sex, 07/03/2014 - 11:04 - Atualizado em 07/03/2014 - 11:41
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
O conflito na Ucrânia renovou o interesse por esta obra de Noam Chomsky, por isto resolvi republicar aqui a resenha que fiz da mesma há algum tempo. O império americano: hegemonia ou sobrevivência, editora Campus, é uma obra que questiona profundamente a política externa norte-americana baseada no uso da violência, bem como sua base de sustentação jornalística (que tem ajudado muito aos ocupantes da Casa Branca a seguirem brutalizando supostos inimigos enquanto eles mesmos não são tratados como líderes brutais).
Logo de saída Chomsky assegura que enquanto “...os métodos nas sociedades mais brutais diferem acentuadamente daqueles da sociedades mais livres, as metas, em muitos sentidos, são as mesmas: assegurar que a 'grande besta', como Alexandre Hamilton chamou o povo, não escape do espaço limitado que lhe cabe.” Um pouco mais adiante, o autor completa seu raciocínio de maneira brilhante “Enquanto o inimigo doméstico precisa ser, em geral, controlado pela propaganda intensiva, no exterior meios mais diretos se encontram disponíveis. Os líderes do atual governo Bush - em sua maioria membros reciclados dos setores mais reacionários dos governos Reagan e Bush I - fornecem exemplos bastantes claros ao longo de seu período anterior no governo.”
A propaganda oficial, a cobertura jornalística favorável das ações governamentais e os conflitos externos mantém o povo norte-americano entretido. Isto permite aos ocupantes da Casa Branca continuarem a construir e ampliar um império global. É inevitável perguntar, portanto, como é que se constrói um império?
A resposta de Chomsky é clara: ignorando o direito internacional. “O desdém pelas leis e instituições internacionais foi especialmente flagrante nos anos Reagan-Bush - o primeiro dos membros do atual círculo de Washington -, e seus sucessores continuaram a insistir que os Estados Unidos se reservavam o direito de agir 'unilateralmente quando necessário', incluindo aí o 'uso unilateral de poderio militar' para defender interesses vitais, tais como 'o acesso ilimitado a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos estratégicos”'
Essa postura, contudo, não era propriamente nova. A opção norte-americana pela supremacia da força bruta à civilidade da Lei Internacional em relação ao Iraque teve conseqüências dramáticas. “Povos e regimes terão que mudar a maneira como encaram o mundo 'de uma visão fundamentada na ONU e no direito internacional para outra, baseada na compatibilidade”'com os planos de Washington. Todos estão sendo aconselhados, pela demonstração de força, a pôr de lado 'quaisquer questões relevantes de interesse internacional' em prol da 'satisfação dos objetivos americanos.' "
É evidente que a arrogante postura da Casa Branca vai gerar uma nova corrida armamentista. A China já aumentou suas despesas militares deixando os norte-americanos arrepiados. Os iranianos não abrem mão de seu programa nuclear porque tem razões de sobra para imaginar que serão tratados como os iraquianos. Nenhuma nação que pretenda preservar sua independência e integridade territorial pode sentir-se tranquila diante de um gigante comandado por gente disposta a impor-se pela força. Apesar de manter relações amistosas com os EUA o Brasil já começou a implementar um ambicioso programa de modernização das suas Forças Armadas. A aquisição de novos navios e tanques de guerra, a construção de submarinos convencionais e nucleares e a compra de jatos Gripen e de helicóteros de ataque franceses e russos tem uma finalidade evidente: preservar e ampliar a capacidade do Brasil de defender os recursos naturais que existem em nosso território e mar territorial.
Não é de hoje que os EUA fizeram a opção pela supremacia da força ao direito. Segundo Chomsky, desde “... a Segunda Guerra Mundial, o governo americano adota a prática-padrão dos países poderosos, normalmente escolhendo a força em lugar da lei quando isso é considerado 'de interesse nacional', um termo técnico para rotular os interesses específicos de setores domésticos em posição de ditar políticas.”
Em razão desta e de outras afirmações de Chomsky, podemos concluir que aquilo que chamamos de “democracia americana” é na verdade um “liberalismo oligárquico". O povo norte-americano tem o direito de votar, mas não detém o efetivo controle político dos destinos do país. Os donos do poder são aqueles que financiam as campanhas eleitorais ou proporcionam aos políticos a satisfação de seus desejos e em troca adquirem o direito de se impor dentro e fora das fronteiras dos EUA.
Nesse contexto, podemos compreender perfeitamente porque a “...visão da elite dominante com relação à ONU foi definida, em 1992, por Francis Fukuyama, ex-membro do Departamento de Estado do governo Reagan-Bush: a ONU é 'perfeitamente usável como um instrumento do unilateralismo americano e, com efeito, provavelmente o principal mecanismo pelo qual este unilateralismo será exercido no futuro.' Tal previsão se mostrou acurada, talvez por ter se baseado em uma prática contumaz cuja origem remonta aos primórdios da ONU."
Ao analisar detidamente a “diplomacia do porrete” que tem sido usada por diversos ocupantes da Casa Branca, Noan Chomsky reproduz o seguinte discurso “para criar democracias verdadeiras é preciso certa pressão externa... Não devemos hesitar em usar esse tipo de 'interferência nos assuntos internos' de outros países... Já que o governo democrático é uma das principais garantias de uma paz duradoura.” O discurso, que era usado pelos diplomatas de Stalin, poderia muito bem ter sido proferido por Bush II, Donald Rumsfeld, Dick Cheney ou Condoleezza Rice a propósito do Iraque, Irã ou Coréia do Norte. Mas é claro que se o Kremlin ou Pequim usarem a mesma estratégia diplomática a Casa Branca acusaria a Rússia e a China de imperialismo, de violação do direito dos povos à autodeterminação, ou seja, de tudo aquilo que os EUA merecem ser acusados à pelo menos um século.
Chomsky não faz crítica de cinema. Entretanto, as informações que divulga em seus livros costumam nos ajudar a compreender melhor como a indústria cinematográfica ajuda a moldar e manter uma ideologia que atende aos propósitos imperiais dos ocupantes da Casa Branca. Nos "American movies" os EUA é quase sempre retratado como um país destinado por Deus a liderar os outros povos; apesar de seus defeitos, o povo norte-americano é na maioria das vezes representado como sendo virtuoso e dotado de costumes superiores; salvo raríssimas exceções, que são superadas ao longo das tramas, os líderes políticos e militares norte-americanos são imbuídos dos melhores propósitos.
Há algum tempo foi lançado o filme “Os 13 dias que abalaram o mundo”. Esta obra procura retratar o heroísmo dos irmãos Kennedy durante a crise dos mísseis em 1962. Quem assiste ao filme fica com a clara impressão que quem salvou o mundo de um holocausto nuclear foram Bob e John F. Kennedy. Entretanto, como quase sempre ocorre, a vida não imitou a arte. O verdadeiro herói daquele incidente foi um marinheiro russo absolutamente desconhecido.
Como afirma Chomsky, durante uma conferência realizada em Havana em 2002, foi revelado que “ 'Um sujeito chamado Arkhipov salvou o mundo', disse Thomas Blanton, do arquivo de Segurança Nacional em Washington, que ajudara na organização do evento. Ele se referia a Valisi Arkhipov, um oficial da Marinha soviética que, a bordo de um submarino, barrou uma ordem de lançar torpedos nucleares em 27 de outubro, no momento mais tenso da crise, quando os submarinos estavam sendo atacados por destróires americanos. Era de se esperar uma reação devastadora, detonando uma guerra de grandes proporções.”
É evidente que a grande maioria dos norte-americanos nunca ouviu e provavelmente nunca ouvirá falar de Vasili Arkhipov. Entretanto, dezenas de milhões de norte-americanos já viram e muitos mais no futuro verão o “Os 13 dias que abalaram o mundo”. Assim, a versão cinematográfica do suposto heroísmo dos irmãos Kennedy se tornou e certamente continuará a ser uma realidade ideológica para a maioria dos norte-americanos. A verdade, por outro lado, permanecerá acessível apenas a alguns privilegiados e leitores de Chomsky e de outros autores que narram o que realmente ocorreu. Curiosamente, o predomínio da ideologia à verdade era uma característica dos regimes nazista, fascista e comunista como notou Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo. Segundo a grande filosofa "...O possuir poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto, mantendo o seu desprezo pelos fatos e impondo a rígida observância das normas do mundo fictício que criou." (Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras, 2011, p. 442).
O julgamento de Saddan Hussein por crimes de guerra foi usado com uma excelente peça de propaganda pela administração Bush II. Entretanto, ninguém além de Chomsky cogitou a possibilidade de julgamento de líderes norte-americanos, israelenses e ingleses por terem cometido crimes similares. Ao longo de sua obra o lingüista não somente detalha os crimes brutais cometidos pelo Ocidente, mas também a forma encontrada pela imprensa para proteger alguns notórios criminosos de guerra: o silêncio, a distorção da verdade e, principalmente, a utilização de dois padrões morais: um para julgar os EUA, Israel e Inglaterra; outro para julgar os inimigos oficiais destes países.
Nas palavras de Chomsky, a “...Quarta Convenção de Genebra, instituída para criminalizar formalmente os crimes dos nazistas na Europa ocupada, é um princípio nuclear do direito humanitário internacional. Sua aplicabilidade aos territórios ocupados por Israel tem sido repetidamente afirmada, entre outras ocasiões, pelo embaixador na ONU George Bush (setembro de 1971) e pelas resoluções do Conselho de Segurança. Aí se incluem a Resolução 465 (1980), unanimemente adotada, que denunciou as práticas israelenses apoiadas pelos Estados Unidos como 'violações flagrantes' da Convenção, e a Resolução 1322 (outubro de 2000), aprovada por 14 a 0 (abstenção americana), que exigiu que Israel cumprisse escrupulosamente suas responsabilidades perante a Quarta Convenção de Genebra'. Como Altos Signatários, os Estados Unidos e as potências européias são obrigados por compromisso solene a deter e processar os responsáveis por tais crimes, incluindo seus próprios líderes. Ao descumprir de modo contumaz, esse dever, eles estão 'incentivando o terrorismo' - pedindo de empréstimo as palavras de Bush II ao condenar os palestinos.”
A propósito da militarização da vida em Israel, Chomsky afirma que a “...Intifada trouxe também à tona mudanças significativas que vinham ocorrendo dentro de Israel. A autoridade dos militares israelenses alcançara níveis tais que o correspondente militar Ben Kaspit descreveu Israel não como 'um país com um Exército, mas um Exército com um país'."
No último capítulo do livro Noam Chomsky alerta para a crescente militarização do espaço. Segundo o ilustre ativista e pacifista, através do DARPA o governo norte-americano pretende ter uma vantagem estratégica sobre todos os países. Entre os projetos gerenciados pelo DARPA estão: a) o desenvolvimento de tecnologias que permitam a destruição de satélites civis e militares de países considerados adversários ou inimigos dos EUA;. b) lançamento de ataque com mísseis posicionados no espaço; c) orientação precisa de ataques preventivos em qualquer ponto do planeta. A preocupação de Noam Chomsky é justificável e deveria sugerir uma campanha contra a militarização do espaço.
Apesar do livro suscitar muitas outras controvérsias, encerro aqui minha resenha. Não vou tirar do leitor o prazer de saborear por inteira mais esta conversa com um norte-americano que tem coragem de mostrar os podres de seu próprio país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário