi fechado e os direitos civis e políticos suspensos – entre eles o habeas corpus. À sombra desse ato foram cassados 113 deputados federais e senadores; 190 deputados estaduais, 30 prefeitos e 4 ministros dos tribunais superiores. Ironicamente, no dia seguinte ao ato, Carlos Lacerda foi preso pela polícia militar da Guanabara.
O último acontecimento que iremos tratar aqui é o da sucessão de Costa e Silva. O general-presidente ficou enfermo e impossibilitado de governar. Pela constituição do regime militar, deveria assumir o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo. Mais do que depressa, os ministros militares impediram sua posse e o colocaram sob uma espécie de prisão domiciliar. Uma junta militar passou a dirigir o país até a escolha do novo presidente.
Desta vez acharam uma forma original de fazer isso – e que traduzia mais fielmente o caráter do regime. Fez-se uma primeira eleição apenas entre os generais, almirantes e brigadeiros. O escolhido nesta forma peculiar de democracia militar foi Emílio Garrastazu Médici. O Congresso – expurgado de todas as vozes discordantes – foi reconvocado para sufragar o nome escolhido pela cúpula das Forças Armadas. Isso demonstra que a existência formal de um parlamento não faz de nenhum país uma democracia.
A militarização do aparelho de Estado
Escreveu João Roberto Martins Filho: “(...) o afastamento dos representantes propriamente políticos (da burguesia) expressou-se institucionalmente no surgimento e consolidação de sedes de poder castrense – a presidência e órgãos de assessoria militar, os ministérios das três armas, os comandos do exército, os Estados-Maiores das Forças Armadas e, depois de 1967, o Alto Comando das Forças Armadas –, no aspecto político, marcaram-se por uma acentuada ‘desigualdade estrutural’ em relação aos outros ramos do aparelho de Estado”. Por isso, “o conceito mais pertinente para entender esses regimes seria o de ditadura militar”.
Como diz Martins, houve a partir de 1964 um rápido e acentuado deslocamento de forças no interior do Estado burguês a favor dos seus aparelhos repressivos (no caso, a cúpula das Forças Armadas), com o aguçamento sem precedente do centralismo burocrático. A outra face desse processo foi o esvaziamento dos poderes Legislativo e Judiciário, ambos subordinados ao “poder militar”. Os militares avançariam sobre os mecanismos de representação política (parlamento) – terreno das chamadas elites civis. Pouco – ou nenhum – espaço de decisão foi-lhes dado. E conclui: “(...) ao cerrar fileiras contra qualquer tentativa civil de mudanças dos rumos do processo político, as Forças Armadas apresentaram notável unidade no plano estratégico (...). O repúdio a todo risco de ‘volta ao passado’ constituiu, no pós-1964, o principal fator de unidade militar face ao mundo civil.”
Os militares não formam uma classe social. Dentro da tradição marxista, são considerados uma categoria social, como os estudantes, funcionários públicos e padres. Sua identidade é dada pelo seu pertencimento a um dos aparelhos (repressivos) do Estado: as Forças Armadas. Ditadura militar, enquanto regime, significa o monopólio (ou influência desproporcional) do poder político pela cúpula do aparelho militar.
O que são civis? De uma maneira mais ampla, são todos aqueles que não são militares. Assim, quando falamos em civil-militar estamos nos referindo a todos os cidadãos de um país. Convenhamos: se o termo ditadura militar pode parecer um pouco estreito por, aparentemente, não dar conta de todo fenômeno; o termo ditadura civil-militar é demasiado amplo e perde a capacidade de entender a especificidade deste tipo de regime. Além do mais não resolve o problema de denunciar o caráter de classe da ditadura, pois entidades civis eram a CGT, a Contag, as Ligas Camponesas, a Febraban e a Fiesp. Civis eram Prestes, Jango e Carlos Lacerda.
Décio Saes nos lembra que “um conceito não pode ser uma cópia exaustiva de qualquer fenômeno, ele consiste, tão somente, na enunciação, em temos científicos, dos seus aspectos essenciais e invariantes”. O conceito ditadura militar, como qualquer conceito, pode não nos dizer tudo sobre o fenômeno que procura abarcar, a saber: o regime que imperou no país entre 1964 e 1985, mas nos diz dele o que é fundamental.
Segundo matéria da revista Retrato do Brasil tratando do poder militar: “(...) não se instalou, no Brasil, apenas um governo militar, caracterizado pela origem castrense do presidente da República, nem passou a ocorrer somente a coexistência desequilibrada de um Executivo ‘forte’ com um Legislativo e um Judiciário fracos (...). Muito mais que isso, houve um amplo e profundo processo de militarização do conjunto do Estado brasileiro. Houve antes de mais nada a militarização do Executivo”. Continua o texto: “surgiram os ‘generais-ministros’ os ‘coronéis-ministros’, ocupando pastas estratégicas, tradicionalmente qualificadas como civis (...)”. Mesmo os ministros civis passaram a ser tutelados e fiscalizados pelas Forças Armadas, através das Divisões de Segurança e Informações (DSI). A mesma coisa acontecia nas autarquias e empresas públicas, como a Petrobras. Tudo era um problema de Segurança Nacional, típica subideologia do aparelho militar.
Concluímos este longo artigo com uma reflexão do professor Quartim de Moraes: “Os bons historiadores da política dão mais importância ao vocabulário das lutas concretas do que às elucubrações de sabichões tardios. As ideias-força que animam o combate político devem sintetizar-se numa fórmula clara que oriente e concentre a energia coletiva. O inimigo imediato que os movimentos contra as ditaduras enfrentaram em todo o Cone Sul foram as cúpulas militares reacionárias, que exerciam quase monopolisticamente o poder de Estado, recorrendo ao terror repressivo para aniquilar a resistência clandestina e intimidar a oposição consentida”. Assim, o conceito ditadura militar – além de teoricamente correto – tinha um claro sentido político-prático.
* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia
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BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Brasília/ Rio de Janeiro: Editora UnB/Revan, 2001.
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MELO, Demian Bezerra de. “Ditadura ‘civil-militar’: controvérsias históricas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios presentes”. In: Espaço Plural, nº 27, 2º semestre de 2012.
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