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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

#MinhaAmigaSecreta e os atos machistas


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

#MinhaAmigaSecreta e os atos machistas

Ilustração extraída do site: Geledés
Por Lia Bianchini, no blog O Cafezinho:

Desde terça-feira (24), as redes sociais têm sido inundadas de textos e mensagens da campanha #MeuAmigoSecreto, uma onda criada por mulheres para denunciar atos machistas cotidianos que são cobertos com o véu da normalidade.

A campanha surgiu na véspera do Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher e vem dando voz, principalmente, a um aspecto quase esquecido da realidade feminina: a violência psicológica. Grande parte dos depoimentos denunciam relacionamentos abusivos, gaslighting, silenciamento em espaços políticos, racismo e lesbofobia.

Sabe-se que o Brasil está longe de ser seguro para mulheres. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o país ocupa a quinta posição no ranking mundial de violência contra a mulher. Aqui, a taxa de homicídios de mulheres é de 4,8 a cada 100 mil. Aqui, uma mulher é estuprada a cada dez minutos.

Porém, é sintomático que, no dia de enfrentamento à violência contra a mulher, as denúncias atenham-se majoritariamente ao que fere psicologicamente e não fisicamente. Esse é o cerne da mudança que precisa a sociedade machista em que vivemos. A violência psicológica é o ponto de partida para a violência física.

Um homem só chega à agressão física, ao estupro, ao assassinato porque tem a certeza de sua superioridade em relação às mulheres. Porque o machismo e o patriarcado estão tão enraizados, que fazem com que uma mulher seja vista apenas como mais um objeto de desejo e posse masculino.

O aspecto mais interessante da campanha é a complexidade dos depoimentos: ao mesmo tempo em que há uma generalidade muito grande, cada relato é incisivo e parece se adequar a um único homem. Fato que, também, só demonstra a abrangência do machismo na sociedade.

Os homens que violentam psicologicamente as mulheres são pais de família, namorados, maridos, amigos de uma mesa de bar, colegas de trabalho, são ideologicamente de esquerda ou de direita, tanto faz. Quando o assunto é o tratamento às mulheres, todos tornam-se o mesmo machista.

A exemplo da recente campanha #MeuPrimeiroAssedio, a #MeuAmigoSecreto é um passo à frente na luta que as mulheres têm empenhado por direitos e autonomia. A luta feminista no Brasil nunca esteve tão próxima de um ponto de cisão das engrenagens tradicionais e retrógradas da sociedade.

Nas redes e nas ruas, a primavera feminista brasileira vem mostrando que o tempo de abaixar a cabeça e ser subserviente às vontades masculinas passou. As mulheres brasileiras têm deixado nítido e indubitável que não mais toleram caladas as violências diárias que sofrem.

O machismo e o patriarcado dificilmente acabarão amanhã ou em um futuro muito próximo. Mas uma coisa é certa: eles não passarão impunes. Porque #MinhaAmigaSecreta não é uma, mas sim as mais de 100 milhões de mulheres brasileiras que estão dando um basta na violência machista. Vai ser impossível calá-las.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

ELEIÇÕES OAB/GO Patrícia Miranda: "Vamos lutar pelo empoderamento e igualdade de gênero".



Patrícia Miranda: "Vamos lutar pelo empoderamento e igualdade de gênero"(FOTO: DIVULGAÇÃO)
 
Sarah Mohn
 
Goiânia – Única candidata do sexo feminino ao cargo de secretária-Geral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), entre as três chapas que disputam a direção da seccional goiana, Patrícia Miranda Centeno declarou ao jornal A Redação que uma de suas principais lutas à frente da instituição, caso a OAB Forte vença o pleito, será pela igualdade de gênero e empoderamento das advogadas.
 
"A desigualdade de salários é fruto da desigualdade de gênero. Quando não se respeita a mulher no seu papel principal, se tem a sensação do direito, ainda que subjetivo, de se pagar menos a mulher para exercer a mesma função. Mas quando há ação para empoderar a mulher, automaticamente a mulher não aceita receber menos que o homem e essa conduta de mercado passa a ser ceifada", acredita.
 
Filha da ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Delaíde Alves Miranda Arantes, Patrícia Miranda possui em sua trajetória de vida militâncias feminista e classista dos advogados. Ao AR, justificou que aceitou disputar a Secretaria-Geral pela OAB Forte por ter sido a única chapa que se comprometeu a defender a valorização das profissionais do Direito.
 
"Flávio foi o único candidato que se comprometeu a implementar o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada. E quando ele me convidou para compor a Secretaria-Geral, eu achei que era o momento oportuno, o gancho que eu precisaria para poder cobrar a implementação desse plano e fazer com que a OAB se envolva de verdade na busca pela igualdade de gênero", justificou.
 
Patrícia Centeno tem 35 anos, é casada e mãe de três filhos. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), é advogada trabalhista com especialização em Direito Processual do Trabalho e pós-graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Há três anos, é conselheira seccional da OAB-GO.
 
 
(Foto: Divulgação)
 
Veja a entrevista completa:
 
Jornal A Redação: Essa é a primeira vez em que a senhora participa da eleição concorrendo a cargo de direção. Por que decidiu disputar a Secretaria-Geral da OAB?
Patrícia Miranda Centeno: Antes do lançamento da candidatura do Flávio Buonaduce, nós fundamos um grupo chamado "Advogadas Fortes", que busca a igualdade de gênero e o empoderamento da mulher. Como o Flávio foi o único candidato que se comprometeu a implementar o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, nós declaramos apoio a ele. E quando ele me convidou para compor a Secretaria-Geral, eu achei que era o momento oportuno, o gancho que eu precisaria para poder cobrar a implementação desse plano e fazer com que a OAB se envolva de verdade na busca pela igualdade de gênero.
 
AR: A defesa da valorização profissional das mulheres será sua principal bandeira à frente da Ordem, em caso de vitória?
Seria um dos focos. É uma bandeira com que nós estamos bastante preocupados, e existe em consonância com o movimento nacional "Mais Mulheres na OAB". É claro que a Secretaria-Geral envolve outros diversos focos, como por exemplo o relacionamento da OAB com as subseções, o fortalecimento das subseções. Ações para advogados em início de carreira também é algo que será priorizado pela Secretaria-Geral.
 
AR: A senhora possui em sua carreira o histórico de luta feminista. Vai levar essa luta para dentro da OAB-GO?
Sem dúvida. Eu cresci num lar em que vi muito de perto a luta de uma mulher para se firmar na advocacia, sustentar os filhos com os honorários advocatícios. Então, é uma bandeira que eu trago no coração e levo para qualquer cargo que eu for ocupar.
 
AR: Como a OAB pode influenciar de forma concreta na vida profissional das advogadas?
A OAB tem como papel diagnosticar quais são os pontos em que a mulher precisa de fortalecimento. Uma das propostas da chapa OAB Forte é a realização do censo. Esse censo vai fazer o mapa do perfil da mulher advogada em Goiás. A partir desse mapa, nós poderemos tirar várias ações na busca por essa igualdade de gênero. O principal ponto que precisa ser atacado é o empoderamento da mulher. É fazer com que a mulher assuma o papel principal na vida da Ordem. A OAB pode promover esse empoderamento através de cursos, de palestras, de encontros, de conferência estadual da mulher advogada, levar essas discussões para as subseções e para as seccionais. A OAB pode fazer muito por essa luta.
 
AR: A igualdade de gênero que vocês defendem engloba a igualdade de salários?
Com certeza. A desigualdade de salários é fruto da desigualdade de gênero. Quando não se respeita a mulher no seu papel principal, se tem a sensação do direito, ainda que subjetivo, de se pagar menos a mulher para exercer a mesma função. Mas quando há ação para empoderar a mulher, automaticamente a mulher não aceita receber menos que o homem e essa conduta de mercado passa a ser ceifada.
 
AR: Por que a senhora acredita que sua chapa deve ocupar a próxima gestão da seccional?
Eu acredito que a OAB Forte tem história. Acredito em uma máxima que diz que quem não tem passado não tem futuro. E mais do que isso, a OAB Forte se renova. As pessoas que compuseram essa chapa entenderam que era o momento de se renovar. Então, deram lugar a novos nomes, a novas pessoas. E um exemplo disso é o meu nome para compor a diretoria. Tenho três anos de conselho seccional e temos vários candidatos ao conselho que nunca foram candidatos. Nossa chapa tem um percentual de renovação de 84%. Além disso, o Flávio demonstra um respeito pela OAB que os outros candidatos não demonstram, prova disso é o fato de ele ter se licenciado da ESA para ser candidato. Ele mostrou que coloca a instituição acima dos interesses pessoais.
 
AR: Flávio Buonaduce está preparado para ser presidente da Ordem?
O Flávio demonstra um respeito pela OAB que outros candidatos não demonstram. Um aspecto importante é a experiência que ele tem. Além de carregar o nome OAB Forte, que tem história, ele tem dez anos de serviços gratuitos prestados à OAB. Além disso, Flávio foi quem comprou a bandeira da luta pela igualdade de gênero. E, mais do que isso, ele comprou a bandeira de resgate do papel social da instituição na democracia brasileira. A OAB tem ficado à parte de discussões importantes, por exemplo, redução de maioridade penal, reforma política. A OAB Goiás não tem se manifestado. E a Constituição Federal deu à OAB o dever e o direito de defender o cidadão. Então, ela não pode ficar silente nessas situações.
 
AR: Que avaliação a senhora faz da campanha eleitoral da OAB-GO deste ano?
O Flávio demonstrou seu perfil, que quem já o conhece sabe, de pessoa polida, que quer discutir ideias. A campanha da OAB Forte foi propositiva, não se buscou desconstruir a figura de nenhum candidato, ao contrário do que a gente vê nas outras campanhas. E acho que isso fará a diferença, porque o nosso eleitor é advogado, se preocupa com ideias, é um eleitor que quer saber em quem está votando. Não é um eleitor que se deixa enganar por discursos rasos e vazios de ódio.

Argentina: no caminho do inferno

25 de Novembro de 2015 - 13h36 


Portal Vermelho 

Por fim a dúvida que pairava sobre os argentinos se esclareceu: o próximo presidente do país será o ultraliberal Mauricio Macri. À luz dos resultados do último domingo (25), deixa-se claro uma coisa: nada, mas nada pode ser dado por certo. 

Por Guadi Calvo*, especial para o Vermelho


Efe
Maurício Macri assume a Presidência no próximo dia 10 de dezembro

Maurício Macri assume a Presidência no próximo dia 10 de dezembro

A mínima diferença entre as duas forças – um com 51,40% e o outro com 48,60% – deixa bem claro que o famoso boato que anunciava que o kirchnerismo estava acabando não está certo, ele segue muito vivo e é muito difícil que comece a ruir, principalmente se o novo presidente insistir com suas políticas de arrasar com tudo que foi construído nos 12 anos. 

Na segunda-feira (23) depois das eleições, o candidato eleito já mostrou suas garras, falou sobre cortar relações com a Venezuela. Por suas disputas com a oposição, nos leva a crer que sem dúvida haverá um giro completo aos Estados Unidos, ao passo que deixará muito nervosos os vários empresários argentinos que exportam para a Venezuela cerca de US$ 2 milhões ao ano. 

A respeito da nomeação de seu ministro da Economia, trata-se de definir um pouco sobre como será sua política, falou de um gabinete com seis ministros na área. Artimanha usada para conseguir esconder o temido Carlos Melconian, de uma personalidade fora de órbita, que já havia anunciado medidas como cortes de gastos públicos e demissão de servidores durante a campanha, motivos pelos quais foi silenciado. 

Durante todos estes anos, Melconian, braço direito de Domingo Cavallo (o homem que levou o país ao inferno), se dedicou a açoitar o governo de Cristina Kirchner desde o meio da oposição – que não era pouca – prevendo terremotos econômicos que nunca aconteceram. 

Em suas declarações como presidente eleito, Macri também mencionou uma aproximação à Aliança do Pacífico. E a respeito das declarações do jornal conservador La Nación – que pedia não só para terminar com o julgamento dos genocidas da ditadura, mas também fazer algo para que os mais de 300 que já estão cumprindo suas penas sejam liberados – a resposta de Macri (que se viu numa posição muito desconfortável, há que recordar que seu pai Francisco Macri, aumentou consideravelmente sua fortuna em negócios com a ditadura entre 1976-1983) foi morna e muito distante de uma contundente reprovação, o que o deixa aberto para qualquer decisão. 

A ousadia de Macri, em sua primeira coletiva de imprensa, anuncia tempos muito instáveis para o país, afinal, se esperava uma certa cautela, mas não foi assim. Suas decisões fundamentalmente econômicas podem chegar a atingir rapidamente sua base eleitoral, e isso não parece preocupá-lo em demasia. Já agora deixa claro quais serão seus passos-chave na economia: forte desvalorização, flexibilização trabalhista e eliminação de paridade, só resta saber se vai acontecer imediatamente ou de forma gradual. 

Macri assume muito debilitado, com minoria de senadores e deputados, com 16 governadores peronistas e uma base eleitoral peronista/kirchnerista de 49%, que não é pouco e se prevê que logo no começo do novo governo muitos de seus votantes comecem a se lamentar, mesmo sendo tarde para lágrimas. Inclusive seus aliados políticos devem começar a se queixar da pouca presença de seus quadros na estrutura do novo governo. 

Macri precisaria de cerca de 12 mil pessoas para cobrir os postos essenciais tanto em nível nacional, como na província de Buenos Aires e na Capital Federal. Não é segredo para ninguém que seu partido Proposta Republicana (PRO) não conta nem por sonho com essa quantidade de possíveis funcionários. Fato que obrigaria o futuro presidente não a recorrer aos membros da União Cívica Radical, seu principal aliado, mas aos executivos e empregados do setor privado. 

Sem dúvida o novo governo seguirá apoiado no tripé que lhe deu êxito: os meios de comunicação, o mercado e o poder judicial. 

Os meios de comunicação que construíram ao seu redor um guarda-chuva protetor que o permitiu não só esconder seus problemas e ações de corrupção de seu governo na capital argentina, mas que não se cansaram de lançar uma artilharia pesada contra o governo federal em exercício.

O mercado que fez o jogo permanente das corridas bancárias, altas artificiais do dólar e até chegou a obrigar os funcionários dos bancos e empresas como Santander-Rio a fiscalizar as eleições, camuflados de militantes do PRO. 

O terceiro pé macrista foi o Poder Judiciário, que com uma corja de juízes e corrupções, conseguiu impedir o cumprimento de leis importantes sancionadas pelo Poder Legislativo, como a famosa e discutida Lei de Meios, que regulava o holding Clarín, responsável por articular todas as estratégias políticas, econômicas e midiáticas contra o governo. Juízes provenientes da ultradireita, com sérios antecedentes de violência politica nos anos mais cruéis da Argentina, que realizaram investigações espetaculares contra instituições governamentais e empresas relacionadas de alguma forma à presidenta. 

Macri assume sabendo que em poucos meses este tripé será seu único respaldo. Que vai cumprir pouco ou nada com suas promessas eleitorais, fundamentalmente as relacionadas a manter muitos dos benefícios sociais criados pelo atual governo. 

A coalizão Cambiemos, em seu desespero por alcançar a vitória eleitoral, não evitou prometer uma infinidade de resoluções que já sabia de antemão ser impossível cumprir. A cada setor social, a cada setor empresarial, a cada setor sindical prometeu muitas coisas. Com o decorrer do tempo não só não vai cumprir, mas também pode ser que se vire contra estes mesmos setores de agitação social, que sem dúvida começarão a ocupar as ruas novamente. 

Os mercados, a banca internacional, sabem que têm pouquíssimo tempo para operar na Argentina, apesar de ser muito cedo para começar a pensar em 2019 (próxima eleição presidencial), em 2017 acontecem as eleições onde se renovam parcialmente as câmaras legislativas, as quais certamente o macrismo não poderá ter aspirações, dada a pequena diferença eleitoral com seu opositor e o desgaste que já terá de dois anos de governo. Sendo assim, o mercado terá que saquear o Estado de forma urgente e sem anestesia para privatizar, vender e se endividar o máximo possível, já que hoje o país está sem dívidas e será muito fácil conseguir créditos. 

Apesar de ter falado que sua primeira visita oficial será ao Brasil, seu sócio econômico e político mais importante da Argentina, deseja ansiosamente a desestabilização do governo de Dilma, inclusive que caia antes do fim, pois será mais fácil negociar com seus sucessores. 

A polarização

Com este panorama, acredita-se que a famosa “polarização” que divide os argentinos não vai diminuir, mas com certeza se aprofundar. Já falou sobre isso um dos principais arquitetos deste projeto, o famoso jornalista Jorge Lanata, um mercenário do grupo Clarín: “a polarização não vai diminuir nem em anos”, talvez esta seja a única verdade que saiu de sua boca nos últimos tempos. Por via das dúvidas, já anunciou que vai embora para os Estados Unidos em 1º de dezembro. Soldado que foge...

As feridas são muitas e doem profundamente, a oposição que se protegeu atrás do candidato que considerou os meios e o establishment em geral: Macri esteve disposto a permitir e aceitar todos os boatos contra o governo como uma verdade revelada. Desde burlar a morte de Néstor Kirchner a uma infinidade de acusações de corrupção contra a presidenta, seus funcionários e até familiares, sem que nenhuma pudesse ir adiante para além da artificialidade graças à cumplicidade de muitos juízes cooptados material e/ou ideologicamente pelo antiperonismo. 

A presidenta Cristina Kirchner se retira com mais de 54% de aprovação, fato inédito na história da Argentina, que lhe habilita a se converter na primeira presidenta do país que depois de liderar um projeto de 12 anos, tem condições morais e políticas para ser a líder da oposição. 

Apesar das pesquisas que davam a sensação de que desta vez o kirchnerismo levaria uma grande surra, a que tantos desejavam, não foi assim que aconteceu. Ao contrário, mesmo que o governo tenha perdido, deixa aberta uma ferida para o futuro presidente: esses 49% de votos genuínos de militância própria ou de aliados ideológicos, já que os partidos que compõem a Frente Para a Vitória (nome oficial do projeto kirchnerista) são peronistas e de esquerda, além de organizações sociais que apesar de irrelevantes na hora da soma de votos, e também na repartição de cargos, acompanham o projeto por cunho puramente ideológico. 

Não é o mesmo que acontece com a aliança Cambiemos, composta fundamentalmente por dois partidos: o PRO, fundado pelo Macri em 2005 e a centenária União Cívica Radical (UCR) que em seus mais de cem anos de vida, apesar de ter tido sete presidentes, apenas dois terminaram seus mandatos; o último foi Marcelo Alvear, em 1928. Foi historicamente o rival do peronismo, mas jamais conseguiu seu lugar na história argentina e mesmo vangloriando-se de seu republicanismo, foi colaborador de todas as ditaduras. Fato que lhe permitiu uma certa subsistência, abandonando às mãos do peronismo o discurso popular e nacional que lhe deu origem em 1891, para se converter mais por azar que por vontade – já que há mais de meio século não existe um partido conservador – no representante da burguesia e dos setores médios. 

Junto ao peronismo, o radicalismo é o único partido com representatividade territorial, que ocupa muitas regiões e de vez enquanto algum governo. Esta foi a leitura que fundamentou a coalizão Cambiemos, já que o PRO até agora não tinha conseguido sair dos limites da cidade de Buneos Aires, que governava desde 2007. 

Macri sabe muito bem que a inesperada eleição da FPV o amarra ao seu tripé de poder e o convertem em um refém de seus aliados, não só os radicais, mas também alguns partidos das províncias e alguns sindicalistas peronistas como Hugo Moyano e Luós Borrionuevo, excepcionalmente dotados de ações mafiosas, comprometidos com a corrupção em grande escala e responsáveis por todas as greves, paralisações e protestos que acometeram o governo de Cristina. 

Estes “bons moços” não fazem favores gratuitos e sem dúvida já estão negociando regalias para suas empresas (ambos têm importantes empreendimentos nas mesmas áreas que dizem representar: Moyano é dos caminhoneiros e controla várias empresas de transporte e Barrionuevo é dos cozinheiros e entre seus muitos empreendimentos é o dono do restaurante de comida japonesa mais caro de Buenos Aires). Estes sindicalistas também são acusados de ter pertencido à Aliança Anticomunista Argentina (AAA), uma organização parapolicial que se incorporou à ditadura em 1976; sonham, desde essa época, em conseguir o Ministério do Trabalho para eles ou alguns de seus lacaios. 

O dilema do kirchnerismo é agora sobre quanto tempo Cristina levará para passar para a contraofensiva, quão debilitada sairá do grupo peronista e se vai conseguir continuar controlando-o (muito difícil) ou vai emergir em uma nova liderança. 

Muitos estão interessados em comparar o candidato derrotado, Daniel Scioli, com Lula e suas épicas derrotas antes de se consagrar presidente do Brasil. As diferenças entre ambos são abismais: Scioli, na verdade, sempre foi um homem da estrutura do peronismo, que quase fez carreira. Nos praticamente 20 anos que trabalha na política, não conseguiu montar um grupo de aliados e muito menos o fará agora. 

Uma das últimas notícias que chamou muita atenção foi a renúncia do atual presidente da UCR, Ernesto Sanz, que aspirava à chefia do Gabinete, mas só lhe ofereceram o Ministério da Justiça, um posto de segundo, ou terceiro nível. Sanz não só rechaçou o cargo, como renunciou à Presidência do radicalismo. Fato que praticamente significa o abandono da política. O que mais chama atenção é que foi o grande articulador da aliança PRO-Radicalismo. A versão oficial afirma que sua renúncia está ligada a graves problemas familiares. Alguns jornalistas políticos falam que seu passo à margem se deve à sua irritação com o cargo oferecido, mas outras fontes sempre bem informadas falam que Sanz pode ter sofrido extorsões pelos aliados de Macri, por ter informações muito secretas de atos de corrupção e questões mais privadas. 

O novo governo assume em 10 de dezembro, uma data que marcará o início de um novo inferno para a Argentina. 

*Guadi Calvo é escritor e jornalista argentino. Analista político internacional especializado em África, Oriente Médio e Ásia Central. Para ler mais, em sua página no Facebook

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Reflexões sobre a eleição na Argentina. Por Bepe Damasco.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Reflexões sobre a eleição na Argentina

Por Bepe Damasco, em seu blog:                                         

A eleição do direitista Maurício Macri para a presidência da Argentina por uma margem apertada de votos (em termos percentuais, praticamente a mesma diferença de Dilma para Aécio em 2014) sobre o candidato da situação Daniel Scioli é o primeiro impacto eleitoral da onda conservadora que avança no continente sul-americano. 

A derrota do "kirchnerismo" depois de mais de 12 anos no poder mexe no tabuleiro político da região. Como todo consevador sul-americano que se preze, Macri está longe de ser um entusiasta do Mercosul. Embora fale, protocolarmente, em manter seu país no bloco, o presidente argentino eleito defende o estabelecimento de relações privilegiadas com os Estados Unidos e a Europa.

Até agora o Mercosul, afora os espasmos antidemocráticos do Paraguai, vinha se notabilizando pela forte identidade política e estratégica entre os governos do Brasil, da Argentina e do Uruguai. A presença meia boca da Argentina no Mercosul, no mínimo, cobre de incertezas o processo de integração, até então tratado como prioridade.

No front interno, o tempo vai dizer qual é o tamanho do estrago. Ninguém duvida que o novo governo vai avançar sobre os direitos sociais e conquistas políticas e econômicas da população argentina. Esse desmonte, além de fazer parte do programa econômico de Macri, está no DNA da direita, seja da Argentina, do Brasil ou de qualquer lugar do planeta. A profundidade e o alcance dessas medidas antipopulares dependem, no entanto, do cacife político do novo governo.

É importante lembrar que a a coligação peronista de Sciol, a Frente para a Vitória, tem maioria tanto na Câmara como no Senado, o que deve trazer enormes dificuldades para Macri aplicar seu programa. Sem falar no apoio de quase metade do eleitorado que o "kirchnerismo" obteve nas urnas no segundo turno. E o ambiente político de hoje não pode ser comparado com o dos tempos de Carlos Menem, quando o vendaval neoliberal varria a Argentina, o Brasil e o mundo.

Macri fala em promover uma megadesvalorização do câmbio. Mas não terá condições políticas para embarcar em loucuras como a paridade peso-dólar inventada por Menem, que fez com que os fundamentos da economia argentina virassem pó. 

Macri fala em frear a valorização da massa salarial e adequar às políticas de geração de emprego à realidade argentina, condicionado-as ao combate à inflação. Mas terá força para enfrentar os sindicatos e convencer a população de que é necessário andar várias casas para trás ?

Macri fala em rediscutir pontos da Lei de Meios, um marco na democratização da mídia no continente, que abalou os alicerces do monopólio do Grupo Clarín. Mas contará com o apoio do politizado cidadão argentino para efetivar tamanho retrocesso ?

Claro que não se pode minimizar a gravidade do resultado eleitoral da Argentina para as forças progressistas e de esquerda da América do Sul, tanto no que refere aos seus aspectos práticos (desdobramentos políticos, sociais e econômicos) como na esfera simbólica, na medida em que interrompe uma longa hegemonia das forças antineoliberais.

Contudo, é preciso contextualizar a eleição de Macri. Se é verdade que ela se deu no embalo de uma forte reação conservadora continental, não se pode desprezar a capacidade de mobilização política dos trabalhadores e dos setores comprometidos com o avanço social, as conquistas democráticas e a soberania nacional.

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terça-feira, 24 de novembro de 2015

“No Brasil, o Estado é demonizado e o mercado é o reino de todas as virtudes”



O sociólogo e presidente do Ipea, Jessé Souza. / FERNANDO CAVALCANTI

“No Brasil, o Estado é demonizado e o mercado é o reino de todas as virtudes”

Presidente do Ipea, o sociólogo Jessé Souza questiona as bases do pensamento nacional

EL PAÍS - em português 

O sociólogo Jessé Souza lidera desde o início do ano, quando assumiu a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – na esteira da polêmica eleitoral do atraso da divulgação de uma pesquisa sobre miséria –, um levantamento que se propõe a fazer uma “radiografia do Brasil contemporâneo”. A pesquisa, que deve começar a apresentar resultados em setembro do próximo ano, faz parte de um esforço geral do Ipea para compreender melhor quem é o brasileiro e colaborar para a avaliação de políticas públicas que pretendem melhorar a vida da população.

Na radiografia, os pesquisadores pretendem analisar a composição social do país para além dos índices econômicos, como costuma fazer o instituto, e levar em conta questões como “socialização e o capital cultural”, conceitos que Souza explora no livro A Tolice da Inteligência Brasileira, a ser lançado neste mês. Na obra, o sociólogo questiona conceitos basilares do pensamento brasileiro, como o patrimonialismo e o “homem cordial”, e diz que nossa ciência social está baseada em mitos infundados criados e promovidos por pensadores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Pergunta. Em que pé está a radiografia que pretende "estabelecer uma nova divisão de classes no Brasil"?

Resposta. Pretendemos ter um apanhado geral em seis meses, fechado em março. Até setembro do próximo ano, já vamos entrar em questões concretas, ao avaliar programas específicos. Além do MEC [Ministério da Educação] e do MDS [Ministério do Desenvolvimento Social], também trabalhamos com a Secretaria da Juventude em São Paulo, com um estudo sobre o jovem da periferia. Mas a radiografia é apenas uma das nossas pesquisas. Temos uma agenda estratégica, que é uma tentativa do Ipea de fornecer elementos ao Governo para guiar e orientar a estratégia pós-ajuste fiscal. Queremos montar uma inteligência que possa dizer em tempo real o que está acontecendo em cada grande projeto e como ele pode ser corrigido ainda na feitura. Estamos montando convênios e cooperações para analisar os programas profissionalizantes, como o Pronatec, estudar a política de apoio à entrada nas universidades públicas e contribuir com o PNE [Plano Nacional de Educação].

P. Vocês estão atrás de que tipo de informação?

R. As classes normalmente são percebidas como construídas a partir da sua renda. Isso não é verdade, porque não é o bastante para antecipar o comportamento das pessoas, como estudam, agem, como montam suas vidas. É isso o que importa saber, tanto para o mercado quanto para o Estado. E você não consegue antecipar o comportamento das pessoas pela renda. Um exemplo óbvio é o do professor universitário em início de carreira, que ganha 8.000 reais, e o trabalhador qualificado da Fiat, em Betim [MG], que ganha mais ou menos isso. É mínima a probabilidade de que essas pessoas tenham comportamento semelhante, de que lidem na família do mesmo modo, tenham estilos de vida semelhantes, com padrões de consumo e lazer semelhantes, uma concepção de mundo semelhante. O tipo de educação, de socialização familiar e escolar vão montar tipos de pessoas muito distintas, com escolhas muito distintas, embora recebam uma renda semelhante.

P. Como a socialização familiar influencia o rumo da vida desses brasileiros?

R. Os estímulos ao pensamento abstrato só existem na classe média. O estímulo à concentração na leitura só existe na classe média; a valorização das coisas do espírito. Na classe baixa, o filho do pedreiro está brincando com o carro de mão. Está sendo estimulado para ser trabalhador manual, e não para refletir. Dois tipos de pessoas muito distintas, e numa sociedade onde o grande elemento é o espírito, é o conhecimento. Além do capital econômico, o que vai definir a luta por recursos escassos é o conhecimento.

Na classe baixa, o filho do pedreiro está brincando com o carro de mão. Está sendo estimulado para ser trabalhador manual, e não para refletir

P. Nosso Estado ainda não tem noção de quem é o brasileiro?

R. Não só o Estado, mas a sociedade brasileira não tem esse conhecimento ainda. É sempre algo aproximado, e a gente quer contribuir para isso criando um novo elo para além desses dados. Estamos unindo, em um estudo inédito, o dado quantitativo a dados qualitativos, mas qualitativo crítico, que não interpreta a fantasia das pessoas sobre elas mesmas como a verdade. A gente quer descobrir quais são as necessidade e carências desse brasileiro, e também os seus sonhos, e não as fantasias que ele monta sobre si mesmo para continuar vivo. A gente quer saber o que falta para construir uma inteligência institucional mais sofisticada, que se adapte melhor a esse público.

P. É por conta desses conceitos que você questiona os dados que indicam redução nas desigualdades do país nos últimos anos?

R. Houve uma histórica e importante inflexão no Governo Lula, algo que não acontecia há 60 anos, porque o Brasil foi, desde o Golpe 1964, um país feito para a minoria, para 20%. É algo que havia acontecido apenas com Getúlio Vargas e Jango [João Goulart]. Jango quis, no fundo, aprofundar as mudanças que Getúlio tinha procurado estabelecer, que tem a ver com o fato de que o Estado deveria ser também dos pobres, da maioria da população brasileira historicamente esquecida. Não vejo um fato mais importante nos últimos 60 anos do que porções significativas dos nossos excluídos tiveram uma ascensão social significativa, não só no consumo, mas em acesso à escola, a serviços estatais importantes. Essa é a grande herança que vale a pena se lutar para ser mantida e aprofundada. Longe de negar que houve esse combate à desigualdade, a gente quer ajudar a combater ainda melhor essa desigualdade.  

P. Você diz no livro que o povo é manipulado por uma pequena elite no Brasil. De que forma?

R. No Brasil se construiu uma ideologia, que não tem nada a ver com a ciência. As ideias dos grandes pensadores são tão importantes quanto as ideias dos antigos profetas e religiosos. Não há nada que se publique que não precise ser atestado por um especialista. Isso mostra como a ciência é importante. O que os jornalistas produzem, o que os professores de universidade dizem, o que os juízes decidem nos tribunais, tudo isso são consensos que foram construídos e criados por grandes intelectuais. As pessoas não percebem isso, acham que cada pessoa está tirando tudo da própria cabeça. O que eu procurei identificar no livro é quais são essas ideias, o que elas defendem, e quem são esses caras.

No Brasil se construiu uma ideologia, que não tem nada a ver com a ciência

P. Que ideias são essas?

R. Essas pessoas defendem um tipo de liberalismo amesquinhado que tem a ver com a imagem negativa do brasileiro. Isso começa com o Gilberto Freyre, em 1933, quando se substitui o racismo científico, fenotípico, por um racismo cultural. A base desse raciocínio é o “complexo do vira-lata”, como chamava Nelson Rodrigues. Supõe-se que existam sociedades superiores, compostas por indivíduos superiores moral e cognitivamente, que estariam nos Estados Unidos e na Europa. Lá, haveria um Estado só público, que não é privatizado por ninguém. Isso é um completo absurdo, fácil de ser destruído. Mas quando essas interpretações se tornam naturalizadas, os fatos não importam mais. O que os grandes pensadores dizem é que a privatização do Estado é uma singularidade brasileira, e nós acreditamos nisso. Há um sequestro da inteligência do povo brasileiro montado por grandes intelectuais. A grande interpretação do Brasil é só uma, que une personalismo e patrimonialismo.

P. Qual é o resultado dessa união?

R. O personalismo diz que o brasileiro é um sujeito inferior, pré-moderno, que se liga a relações pessoais, como se não houvesse relações pessoais e não fossem decisivas em qualquer lugar. [O brasileiro] É sentimental, cordial, emotivo e tendencialmente corrupto. Esse personalismo foi criado a partir da leitura de Gilberto Freyre por Sérgio Buarque de Holanda. Freyre queria fazer um mito nacional, e Buarque queria fazer ciência. Mas a ciência se faz contra todos os mitos. Nossa ciência veio de um mito, mas o mito não tem validade científica, é um conto de fadas para adultos, para explicar a leigos como a sociedade funciona.

P. Como esse pensamento afeta a vida dos brasileiros?

R. Todos os conflitos brasileiros tendem a ser silenciados. A classe média, que se põe como campeã da moralidade, no fundo explora o trabalho de uma ralé, de uma classe de excluídos, que presta todo tipo de serviço a ela — serviços que nem as classes médias europeia ou norte-americana têm. É um exército de escravos, no fundo, para prestar, a baixo custo, serviço na sua casa, cortar a sua grama, fazer comida, cuidar do seu filho. Isso é uma luta de classes. A luta de classes é silenciosa, por recursos escassos. Todos recursos, materiais e ideais, são escassos. Não é só a casa, o carro, a mercadoria, mas o reconhecimento, o prestígio, a beleza, o charme. Isso tudo é escasso. Há uma luta de todos contra todos em relação a isso, mas algumas classes monopolizam o acesso a esses recursos: o 1% e seu sócio menor, que é uma classe média de 20%, que monopoliza o capital cultural e tem um estilo de vida europeu em um país como o Brasil. O restante tem de lutar por isso.

A classe média, que se põe como campeã da moralidade, no fundo explora o trabalho de uma ralé, de uma classe de excluídos, que presta todo tipo de serviço a ela

P. É por isso que, na sua avaliação, o Estado virou alvo preferencial no Brasil?

R. Toda essa exploração de classe é escondida e transformada em um conflito construído, irreal, que não existe, entre Estado e mercado. Porque o Estado precisa do mercado para sua sobrevivência, e vice-versa. Mercado e Estado são uma coisa só, mas, no Brasil, você demoniza o Estado e monta o mercado como reino de todas as virtudes. Não existe crime no mercado. Essa coisa de o brasileiro ser inferior tem um lugar específico entre nós desde Sérgio Buarque: o Estado. É a tal tese do patrimonialismo. Há uma elite que, só no Estado, rouba a sociedade como um todo, como diz Raymundo Faoro. Então se cria um conflito artificial.

P. A prisão de grandes empreiteiros na Operação Lava Jato não confronta essa ideia de que o mercado tem tratamento diferente no Brasil?

R. As relações entre economia e política são sempre complicadas. Abrangem todos os partidos e todos os ramos da indústria e da vida econômica. Não consigo entender por que a seletividade, só alguns ramos e alguns partidos. O que existe é uma modernização do golpe de Estado brasileiro. O 1% quer continuar mandando, especialmente num contexto em que não dá para atender a todos. Para isso, silêncio sobre alguns partidos e atividades industriais, e toda a luz para alguns partidos, quase sempre ligados a interesses populares. Se há crime, tem de ser sempre investigado, mas sempre houve seletividade. Com isso, se acirra os ânimos do suporte social e emocional para esse tipo de mensagem.

P. Como o golpe de Estado brasileiro se "modernizou"?

R. Para a democracia moderna, só existe um princípio: soberania popular. A fonte de todo poder é o voto. Não existe nenhum outro princípio, e, como não há, é preciso fabricar um, construir elementos que estariam acima da sociedade e de interesses econômicos e políticos. Antes, esse elemento estava constitucionalmente determinado, eram as forças militares. Os chefes militares constitucionalmente poderiam dizer quando estaria havendo desordem no país, e intervir. Hoje, como não podem ser mais os militares, que perderam a legitimidade para assumir esse papel, o novo elemento é um misto de agências de controle e judiciário, junto com Polícia Federal, etc. Há uma luta por quem vai ocupar esse espaço. Formalmente, o Judiciário tem todos os elementos que as Forças Armadas tinham. Não é eleito pelo povo, faz de conta que interpreta coisas que não têm a ver com a política e o jogo econômico e se põe acima do bem e do mal — e eu não estou falando em nome de nenhum juiz, até porque são vários candidatos a isso. O juiz justiceiro hoje em dia é o substituto do general entre nós. Não é mais o militar, a metralhadora, é o aparato jurídico.

P. Se a sociedade brasileira tem uma ideia equivocada e prejudicial sobre si mesma, como se abandona essa lógica?

R. A escola não é o único lugar onde as pessoas se educam numa sociedade moderna. A esfera pública é extremamente importante. Toda a democracia tem dois pilares. O voto é um deles, mas ele precisa ser refletido. O cidadão brasileiro tem de ter acesso a informações contraditórias, a opiniões divergentes. Porque, sem isso, o voto é desqualificado, manipulado. Os partidos de esquerda no Brasil falharam em grande medida em compreender essa imensa maioria de excluídos e trabalhadores pouco qualificados que não são sindicalizados, por exemplo. Quem compreendeu essas pessoas abandonadas e humilhadas, que compõem a massa do povo brasileiro, foram as religiões pentecostais, que supriram o vazio ao dizer: “você não é um lixo, é um cara importante, Jesus olha para você”. No livro, faço a crítica a esse culturalismo conservador, que é cientificamente frágil, mas também ao economicismo de todas as vertentes, da marxista à liberal. A cegueira de todo economicismo é achar que o comportamento das pessoas é unicamente motivado por estímulos econômicos. Não é, e às vezes os estímulos não-econômicos, como a autoconfiança, são ainda mais importantes. Quer dizer, você é pobre, não enxerga chances e cai no álcool ou no crack. Se receber dinheiro, vai comprar crack, não vai se recuperar como ser humano. Se tem alguém dizendo que você importa, que não nasceu para isso, que lhe dá respeito e estima, isso pode ser mais importante que dinheiro, e faz dinheiro, que é o que acontece com a classe média autoconfiante.

O cidadão brasileiro tem de ter acesso a informações contraditórias, a opiniões divergentes. Porque, sem isso, o voto é desqualificado, manipulado

P. No livro também há criticas às jornadas de junho de 2013. Você escreve, inclusive, que o Brasil “é o país em que a classe média ‘tira onda’ de revolucionária, de agente da mudança e de lutadora por um ‘Brasil melhor’”.

R. As manifestações de 2013 são diferentes das que acontecem agora. Em 2013, houve uma parte inicial do movimento em que havia muitos elementos da classe trabalhadora precária, que passa três horas para sair da periferia para o centro de São Paulo. E esse pessoal estava justamente pedindo uma ampliação e aprofundamento de seus direitos: melhor escola, melhor saúde, mobilidade urbana. A partir de certo momento, toca-se o bumbo e a classe média vai às ruas. Então ocorre uma mudanças dos grandes temas, das demandas, para a demanda típica da classe média: só corrupção. É uma forma de você, que explora os outros, posar de campeão da moralidade. Para isso, você usa todo o estofo montado por essa inteligência para exportar o mal que pratica, e a classe média se transforma numa santa. As ideologias políticas não falam só ao cérebro. Elas falam, antes de tudo, às emoções. A classe média é feita de tola na sua reflexão por suas emoções. É manipulada e sai como tropa de choque para atacar o Estado, apesar de não ter um interesse real nesse ataque, porque os serviços poderiam ser ampliados para a classe média, que usa o SUS [Sistema Único de Saúde]. Atacar o Estado, para a classe média, é morrer em momentos importantes da vida. Essa coisa de dizer que o Estado é ineficiente só serve aos 1% mais ricos.

 P. Diante do que você considera uma ameaça de golpe, como enxerga as perspectivas para o país?

R. Estamos em um instante histórico extremamente delicado. Temos uma tradição dominante, do golpe de 1964, que montou uma sociedade para 20%, esses endinheirados, e uma classe que serve a ela. Os outros foram mais ou menos abandonados, deixados ao Deus dará. Os últimos 10 ou 15 anos foram uma inflexão forte nisso, porque dezenas de milhões saíram de uma situação não só de pobreza, mas de ausência de alternativa de vida, de futuro. Esse processo está em xeque, pode ser desfeito. A gente pode voltar ao esquema que o Brasil era, o que aliás é a maior parte dessa elite quer. Por outro lado, podemos tentar manter esse processo ou até aprofundá-lo. A gente está em uma encruzilhada histórica: ou somos um Brasil que minimamente olha para a maioria da sua população ou um país para 20% que vai ter sempre a ameaça do golpe. Por que não se governa sociedade nenhuma para 20%, a não ser pela força, pela manipulação. Daí a recorrência do golpe na história brasileira. Para a elite brasileira, não importa se você manda com o voto, você tem que poder mandar até sem o voto.