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domingo, 6 de abril de 2014

Como a Fazenda promoveu a Standard & Poor's

Como a Fazenda promoveu a Standard & Poor's

No último processo de globalização financeira, que tem início dos anos 70 e perdura até 2008, as agências de risco foram os grandes batedores iniciais do capital especulativo.

Havia muito desconhecimento sobre o novo mundo a ser desbravado e elas eram os batedores, que informavam onde havia terreno firme, onde havia o pântano.

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Com o tempo, criou-se uma promiscuidade ampla entre agências e clientes.

A experiência das agências é no ramo da contabilidade. Analisam o histórico de uma empresa – através dos balanços -, estimam o comportamento futuro de receita, despesa, geração de caixa, nível de endividamento, comportamento do mercado específico e, a partir daí, definem notas de fácil aplicação.

***

Quando passaram a analisar risco soberano de país, o quadro complicou.

Um país não é uma empresa. E faltava à maioria das agências conhecimento de macroeconomia, dos movimentos dos grandes fluxos globais, das correlações entre câmbio e superávit, câmbio e demanda, políticas fiscais e consumo.

Com isso, acabaram a reboque dos departamentos econômicos dos grandes bancos internacionais, movendo-se por slogans e errando rotundamente em vários momentos cruciais da economia global recente.

E, dentre todas, nenhuma foi tão desastrosa quanto a Standard & Poor's.

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Um dos casos clássicos foi na crise da Argentina, valendo-se da teoria dos déficits gêmeos.

Essa teoria partia do pressuposto que um déficit fiscal provoca, simultaneamente um déficit externo. Assim, bastaria resolver o déficit fiscal para o déficit externo ser equacionado. Ignoravam completamente os efeitos do câmbio, nível de atividade, movimentos do mercado de commodities.

Depois dos experimentos de Domingo Cavallo, a Argentina estava exangue. A S&P ameaçava rebaixar sua nota caso não promovesse um ajuste fiscal e, por consequência, o ajuste externo.

Uma semana antes da quebra da Argentina, Cavallo promoveu mais um ajuste fiscal e ganhou mais um elogio da S&P. Uma semana!

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Em 2008, a reputação das agências foi por água abaixo, especialmente da S&P. Houve quebras rumorosas de instituições contempladas, pouco antes, com sua nota máxima.

Por isso mesmo, só bagrinhos continuaram a tê-la como parâmetro. Com o mercado internacional suficientemente homogeneizado e com o conhecimento acumulado, cada grande instituição passou a recorrer exclusivamente a seus departamentos econômicos – ganhando um grau de influência maior do que o das agências de rating.

***

O único governo a dar importância à S&P foi o brasileiro.

A S&P ameaçou rebaixar o Brasil e instaurou-se uma operação de guerra na República da Borundia. O Ministro da Fazenda faz um apelo, o Secretário do Tesouro promete nunca mais sair da linha, uma comitiva da agência é recebida com pompas e rapapés em Brasília. E fica o país inteiro na torcida, rebaixa ou não rebaixa.

E ela rebaixa. O Ministro da Fazenda esbraveja, a presidente reclama, o Secretário do Tesouro resmunga, a oposição comemora.

Nos dias seguintes, as Bolsas subiram como nunca tinham subido nos meses anteriores e o dólar caiu, aquela queda mansa de economias tranquilas.

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O pior é que esse serviço

O pior é que esse serviço porco feito pelas agências é PAGO com dinheiro dos nossos impostos.

O Brasil paga para ser difamado no exterior.

Oficialmente, o Brasil possui contrato para classificação de seu risco de crédito com as seguintes agências: Standard & Poor´s (S&P), Fitch Ratings (Fitch) e Moody´s Investor Service.

Adicionalmente, outras agências internacionais monitoram regularmente o risco de crédito do país, como a canadense Dominion Bond Rating Service(DBRS), as japonesas Japan Credit Rating Agency (JCR) e Rating and Investment Information (R&I), a coreana NICE Investors Service a a chinesa Dagong Global Credit Rating.

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Fabio !

Há 12 anos

Há 12 anos .............

 

São Paulo, terça-feira, 07 de maio de 2002 

LUÍS NASSIF

O risco-Brasil e a SEC

O governo brasileiro deveria jogar mais pesado contra os analistas e os bancos que produziram análises negativas sobre o país. E a reação tem de utilizar os instrumentos de regulação do mercado norte-americano. Para a SEC norte-americana, pouco faz o impacto dessas avaliações sobre países emergentes. Mas, por trás de cada operação dessas, há oscilação no mercado de títulos, beneficiando e prejudicando investidores locais.
Foi o que ocorreu com as avaliações sobre o suposto "risco Lula". Uma denúncia à SEC certamente levaria o órgão a investigar se os bancos que produziram as análises pessimistas se beneficiaram desses movimentos de mercado.
O momento é oportuno para isso e para
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Vai ver que a Agencia Chinesa

Vai ver que a Agencia Chinesa possui mais credibilidade que esta, já que China elevou a nota brasileira em vez de rebaixa-la. Por isso o dólar cai e a bolsa sobe!

Tudo por um país melhor!

imagem de Paulo Fernandes Teixeira
Paulo Fernandes Teixeira

Quando o medo abala a esperança.....

Quando deixar-mos de dar ouvudos aos pessimistas e começar a fazer as ações que são necessárias, independente dos preconceitos economicos que nos são impostos bem como o marasmo dos políticos,  a esperança derrotará o medo.

Nenhum empresário vai investir enquanto o Bafo do Dragão (alarde de descontrole inflacionario) for motivo para fazer com que nossos governandes tomem atitudes para restringir a demanda. O acrescimo da demanda é o sinal verde para aumentar investimentos. Uma das caracteristica do aumento da demanda é justamente uma pequena inflação que só sera debelada de forma consistente pelo aumento da oferta. Acabar com a demanda é empobrecer a população.É dar oportunidade para uma estagnção da economia. 

[...]ver mais

Patacoada.

Esse episódio me fez lembrar do FHC e aquela subserviência com o FMI. E olha que o FH não tinha saída, o que não se constata agora.

Franklin.

imagem de Luiz Antônio Nascimento
Luiz Antônio Nascimento

Cachorro Urubu

Baby a "estória" é a mesma, aprendi na quaresma...

( Cachorro Urubu- Raul Seixas)

Salve, salve, Borundia!

Salve, salve, Borundia!

Com efeito, tenho de recorrer ao Mr Nunca Dantes, quando expressou seu sentimento de ufania pátria desfraldando a célebre e retumbante frase 'nunca antes na história deste país'  para dizer: sim, nunca antes na história deste país a gente ficou sabendo como somos mesmos tão capiaus.

imagem de hilson mergulhão breckenfeld filho
hilson mergulhão breckenfeld filho

não tem credibilidade a

não tem credibilidade a ag~encia e menos ainda os apoiadores da pesquisa 

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segunda-feira, 17 de março de 2014

SNOWDEN DENUNCIOU ESPIONAGEM DOS EUA. OBAMA VARREU PARA DEBAIXO DO TAPETE. MÍDIA MERCANTIL ENGAVETOU O TEMA.

O palpitante e gravíssimo assunto que SNOWDEN fez o mundo tomar conhecimento já está a merecer troféu dos  temas mais evitados e "esquecidos" pela mídia empresarial alinhada ao imperialismo ianque. 
E no fundo, no fundo, nada mudou. 

Confira. 

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[Este é o blog do site Outras Palavras em CartaCapital. http://www.rodrigovianna.com.br/outras-palavras/page/11
 Aqui você vê o site completo]

Aos poucos vão surgindo as evidências de que a história trabalha mais a favor do ex-agente Edward Snowden, do que do presidente americano Barack Obama.

 Na quarta-feira (29/01), o ex-agente que revelou a maior plataforma de vigilância da história, foi indicado para concorrer o Prêmio Nobel da Paz. 

Oscar Wilde, escritor inglês do século XIX, sintetizou uma vez a importância histórica de fatos como este: “a desobediência, é aos olhos de qualquer estudioso da História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião”.

No outro lado da corda, Obama admitiu pela primeira vez em público (17/01), a necessidade de mudanças no trabalho da Agência de Segurança Nacional americana (NSA). 

Depois de sete meses de revelações cada vez mais desconfortáveis e crescente clamor público, ponderou: “nossa liberdade não pode depender das boas intenções de quem está no poder, e sim da lei que restringe esse poder”. 

Num longo discurso, apoiou alguns pontos do grupo de especialistas criado pela Casa Branca para reformular o sistema de vigilância do governo. 

Mas ignorou as sugestões mais importantes, mantendo-se em apenas dois pontos superficiais: 1) restringir progressivamente o programa de armazenamento maciço de dados telefónicos nos EUA, tal como existe hoje e; 2) limitar a espionagem sobre líderes aliados – inimigos continuam sendo alvo – , que provocou uma tempestade diplomática com países amigos.

Para os vastos setores da opinião pública que pedem o fim da perseguição a Snowden, o governo americano passou longe do esperado. Em seu editorial, o próprio New York Times classificou o discurso de Obama como “eloquente sobre a necessidade de equilibrar a segurança da nação com privacidade pessoal e liberdades civis”, mas “frustrante em detalhas e vago na implementação”.

 O jornalista Lorenzo Franceschi-Bicchierai, especialista nos assuntos sobre ciber-política na revista digital Mashable Nova York, listou algumas mudanças importantes que foram completamente ignoradas.

1. Todos os outros programas de coleta em massa de dados contiuam

Obama apoia a proposta do grupo de especialistas que criou, para retirar da NSA o banco de dados sobre as chamadas telefônicas. 

No entanto, o governo não pronunciou uma palavra sobre como restringirá a coleta em massa de metadados da Internet. 

“Esse tipo de programa pode ser utilizado para obter mais informações sobre nossas vidas privadas e abre as portas a outros programas mais intrusivos”, diz o NYT.

2. O Defensor Público, no Tribunal FISA

O grupo interno recomendou a criação de um “Advogado Defensor do Interesse Público”, para lutar pela privacidade e liberdades civis perante os juízes do “Tribunal FISA” – que podem impedir a coleta de dados privados sobre cidadãos… 

Advogados e juristas apoiaram a ideia, uma vez o “Tribunal FISA” não respeita direitos civis básicos. Apenas os defensores do governo podem prestar depoimento; as sessões e os vereditos são secretos. 

Obama porém, não confirmou a aceitação da proposta. Apenas disse, vagamente, que um grupo de especialistas participará das sessões secretas do tribunal. E que serão ouvidos só em “casos significativos…”

3. Revisão Judicial das Cartas da Segurança Nacional

O FBI vem usando as chamadas Cartas de Segurança Nacional há anos, para exigir que bancos, empresas de internet e de telefonia entreguem dados de seus clientes e usuários. 

Funcionam como uma espécie de “salvoconduto” administrativo, liberando o FBI para requerer dados dos usuários diretamente às empresas, sem necessidade de pedir uma autorização judicial. 

O grupo interno de Obama, sugeriu que mudasse esse procedimento, reformando a lei, para tornar indispensável a aprovação de um juiz em todos os casos. 

Porém, a Casa Branca apoiou apenas mais “transparência” e não disse uma palavra sobre a necessidade de supervisão judicial.

4. Espionagem nas bases de dados de empresas comerciais norte-americanas em todo o mundo

Documentos vazados em outubro por Snowden, revelaram que a NSA recolhia vasta quantidade de dados de usuários na internet, sem que as empresas como Google e Yahoo soubessem. 

A agência obtve acesso aos servidores onde os dados eram armazenados. Obama não disse nada a respeito e o porta-voz da Casa Branca, contatado pelo site Mashable, não quis comentar o assunto.

5. O trabalho da NSA para derrubar os padrões de segurança e encriptação

Em setembro, o New York Times revelou o enorme esforço da NSA para derrubar os padrões de segurança e encriptação, de modo que os agentes tivessem acesso a comunicação que usuários acreditavam estar protegidas.

A NSA e até o FBI foram acusados de invadir sistemas criptografados, depois de terem solicitado que empresas de software incluíssem “portas do fundos” nos programas vendidos a consumidores, uma espécie de entrada secretas, por meio das quais espionavam os usuários da nova versão do Windows, por exemplo.

O grupo para reformular a NSA, apoiou a criação de tecnologia mais forte de encriptação, argumentando que o governo não pode “de modo algum subverter, minar, enfraquecer ou trabalhar para tornar vulneráveis, softwares oferecidos à venda a consumidores como se fossem seguros.” Obama nada disse sobre o caso.

Graves denúncias,  nenhuma reposta

Obama também calou-se em relação às denuncias feitas ao longo dos últimos meses por grandes publicações internacionais, que se assustaram com a capacidade cada vez mais invasora da NSA. 

Numa das mais recentes, o New York Times revelou, em janeiro de 2014, o programa de implantação de vírus em cerca de 100.000 computadores mundo afora, para devassar dados e lançar ataques até mesmo a computadores sem acesso a internet. .

Usada desde 2008 para invadir computadores, a tecnologia via rádio permite contorna uma das principais dificuldades enfrentada pela agências durante anos: penetrar em maquinas cuja os adversários tornaram impermeável à espionagem ou ciberataque. 

O dispositivo é inserido fisicamente pelo fabricante do equipamento ou por um espião, transmitindo dados do computador visado comunicar através de radiofrequência.

O principal programa que usa este método radical de espionagem tem codinome Quantum. 

E entre seus alvos, estão o exército chinês; o sistema militar russo; a rede utilizada pelos cartéis mexicanos; instituições comerciais dentro da União Europeia, e terroristas inimigos da Arábia Saudita, Índia e Paquistão.

Ao expor tudo isso, Snowden girou a roda história. Revelou, lembra o New York Times, a ignorância e falta de controle do presidente americano, que não tinha conhecimento das operações obscuras perpetradas pela agência de segurança de seu próprio governo. 

Infelizmente, ao invés de parabeniza-lo, Obama preferiu desaprovar seus métodos. “A defesa da nossa nação”, disse, “depende em parte da fidelidade daqueles a quem os segredos são confiados”.

 A diferença é que, ao contrário do presidente, o ex-agente é mais fiel aos cidadãos do que as agências militares.

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sábado, 8 de março de 2014

Cabra macho de verdade não bate em mulher

Nossa homenagem às mulheres neste 8 de março. 
A foto do amigo Chico Lopes é novíssima. 
Já o meu poema é de 1987....


Deputado Federal Chico Lopes -PCdoB/CE


Mulher

Você que já foi escrava
E mucama de feitor
Foi súdita de todos os reinados
E virou propriedade
Registrada por sobrenome
Cidadã pela metade.


E já viveu festas e guerras
Invernos e primaveras
E a tantos foi prometida
Em meses de maio sem fim...
Sepultando seus amores
Seus horrores e segredos
Escondendo seus desejos
Torturando-se em seus medos.


Você que enfrenta todas as barras
Seja fora ou entre os seus    
Musa, mãe, trabalhadora
Operária, camponesa
Estudante, professora.

 

Você que ama e sorri
Você que às vezes chora
Morde os lábios
Enxuga as lágrimas
E não desiste.

 

Você é maravilhosa
É sempre algo de novo
É a mulher militante
Mistura de luta e paixão
Com o homem, lado a lado
Em busca da emancipação.


                     Luiz Carlos Orro



sexta-feira, 7 de março de 2014

Ucrânia: entre máfias e o expansionismo militar

Carta Maior 
06/03/2014

Alejandro Nadal - La Jornada - México

Mesmo que não desemboque em uma guerra, o conflito na Ucrânia e na Crimeia marcará de maneira decisiva as relações internacionais nos próximos anos.




A crise na Ucrânia pode desembocar em uma luta armada de consequências terríveis. 

Mesmo que não desemboque em uma guerra, o conflito na Ucrânia e na Crimeia marcará de maneira decisiva as relações internacionais e as percepções entre os europeus, norte-americanos e russos durante os próximos quinquênios.

As raízes dessa crise constituem um tema complexo e, por isso, é preciso desconfiar das narrativas simplistas (provenientes de Moscou ou Washington).
 
Entre as causas que levam ao conflito atual se encontram na expansão do militarismo norte-americano, que nunca abandonou suas obsessões da Guerra Fria. 

Também está na voracidade do capital financeiro, que busca consolidar o neoliberalismo na Ucrânia.

As máfias que estão no poder na Rússia e em Kiev são o complemento perfeito para detonar o conflito.

 Para o povo ucraniano, as opções foram permanecer sob o domínio de máfias que simpatizam com Moscou ou se entregar a máfias inclinadas à aproximação com a União Europeia e Washington.

 O pano de fundo desse coquetel explosivo é a longa história de nacionalismos e movimentos separatistas.
 
Sem dúvidas, para muitos leitores, falar de “expansão do militarismo norte-americano” soa como exagero. Mas é preciso considerar os seguintes elementos. 

Em 1949, criou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Sua missão era clara: enfrentar as forças que a União Soviética tinha estacionadas em seu território e nos países da Europa do leste. A URSS respondeu criando seu próprio bloco, com o Tratado de Varsóvia.

A OTAN parecia ter perdido sua razão de existir com a derrocada da URSS. Os arsenais nucleares dos Estados Unidos e da Rússia foram objeto de vários tratados de redução de armas estratégicas e, em termos gerais, criou-se uma atmosfera de certa distensão. 

Mas as correntes mais conservadoras nos Estados Unidos não resistiram à tentação de aproveitar o momento para buscar a expansão da OTAN e deslocar a linha divisória da antiga Guerra Fria até a fronteira com a Rússia.

A OTAN não apenas manteve, mas também cultivou suas ambições estratégicas no que havia sido o espaço soviético durante a Guerra Fria. Essa expansão se iniciou com Clinton e prosseguiu com Bush. 

Para alguns analistas, a isso se somam os sonhos do Pentágono de um dia ver a frota norte-americana ancorar em Sebastopol e Balaclava, os principais portos da Crimeia. Mas o sonho do Pentágono é um pesadelo para o nacionalismo russo.

Em 1999, Polônia, Hungria e República Tcheca entraram na OTAN em meio a um feroz debate e à oposição da Rússia. Em 2004, foi a vez das repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia), além da Eslovênia, da Bulgária e da Romênia. Poucos analistas se detiveram para pensar como a Rússia interpretaria esse processo.

George F. Kennan, provavelmente o mais perspicaz e experiente artífice da política externa norte-americana, advertiu em 1997 que a expansão da OTAN constituía “o erro mais grave e detestável dos Estados Unidos na história do pós-guerra”. 

Para Kennan, esse ato “inflamaria o militarismo russo e afogaria a democracia, porque impulsionaria a política externa russa em direção a objetivos que não seriam de nosso agrado”.

Ninguém o escutou e, em 2008, George W. Bush fez planos para que a Geórgia e a Ucrânia se tornassem membros da OTAN. 

Por isso, o comunicado do encontro da OTAN em abril desse ano ressalta que “Georgia e Ucrânia serão membros da OTAN”, ainda que sem especificicar a data.

 O conflito entre Rússia e Geórgia em 2008 alertou os europeus sobre o risco de continuar por essa via, e isso freou os planos de outorgar à Ucrânia um “plano de condição de membro”, o primeiro passo para entrar na OTAN. 

A leitura russa de todo esse processo foi imediata: Washington e seus aliados não abandonaram suas prioridades da guerra fria, e sua estratégia continuava sendo rodear a Rússia por todos os seus flancos.

Depois do colapso da URSS, a Ucrânia se converteu no terceiro maior estado em quantidade de armas nucleares (depois de Estados Unidos e Rússia). 

Mas, em 1996, todo o seu armamento nuclear havia sido entregue à Rússia, e a Ucrânia se transformou em um estado livre de armas nucleares. Embora o exército ucraniano não possa deter uma ofensiva russa, tampouco estamos falando de uma força desprezável, e qualquer conflito armado teria consequências desastrosas. 

A economia mundial, e em especial a europeia, não estão prontas para enfrentar o castigo de um espetacular aumento nos preços do petróleo, além do desabamento dos mercados de capital e a volatilidade sem par das principais divisas.

Para conseguir uma maior integração econômica com a Ucrânia, a União Europeia buscou negociar um pacto que daria a Kiev um status privilegiado comercial e financeiramente. 

Bruxelas ainda ofereceu um trato especial em matéria de vistos e outros incentivos, mas em dar a condição de membro. 

O verdadeiro objetivo da UE é reduzir a influência russa, especialmente depois da iniciativa de Putin na Síria (que esfriou os planos mais intervencionistas dos Estados Unidos) e da concessão do asilo a Snowden (fato que Washington não perdoa).

O pacote oferecido pela UE incluía as típicas medidas de austeridade que colocaram a Grécia de joelhos e causaram tanto dano à Europa. 

Mas o mais importante é que o tratado com a UE incluía cláusulas de conteúdo militar que obrigariam a Ucrânia a seguir os alinhamentos estratégicos da OTAN. Para Moscou, isso seria o cúmulo e, por isso, intensificou a pressão sobre o corrupto presidente ucraniano Yanukovich.
 
No último dia 9 de novembro, Putin se reuniu secretamente com seu colega ucraniano para assinar um tratado alternativo entre Kiev e Moscou.

 Na reta final, além do acesso ao mercado russo, Putin se dispôs a perdoar parte importante da dívida ucraniana, além de vários milhões de euros em créditos.

O anúnciou gerou uma onda de protestos que terminou por derrubar Yanukovich. Moscou sentiu que perdeu a oportunidade de frear as pretensões de expansão dos norte-americanos e europeus. 

A intervenção na Crimeia é uma resposta arbitrária, perigosa e para lá de ilegal. Infelizmente, nenhuma das potências que hoje pretende dar lições de civilidade a Moscou tem as mãos limpas. 

A hipocrisia de Washington é grande, mas no chega a ocultar seu desprezo pelo direito internacional. Os exemplos de invasão ao Iraque e ao Afeganistão (antes de o Conselho de Segurança autorizar uma intervenção) ainda estão frescos na memória.

Sobra pouco tempo para resolver a crise. Se ele não for aproveitado, será trilhado o caminho que conduz ao conflito armado. 

Moscou poderia retirar suas tropas da Crimeia em troca de voltar ao status quo ex-ante (leis de estrangeiros e do idioma russo). 

Mas o tom belicoso e a ameaça de sanções provenientes de Washington e Bruxelas não vão acalmar os ânimos.

Tradução: Daniella Cambaúva



Urariano Mota debate racismo e os novos escravos do Brasil

Do Portal Vermelho

07/03/2014

Direto de Olinda, em Pernambuco, o escritor e jornalista Urariano Mota reflete sobre o racismo, os novos escravos os Brasil. Durante sua reflexão, Urariano traça um paralelo entre o "12 anos de escravidão" e pensamento de Gilberto Freyre. 

Da Rádio Vermelho em São Paulo


A partir de uma análise crítica, o colunista daRádio Vermelhonarra cena que presenciou na última sexta-feira (28), que antecedeu o carnaval. "Na fila do cinema aonde fui, não havia um só negro. Minto: havia só este mulato que agora escreve. Ao procurar outro na fila, recebi dos cidadãos de pele mais clara uns olhos envergonhados, que se baixavam até o chão. Tão Brasil. Tão brasileiro é o pudor educado para o que não se enfrenta. Mas o filme na tela nos pagaria. Lá, podemos ver o retrato da casa-grande: a indiferença de todos ante a tortura. Linda, a sinhá olha da varanda o negro ser torturado e nada vê, melhor, assiste ao espetáculo obsceno como uma liberalidade do senhor, o seu marido. Que aula. É um filme quase didático da infâmia, do que no Brasil está encoberto até hoje".
Segundo ele, "a realidade no filme mostra um escravo na forca, pendurado por horas em uma árvore, enquanto a rotina da fazenda segue sem distúrbio, sem assaltos de horror ou de repulsa. Mas isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, na sua, jovens são amarrados em postes, os velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento".



Gilberto Freyre, em Casa e Senzala


Urariano lembrou que foi em Gilberto Freyre que a ideia de uma escravidão suave no Brasil ganhou sua expressão mais conhecida e influente. Já em sua tese de mestrado, apresentada em 1922 nos Estados Unidos, ele afirmava: "Na verdade, a escravidão no Brasil agrário-patriarcal pouco teve de cruel. O escravo brasileiro levava, nos meados do século XIX, quase vida de anjo, se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses, ou mesmo com a dos operários do continente europeu, dos mesmos meados do século passado." (Freyre, 1964 [1922]:98).

"Para Freyre, teriam prosperado as atitudes benignas dos senhores em relação aos escravos. "Era demorando numa casa, numa fazenda ou numa estância, afeiçoando-se a uma família ou a um senhor, que o escravo se fazia gente da casa, pessoa da família." E demorando em velhas propriedades, que passavam solidamente de geração em geração, sem que seus proprietários desejassem ou buscassem grandes mudanças ou enriquecimento rápido", afirmou Urariano Mota.

Ouça a reflexão de Urariano Mota na Rádio Vermelho:

Coluna Prosa, Poesia e Política  

O livro 'O império americano: hegemonia ou sobrevivência', de Noam Chomsky


Por Fábio de Oliveira Ribeiro

O conflito na Ucrânia renovou o interesse por esta obra de Noam Chomsky, por isto resolvi republicar aqui a resenha que fiz da mesma há algum tempo. O império americano: hegemonia ou sobrevivência, editora Campus, é uma obra que questiona profundamente a política externa norte-americana baseada no uso da violência, bem como sua base de sustentação jornalística (que tem ajudado muito aos ocupantes da Casa Branca a seguirem brutalizando supostos inimigos enquanto eles mesmos não são tratados como líderes brutais).

Logo de saída Chomsky assegura que enquanto “...os métodos nas sociedades mais brutais diferem acentuadamente daqueles da sociedades mais livres, as metas, em muitos sentidos, são as mesmas: assegurar que a 'grande besta', como Alexandre Hamilton chamou o povo, não escape do espaço limitado que lhe cabe.”  Um pouco mais adiante, o autor completa seu raciocínio de maneira brilhante “Enquanto o inimigo doméstico precisa ser, em geral, controlado pela propaganda intensiva, no exterior meios mais diretos se encontram disponíveis. Os líderes do atual governo Bush - em sua maioria membros reciclados dos setores mais reacionários dos governos Reagan e Bush I - fornecem exemplos bastantes claros ao longo de seu período anterior no governo.”

A propaganda oficial, a cobertura jornalística favorável das ações governamentais e os conflitos externos mantém o povo norte-americano entretido. Isto permite aos ocupantes da Casa Branca continuarem a construir e ampliar um império global. É inevitável perguntar, portanto, como é que se constrói um império?

A resposta de Chomsky é clara: ignorando o direito internacional. “O desdém pelas leis e instituições internacionais foi especialmente flagrante nos anos Reagan-Bush - o primeiro dos membros do atual círculo de Washington -, e seus sucessores continuaram a insistir que os Estados Unidos se reservavam o direito de agir 'unilateralmente quando necessário', incluindo aí o 'uso unilateral de poderio militar' para defender interesses vitais, tais como 'o acesso ilimitado a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos estratégicos”'

Essa postura, contudo, não era propriamente nova. A opção norte-americana pela supremacia da força bruta à civilidade da Lei Internacional em relação ao Iraque teve conseqüências dramáticas. “Povos e regimes terão que mudar a maneira como encaram o mundo 'de uma visão fundamentada na ONU e no direito internacional para outra, baseada na compatibilidade”'com os planos de Washington. Todos estão sendo aconselhados, pela demonstração de força, a pôr de lado 'quaisquer questões relevantes de interesse internacional' em prol da 'satisfação dos objetivos americanos.' "

É evidente que a arrogante postura da Casa Branca vai gerar uma nova corrida armamentista. A China já aumentou suas despesas militares deixando os norte-americanos arrepiados. Os iranianos não abrem mão de seu programa nuclear porque tem razões de sobra para imaginar que serão tratados como os iraquianos. Nenhuma nação que pretenda preservar sua independência e integridade territorial pode sentir-se tranquila diante de um gigante comandado por gente disposta a impor-se pela força. Apesar de manter relações amistosas com os EUA o Brasil já começou a implementar um ambicioso programa de modernização das suas Forças Armadas. A aquisição de novos navios e tanques de guerra, a construção de submarinos convencionais e nucleares e a compra de jatos Gripen e de helicóteros de ataque franceses e russos tem uma finalidade evidente: preservar e ampliar a capacidade do Brasil de defender os recursos naturais que existem em nosso território e mar territorial.

Não é de hoje que os EUA fizeram a opção pela supremacia da força ao direito. Segundo Chomsky, desde “... a Segunda Guerra Mundial, o governo americano adota a prática-padrão dos países poderosos, normalmente escolhendo a força em lugar da lei quando isso é considerado 'de interesse nacional', um termo técnico para rotular os interesses específicos de setores domésticos em posição de ditar políticas.”

Em razão desta e de outras afirmações de Chomsky, podemos concluir que aquilo que chamamos de “democracia americana” é na verdade um “liberalismo oligárquico". O povo norte-americano tem o direito de votar, mas não detém o efetivo controle político dos destinos do país. Os donos do poder são aqueles que financiam as campanhas eleitorais ou proporcionam aos políticos a satisfação de seus desejos e em troca adquirem o direito de se impor dentro e fora das fronteiras dos EUA.

Nesse contexto, podemos compreender perfeitamente porque a  “...visão da elite dominante com relação à ONU foi definida, em 1992, por Francis Fukuyama, ex-membro do Departamento de Estado do governo Reagan-Bush: a ONU é 'perfeitamente usável como um instrumento do unilateralismo americano e, com efeito, provavelmente o principal mecanismo pelo qual este unilateralismo será exercido no futuro.' Tal previsão se mostrou acurada, talvez por ter se baseado em uma prática contumaz cuja origem remonta aos primórdios da ONU."

Ao analisar detidamente a “diplomacia do porrete” que tem sido usada por diversos ocupantes da Casa Branca, Noan Chomsky reproduz o seguinte discurso “para criar democracias verdadeiras é preciso certa pressão externa... Não devemos hesitar em usar esse tipo de 'interferência nos assuntos internos' de outros países... Já que o governo democrático é uma das principais garantias de uma paz duradoura.”  O discurso, que era usado pelos diplomatas de Stalin, poderia muito bem ter sido proferido por Bush II, Donald Rumsfeld, Dick Cheney ou Condoleezza Rice a propósito do Iraque, Irã ou Coréia do Norte. Mas é claro que se o Kremlin ou Pequim usarem a mesma estratégia diplomática a Casa Branca acusaria a Rússia e a China de imperialismo, de violação do direito dos povos à autodeterminação, ou seja, de tudo aquilo que os EUA merecem ser acusados à pelo menos um século.

Chomsky não faz crítica de cinema. Entretanto, as informações que divulga em seus livros costumam nos ajudar a compreender melhor como a indústria cinematográfica ajuda a moldar e manter uma ideologia que atende aos propósitos imperiais dos ocupantes da Casa Branca. Nos "American movies" os EUA é quase sempre retratado como um país destinado por Deus a liderar os outros povos; apesar de seus defeitos, o povo norte-americano é na maioria das vezes representado como sendo virtuoso e dotado de costumes superiores; salvo raríssimas exceções, que são superadas ao longo das tramas, os líderes políticos e militares norte-americanos são imbuídos dos melhores propósitos.

Há algum tempo foi lançado o filme “Os 13 dias que abalaram o mundo”. Esta obra procura retratar o heroísmo dos irmãos Kennedy durante a crise dos mísseis em 1962. Quem assiste ao filme fica com a clara impressão que quem salvou o mundo de um holocausto nuclear foram Bob e John F. Kennedy. Entretanto, como quase sempre ocorre, a vida não imitou a arte. O verdadeiro herói daquele incidente foi um marinheiro russo absolutamente desconhecido.

Como afirma Chomsky, durante uma conferência realizada em Havana em 2002, foi revelado que “ 'Um sujeito chamado Arkhipov salvou o mundo', disse Thomas Blanton, do arquivo de Segurança Nacional em Washington, que ajudara na organização do evento. Ele se referia a Valisi Arkhipov, um oficial da Marinha soviética que, a bordo de um submarino, barrou uma ordem de lançar torpedos nucleares em 27 de outubro, no momento mais tenso da crise, quando os submarinos estavam sendo atacados por destróires americanos. Era de se esperar uma reação devastadora, detonando uma guerra de grandes proporções.”

É evidente que a grande maioria dos norte-americanos nunca ouviu e provavelmente nunca ouvirá falar de Vasili Arkhipov. Entretanto, dezenas de milhões de norte-americanos já viram e muitos mais no futuro verão o “Os 13 dias que abalaram o mundo”. Assim, a versão cinematográfica do suposto heroísmo dos irmãos Kennedy se tornou e certamente continuará a ser uma realidade ideológica para a maioria dos norte-americanos. A verdade, por outro lado, permanecerá acessível apenas a alguns privilegiados e leitores de Chomsky e de outros autores que narram o que realmente ocorreu. Curiosamente, o predomínio da ideologia à verdade era uma característica dos regimes nazista, fascista e comunista como notou Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo. Segundo a grande filosofa "...O possuir poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto, mantendo o seu desprezo pelos fatos e impondo a rígida observância das normas do mundo fictício que criou." (Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras, 2011, p. 442).

O julgamento de Saddan Hussein por crimes de guerra foi usado com uma excelente peça de propaganda pela administração Bush II. Entretanto, ninguém além de Chomsky cogitou a possibilidade de julgamento de líderes norte-americanos, israelenses e ingleses por terem cometido crimes similares. Ao longo de sua obra o lingüista não somente detalha os crimes brutais cometidos pelo Ocidente, mas também a forma encontrada pela imprensa para proteger alguns notórios criminosos de guerra: o silêncio, a distorção da verdade e, principalmente, a utilização de dois padrões morais: um para julgar os EUA, Israel e Inglaterra; outro para julgar os inimigos oficiais destes países.

Nas palavras de Chomsky, a “...Quarta Convenção de Genebra, instituída para criminalizar formalmente os crimes dos nazistas na Europa ocupada, é um princípio nuclear do direito humanitário internacional. Sua aplicabilidade aos territórios ocupados por Israel tem sido repetidamente afirmada, entre outras ocasiões, pelo embaixador na ONU George Bush (setembro de 1971) e pelas resoluções do Conselho de Segurança. Aí se incluem a Resolução 465 (1980), unanimemente adotada, que denunciou as práticas israelenses apoiadas pelos Estados Unidos como 'violações flagrantes' da Convenção, e a Resolução 1322 (outubro de 2000), aprovada por 14 a 0 (abstenção americana), que exigiu que Israel cumprisse escrupulosamente suas responsabilidades perante a Quarta Convenção de Genebra'. Como Altos Signatários, os Estados Unidos e as potências européias são obrigados por compromisso solene a deter e processar os responsáveis por tais crimes, incluindo seus próprios líderes. Ao descumprir de modo contumaz, esse dever, eles estão 'incentivando o terrorismo' - pedindo de empréstimo as palavras de Bush II ao condenar os palestinos.”

A propósito da militarização da vida em Israel, Chomsky afirma que a  “...Intifada trouxe também à tona mudanças significativas que vinham ocorrendo dentro de Israel. A autoridade dos militares israelenses alcançara níveis tais que o correspondente militar Ben Kaspit descreveu Israel não como 'um país com um Exército, mas um Exército com um país'."

No último capítulo do livro Noam Chomsky alerta para a crescente militarização do espaço. Segundo o ilustre ativista e pacifista, através do DARPA o governo norte-americano pretende ter uma vantagem estratégica sobre todos os países. Entre os projetos gerenciados pelo DARPA estão: a) o desenvolvimento de tecnologias que permitam a destruição de satélites civis e militares de países considerados adversários ou inimigos dos EUA;. b) lançamento de ataque com mísseis posicionados no espaço; c) orientação precisa de ataques preventivos em qualquer ponto do planeta. A preocupação de Noam Chomsky é justificável e deveria sugerir uma campanha contra a militarização do espaço.

Apesar do livro suscitar muitas outras controvérsias, encerro aqui minha resenha. Não vou tirar do leitor o prazer de saborear por inteira mais esta conversa com um norte-americano que tem coragem de mostrar os podres de seu próprio país. 

Da ditadura militar brasileira – 2ª parte - por Augusto C. Buonicore


Por Augusto C. Buonicore
Sítio Fundação Maurício Grabois
Na primeira parte deste artigo, Buonicore demonstrou que a utilização dos conceitos golpe militar e ditadura militar não foram criados para encobrir o caráter de classe daqueles acontecimentos e sim para captar suas especificidades. Os críticos de esquerda do conceito ditadura militar – que o acusam de encobrir a participação dos empresários naquele regime – incorrem no erro de confundir a natureza de classe do Estado com a sua forma.
Na primeira parte deste artigo buscamos demonstrar que a utilização dos conceitos golpe militar e ditadura militar têm uma longa tradição no seio da esquerda brasileira. Não foram criados para encobrir o caráter de classe daqueles acontecimentos e sim para captar suas especificidades. Como disse Quartim de Moraes: “O sentido de um termo (...) apresenta um valor semântico determinado por seu emprego, isto é, pelas significações que foi vinculando ao longo de sua trajetória”. Os conceitos têm sua história que deve ser respeitada.
Para entender o conceito ditadura militar faz-se necessário retornarmos às bases da teoria política marxista. É isso que faremos de maneira bastante sintética e esquemática. O Estado é uma organização que, fundamentalmente, se destina a garantir a dominação de uma classe sobre outra. Diferentes tipos de Estados correspondem aos diferentes tipos de modos de produção – por exemplo, escravista, feudal, asiático, capitalista e socialista. A forma de governo (ou regime político) é a maneira pela qual o poder classista do Estado se apresenta num determinado momento histórico. Por isso, ela muda mais rapidamente do que o seu conteúdo classista.
Os críticos de esquerda do conceito ditadura militar – que o acusam de encobrir a participação dos empresários naquele regime – incorrem no erro de confundir a natureza de classe do Estado com a sua forma. Não veem que a ditadura militar – como o fascismo, o bonapartismo, a monarquia, a república democrática – é apenas uma das formas pela qual pode se apresentar o domínio da burguesia. Quando a esquerda revolucionária brasileira nas décadas de 1960 e 1970 afirmava que vivíamos sob a égide de uma ditadura militar estava simplesmente se referindo à forma de governo despótico existente, que objetivava defender os interesses da grande burguesia monopolista em aliança com o latifúndio e apoiada pelo imperialismo estadunidense.
Outro erro que alguns críticos do conceito ditadura militar cometem é confundir o caráter de classe de um Estado (vinculado à fração hegemônica no bloco no poder) com a sua base social de apoio. Uma ditadura da burguesia monopolista e financeira pode, em alguns momentos, ter como base social de apoio setores das camadas médias e mesmo das classes populares. Foi o que ocorreu durante o período de domínio nazista na Alemanha. Isso não significa que o nazismo fosse uma ditadura da pequena burguesia, como chegaram a aventar alguns teóricos. Dentro da mesma lógica dos que argumentam a estreiteza do termo ditadura militar, poderíamos dizer que o conceito Estado (ou regime) nazista encobriria o apoio dado pelos grandes industriais e financistas alemães a Hitler.
O Golpe de Estado no Brasil
Ninguém tem dúvida de que entre nós ocorreu um Golpe de Estado em 1964. Apenas meia dúzia de carcomidos ainda chama aquilo de revolução. Mas, o que é tecnicamente um Golpe de Estado? O Dicionário de Política – organizado por Bobbio, Matteucci e Pasquino – afirma que, em primeiro lugar, “é um ato realizado por órgãos do próprio Estado”. Ou seja, é um ato de força  executado fundamentalmente por algum ramo da burocracia civil e militar contra determinada forma de legalidade. Continua: “(...) na maioria dos casos, quem toma o poder político através de golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes militares. O golpe militar (...) tornou-se a forma mais frequente do Golpe de Estado”. Os civis compareceriam como apoiadores e até mesmo como beneficiários, mas não (tecnicamente) como executores. Foi, justamente, o que ocorreu no Brasil em 1964. Contudo, diferentemente dos golpes ocorridos antes, os militares, além de derrubarem o governo legal, resolveram permanecer no centro do poder, desalojando a elite político-civil que os havia apoiado. O resultado foi a implantação entre nós – pela primeira vez – de uma ditadura tipicamente militar.
Isso, é claro, não deve encobrir o fato de que o golpe foi uma reação das classes economicamente dominantes ao crescimento do protagonismo popular, especialmente dos trabalhadores urbanos e rurais. Temiam que as mobilizações crescentes em defesa das reformas de base poderiam levar as coisas a extrapolarem os limites da ordem liberal burguesa. Como sempre acontece nesses momentos, chamaram as Forças Armadas para darem um basta na situação. Assim, pelo seu conteúdo, o golpe foi burguês e visava a preservar a ordem supostamente ameaçada. Contudo, a forma adquirida por ele foi o de um “pronunciamento” militar.
Cabe ressaltar que a base social desse movimento golpista não se reduzia aos burgueses, que representam uma ínfima minoria da população. Para ser bem sucedida, a grande burguesia e o imperialismo estadunidense precisaram mobilizar as camadas médias, sempre temerosas diante da proletarização e do comunismo. Foram elas que encheram as ruas de São Paulo na monumental (e patética) Marcha da Família com Deus pela Liberdade e as do Rio de Janeiro na Marcha da Vitória após o golpe. Nem por isso é correto dizer que o ocorrido em 1º de abril de 1964 foi um golpe das classes médias ou que elas tenham sido as maiores beneficiárias.
Não entraremos nos meandros da conspiração, envolvendo civis e militares, que precedeu ao fatídico “1º de abril”, trataremos do golpe propriamente dito. Ao tomar conhecimento do discurso de Jango numa solenidade promovida por uma associação de sargentos e suboficiais, realizada na noite do dia 30 de março, os generais Mourão Filho e Carlos Luís Guedes resolveram rebelar-se com suas tropas em Minas Gerais, marchar rumo ao Rio de Janeiro e derrubar o governo.
A mobilização da opinião pública conservadora e a inação do governo, que ainda possuía tropas leais e podia ter tentado virar o jogo, decidiram a partida a favor dos golpistas. Os generais que ainda vacilavam, amedrontados de se envolverem numa luta cujo resultado era imprevisível, adquiriram súbita coragem e aderiram ao golpe. Este era o caso de Amaury Kruel, comandante do II Exército de São Paulo. Logo o I e o II Exércitos estavam unificados contra Jango. Dois dias depois seria a vez de o comando do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, incorporar-se à intentona.
Neste momento, a direção dos acontecimentos saiu das mãos do precipitado e atabalhoado Mourão Filho e passou para as do grupo liderado pelos generais Castelo Branco e Costa e Silva. Estes, mais organizados, eram os verdadeiros líderes da sedição nos quartéis e mantinham contatos íntimos com os conspiradores civis e, especialmente, com o embaixador dos Estados Unidos.
Na noite de 1º de abril, com o presidente ainda em território nacional e sem quorum para decretar o seu impeachment, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República e entregou o cargo ao presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili. Este ato ilegal – mais simbólico que efetivo – não desempenhou papel significativo no golpe já vitorioso. Tentava-se apenas dar uma aparência de legitimidade à ação violenta desenvolvida pelos militares diante do público externo. Na verdade, os generais não precisaram disso para chegar e se manter no poder.
O general Arthur da Costa e Silva, autonomeado ministro da Guerra, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo – nomeados ministros da Marinha e da Aeronáutica – constituíram o chamado Comando Supremo da Revolução. Foi este comando que promulgou o primeiro Ato Institucional, em 9 de abril de 1964. O texto não deixava dúvidas de quem tinha as rédeas nas mãos: “(...) fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimidade”.
Outro fato mostra claramente a relação que iria se estabelecer entre os militares e seus apoiadores civis. O Congresso, liderado por udenistas e pessebistas, havia tentado se antecipar aos fatos e aprovar um Ato Constitucional – com o mesmo conteúdo do AI-1 –, dando plenos poderes ao Comando Supremo da Revolução para limpar a cena política dos comunistas, trabalhistas e demais opositores. Os generais, simplesmente, desconsideraram este ato de subserviência e buscaram deixar claro de onde provinha o poder.
Através do AI-1, o presidente poderia apresentar emendas constitucionais ao Congresso, que teria apenas 30 dias para examiná-las, sendo necessário para aprová-las maioria simples e não 2/3 dos votos como determinava a Constituição ainda vigente. Poderia decretar Estado de sítio por até 60 dias, sem autorização do Congresso; teria o direito de suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão; cassar mandatos parlamentares e demitir servidores públicos.
Para garantir que um dos seus pudesse galgar à presidência, revogou a cláusula constitucional que impedia que oficiais da ativa pudessem se candidatar. Em 11 de abril – dois dias depois –, o Congresso elegeu o general Castelo Branco. Talvez, essa tenha sido a última decisão importante que a “elite civil” pode se considerar coautora. Mesmo assim – apesar das aparências –, o ato formal de escolha no parlamento foi apenas o reconhecimento de um fato consumado pela força das armas. Em poucos meses foram cassados 50 deputados e senadores. Entre as vítimas mais ilustres estava Juscelino Kubitscheck, que votara em Castelo Branco.
A legislação determinava e Castelo prometia realizar eleição direta no final de 1965. Contudo, o governo conseguiu arrancar do Congresso a prorrogação do mandato presidencial por um ano. Diante dessa medida, que lhe roubava a possibilidade de chegar à presidência, Carlos Lacerda passou a fazer duras críticas ao governo de Castelo Branco.
Em outubro de 1964 quem entrou na alça da mira dos militares foi Áureo de Moura Andrade – o mesmo que havia declarado vaga a presidência. Acusado de corrupção teve de responder a um Inquérito Policial-Militar (IPM). Diante disso, exclamou: “Esta revolução foi feita para salvar o Brasil, mas está sendo literalmente liquidada por homens que pretendem implantar a ditadura (...). (...). Ninguém ignora que, à sombra dessa revolução, cresceram muitos inimigos da democracia que querem fechar o congresso, revogar a Constituição, suprimir as liberdades do povo e implantar um regime ditatorial fascista”.
No dia 23 de novembro de 1964, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, deuhabeas corpus ao governador de Goiás, Mauro Borges, que estava sendo ameaçado de cassação. Decidiu que ele somente poderia ser processado com o aval da Assembleia Legislativa. Apesar disso, três dias depois, foi decretada a intervenção no Estado e destituído o governador. Assumiu em seu lugar o coronel Meira Matos. Nesse primeiro período outros governadores foram cassados, como o do Rio de Janeiro, substituído pelo marechal Paulo Torres, e do Pará, substituído pelo coronel Jarbas Passarinho.
Uma das análises mais argutas desse processo foi feita por Décio Saes. Segundo ele, em 1964, amplos setores das classes médias e da burguesia desejavam uma ditadura provisória, que limpasse as instituições da influência das correntes comunistas e populistas. Contudo, a militarização do aparelho de Estado tornou-se “uma tendência permanente e irreversível” e levou à “ascendência crescente do poder executivo – controlado em última instância pelo grupo militar – sobre o parlamento e o poder judiciário”. O objetivo dos militares passará a ser a neutralização do conjunto da “classe política” e a “rejeição das próprias formas democráticas parlamentares”.
Os militares avançam
Em 3 de outubro de 1965 ocorreram as primeiras eleições no novo regime. Foram colocados em disputa onze governos estaduais e a oposição venceu nos mais importantes: Minas Gerais, Guanabara, Santa Catarina e Mato Grosso. Os dois primeiros eram governados pelos principais líderes civis do golpe, os udenistas Lacerda e Magalhães Pinto.
Em resposta, no dia 27 de outubro, foi decretado o Ato Institucional nº 2. O presidente agora poderia estabelecer o Estado de Sítio por até 180 dias e decretar o recesso do Congresso e outras casas legislativas. O novo ato extinguiu os partidos políticos existentes, criando o bipartidarismo, e colocou um fim nas eleições diretas para presidente. Alguns dias depois, através do AI-3, estabeleceu-se que os governadores também não seriam eleitos diretamente pelo povo e sim pelas assembleias estaduais. Os prefeitos passaram a ser indicados pelo governador. Em junho de 1966, Castelo Branco cassou o governador Adhemar de Barros – o articulador da Marcha da Família com Deus pela Liberdade –, que foi obrigado a sair do país para não ser preso por corrupção.
Em 12 de outubro de 1966 – nove dias depois da eleição indireta do general Costa e Silva –, desrespeitando um compromisso feito junto às lideranças governistas no congresso, Castelo Branco decretou a cassação de seis deputados do MDB. O presidente da Câmara dos Deputados, o arenista Adauto Lúcio Cardoso, recusou-se a aceitar as cassações e permitiu que os parlamentares punidos continuassem em seus postos.
Diante da resistência, o governo simplesmente fechou o Congresso. Tropas do exército ocuparam as suas dependências, além de cortar a água e a luz do edifício. O jornalista Carlos Chagas descreveu a cena: “Na mesma hora, por todas as entradas do Congresso a soldadesca invadiu em acelerado. O grito era ‘civis fora! Civis fora!’”. O diálogo entre o comandante da operação e o presidente da Câmara, que já se conheciam, muito nos diz sobre as relações assimétricas existentes entre os dois poderes. Diante do parlamentar, o coronel falou em voz alta: “Eu sou o poder militar. E o senhor, quem é?”. Numa postura dramática de reverência, o deputado respondeu: “Eu sou o poder civil e curvo-me à força dos canhões”.
O Congresso desfalcado pelas cassações foi reconvocado em dezembro para, a “toque de caixa”, aprovar o projeto de Constituição enviado pelo governo militar. Nascia, assim, guarnecida pelas armas, a Constituição de 1967. Nela, o poder Executivo militarizado era ainda mais fortalecido. O Congresso, inclusive, já havia perdido a capacidade de legislar sobre matéria orçamentária.
Lacerda, então, resolveu fazer um lance arriscado e se jogou na formação da Frente Ampla. Para isso procurou seus adversários históricos Juscelino Kubistchek e João Goulart, ambos cassados. A experiência durou pouco. Bastou que se iniciassem as primeiras manifestações estudantis em 1968 para que a frente oposicionista fosse fechada. Em junho, o ex-presidente Jânio Quadros foi detido e confinado em Mato Grosso. Esses exemplos mostram a falácia dos que afirmam que a ditadura militar começara apenas em 1969.
No final de 1968 o regime estava novamente em crise – e não pelas manifestações de ruas que haviam retrocedido, mas devido às resistências surgidas no seu próprio campo. Em dezembro a Câmara se recusou a dar permissão para que se processasse o deputado Márcio Moreira Alves. Inúmeros deputados da Arena votaram a favor da imunidade do parlamentar. O STF, contra a vontade do governo, deu habeas corpus para os líderes estudantis presos em Ibiúna. Vozes discordantes já se ouviam no Tribunal Superior Militar.
Em 13 de dezembro, um dia depois da votação no Congresso e no STF, o governo baixou o Ato Institucional nº 5 – o mais truculento de todos. O parlamento foi fechado e os direitos civis e políticos suspensos – entre eles o habeas corpus. À sombra desse ato foram cassados 113 deputados federais e senadores; 190 deputados estaduais, 30 prefeitos e 4 ministros dos tribunais superiores. Ironicamente, no dia seguinte ao ato, Carlos Lacerda foi preso pela polícia militar da Guanabara.
O último acontecimento que iremos tratar aqui é o da sucessão de Costa e Silva. O general-presidente ficou enfermo e impossibilitado de governar. Pela constituição do regime militar, deveria assumir o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo. Mais do que depressa, os ministros militares impediram sua posse e o colocaram sob uma espécie de prisão domiciliar. Uma junta militar passou a dirigir o país até a escolha do novo presidente.
Desta vez acharam uma forma original de fazer isso – e que traduzia mais fielmente o caráter do regime. Fez-se uma primeira eleição apenas entre os generais, almirantes e brigadeiros. O escolhido nesta forma peculiar de democracia militar foi Emílio Garrastazu Médici. O Congresso – expurgado de todas as vozes discordantes – foi reconvocado para sufragar o nome escolhido pela cúpula das Forças Armadas. Isso demonstra que a existência formal de um parlamento não faz de nenhum país uma democracia.
A militarização do aparelho de Estado
Escreveu João Roberto Martins Filho: “(...) o afastamento dos representantes propriamente políticos (da burguesia) expressou-se institucionalmente no surgimento e consolidação de sedes de poder castrense – a presidência e órgãos de assessoria militar, os ministérios das três armas, os comandos do exército, os Estados-Maiores das Forças Armadas e, depois de 1967, o Alto Comando das Forças Armadas –, no aspecto político, marcaram-se por uma acentuada ‘desigualdade estrutural’ em relação aos outros ramos do aparelho de Estado”. Por isso, “o conceito mais pertinente para entender esses regimes seria o de ditadura militar”.
Como diz Martins, houve a partir de 1964 um rápido e acentuado deslocamento de forças no interior do Estado burguês a favor dos seus aparelhos repressivos (no caso, a cúpula das Forças Armadas), com o aguçamento sem precedente do centralismo burocrático. A outra face desse processo foi o esvaziamento dos poderes Legislativo e Judiciário, ambos subordinados ao “poder militar”. Os militares avançariam sobre os mecanismos de representação política (parlamento) – terreno das chamadas elites civis. Pouco – ou nenhum – espaço de decisão foi-lhes dado. E conclui: “(...) ao cerrar fileiras contra qualquer tentativa civil de mudanças dos rumos do processo político, as Forças Armadas apresentaram notável unidade no plano estratégico (...). O repúdio a todo risco de ‘volta ao passado’ constituiu, no pós-1964, o principal fator de unidade militar face ao mundo civil.”
Os militares não formam uma classe social. Dentro da tradição marxista, são considerados uma categoria social, como os estudantes, funcionários públicos e padres. Sua identidade é dada pelo seu pertencimento a um dos aparelhos (repressivos) do Estado: as Forças Armadas. Ditadura militar, enquanto regime, significa o monopólio (ou influência desproporcional) do poder político pela cúpula do aparelho militar.
O que são civis? De uma maneira mais ampla, são todos aqueles que não são militares. Assim, quando falamos em civil-militar estamos nos referindo a todos os cidadãos de um país. Convenhamos: se o termo ditadura militar pode parecer um pouco estreito por, aparentemente, não dar conta de todo fenômeno; o termo ditadura civil-militar é demasiado amplo e perde a capacidade de entender a especificidade deste tipo de regime. Além do mais não resolve o problema de denunciar o caráter de classe da ditadura, pois entidades civis eram a CGT, a Contag, as Ligas Camponesas, a Febraban e a Fiesp. Civis eram Prestes, Jango e Carlos Lacerda.
Décio Saes nos lembra que “um conceito não pode ser uma cópia exaustiva de qualquer fenômeno, ele consiste, tão somente, na enunciação, em temos científicos, dos seus aspectos essenciais e invariantes”. O conceito ditadura militar, como qualquer conceito, pode não nos dizer tudo sobre o fenômeno que procura abarcar, a saber: o regime que imperou no país entre 1964 e 1985, mas nos diz dele o que é fundamental.
Segundo matéria da revista Retrato do Brasil tratando do poder militar: “(...) não se instalou, no Brasil, apenas um governo militar, caracterizado pela origem castrense do presidente da República, nem passou a ocorrer somente a coexistência desequilibrada de um Executivo ‘forte’ com um Legislativo e um Judiciário fracos (...). Muito mais que isso, houve um amplo e profundo processo de militarização do conjunto do Estado brasileiro. Houve antes de mais nada a militarização do Executivo”. Continua o texto: “surgiram os ‘generais-ministros’ os ‘coronéis-ministros’, ocupando pastas estratégicas, tradicionalmente qualificadas como civis (...)”. Mesmo os ministros civis passaram a ser tutelados e fiscalizados pelas Forças Armadas, através das Divisões de Segurança e Informações (DSI). A mesma coisa acontecia nas autarquias e empresas públicas, como a Petrobras. Tudo era um problema de Segurança Nacional, típica subideologia do aparelho militar.
Concluímos este longo artigo com uma reflexão do professor Quartim de Moraes: “Os bons historiadores da política dão mais importância ao vocabulário das lutas concretas do que às elucubrações de sabichões tardios. As ideias-força que animam o combate político devem sintetizar-se numa fórmula clara que oriente e concentre a energia coletiva. O inimigo imediato que os movimentos contra as ditaduras enfrentaram em todo o Cone Sul foram as cúpulas militares reacionárias, que exerciam quase monopolisticamente o poder de Estado, recorrendo ao terror repressivo para aniquilar a resistência clandestina e intimidar a oposição consentida”. Assim, o conceito ditadura militar – além de teoricamente correto – tinha um claro sentido político-prático.
* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia
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