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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Uma lição de humanidade: os doutores do povo


- Republicado de El País


                Os doutores do povo


Uma médica de um dos bairros mais pobres e violentos de São Paulo conta a EL PAÍS seu dia de trabalho na periferia, no momento em que milhares de profissionais chegam de Cuba

       
       Fotos

 São Paulo 24 NOV 2013 - 
Médicos na periferia

A médica Luciana Defendi Navarrete, 37 anos, em atendimento. / PEDRO DIAS

Os Os cabelos curtos com mechas douradas da médica Luciana Defendi Navarrete, de 37 anos, ainda estão molhados quando ela deixa, apressada, sua casa na Vila Clementino, bairro de classe média na zona sul de São Paulo, às 6h15. O destino é o Capão Redondo, um dos distritos mais pobres e violentos da cidade, distante 20 quilômetros dali, em direção ao sul, onde moram 275.000 pessoas. Com as janelas fechadas e o ar condicionado de seu Chevrolet Ágile ligado em potência altíssima, ela cruza as ruas estreitas do bairro com a destreza de quem já se acostumou com o caminho. E, dois minutos antes das 7h, chega à Unidade Básica de Saúde Jardim São Bento, em uma área rodeada de favelas.

Navarrete trabalha no Programa de Saúde da Família, modelo público de atendimento em que equipes com médicos, enfermeiros e agentes de saúde visitam as famílias pobres dos bairros para orientá-las sobre formas de vida saudável e oferecer tratamento aos que precisam.

O programa, que tem 1.103 médicos apenas em São Paulo, precisaria de cerca de 200 profissionais a mais para dar conta da população carente do município. É um cenário que se repete em outras partes pobres do país. Para tentar levar médicos para essas regiões, o governo federal criou neste ano o Programa Mais Médicos, que oferece as vagas ociosas nas periferias a profissionais formados no exterior. A maioria veio de Cuba, em um convênio entre as duas nações em que o governo cubano fica com parte do salário pago ao médico. O assunto gerou polêmica no Brasil, e alguns cubanos foram recebidos nos aeroportos com gritos de “escravos” por parte de médicos brasileiros, indignados com a situação.

Na última semana, 761.645 pedidos aguardavam em uma espécie de fila virtual para realizar procedimentos como consultas, cirurgias e exames. A depender do tipo de atendimento, a espera pode chegar a dois anos

A unidade do Jardim São Bento, onde trabalha Navarrete, foi uma das contempladas. O posto estava com falta de um médico havia um ano. Ninguém quer trabalhar nessas regiões, devido às dificuldades de atuar em locais mais afastados, que agora podem ser cobertos, principalmente pelos cubanos. EL PAÍS acompanhou um dia de rotina no local. Às 7h, as portas do posto se abrem, mas o movimento já está a todo vapor. Em pouco tempo, todas as cadeiras da sala de espera estão ocupadas. E, na frente da unidade, duas grandes filas estão formadas: uma, dos que precisam fazer exames de sangue ou de urina, que não são agendados; outra, dos que buscam atendimento odontológico de emergência. Nos dois casos, o posto recebe apenas quem chega até as 8h. Depois desse horário, são atendidos prioritariamente os pacientes que agendaram consulta com médicos, dentistas ou enfermeiros. Conseguir uma vaga pode demorar.

Alguns minutos depois, uma mulher que chegou atrasada grita, indignada. Funcionários e pacientes nem olham, acostumados com esse tipo de cena. Naquele dia, mais tarde, a recepção veria ao menos mais uma gritaria: a de uma mulher que soube que a espera pela consulta pedida seria de ao menos dois meses. A indignação tem motivo. Dados da prefeitura de São Paulo apontam que esse tipo de espera é habitual. Na última semana, 761.645 pedidos aguardavam em uma espécie de fila virtual para realizar procedimentos como consultas, cirurgias e exames. A depender do tipo de atendimento, a espera pode chegar a dois anos. Os mais afetados por essa demora são os mais pobres, que não podem recorrer aos serviços de médicos e laboratórios particulares.

“Todos os dias tem gritaria, ofensa verbal. ‘Essa porcaria não presta’ é a frase preferida dos pacientes’. Eles não entendem que não é nossa culpa. Essa região precisaria de, pelo menos, mais dois postos de saúde”, desabafa Navarrete. Funcionária do local há três anos, ela lida com uma lista de frustrações diárias. “Às vezes falta isso aqui, acredita?”, conta ela, enquanto puxa o papel que recobre a maca onde uma gestante se deitará. “Já faltou papel para marcar a evolução do paciente. E receituário. Como se faz uma receita para um doente sem o receituário?”.

Nos 3,2 quilômetros quadrados da área de abrangência do posto do Jardim São Bento atuam nove equipes do Programa de Saúde da Família. Cada uma é responsável por atender entre 3.500 e 4.000 pessoas, número considerado alto pela cubana naturalizada espanhola Bárbara Mena, de 52 anos, a estrangeira do Mais Médicos que chegou ao posto há duas semanas e assumirá, após um período de adaptação com os médicos locais, a equipe que ficou um ano sem médico. Ela conta que fez parte do grupo de cubanos que, em 1996, ajudou o Brasil a montar seu próprio Programa de Saúde da Família e diz que, em Cuba, um dos modelos brasileiros do programa, cada equipe assume uma área com cerca de 1.000 pessoas apenas.

Médicos na periferia

Luciana Defendi Navarrete. / PEDRO DÍAS

A área de Navarrete é grudada no posto. Mas, muitos idosos, com dificuldade de locomoção, não conseguem chegar à unidade de saúde e dependem da visita domiciliar. É o caso de Sebastiana de Meneses, de 89 anos. Com passinhos curtos, ela deixa o quarto e se aproxima da sala, onde encontra a médica. Começa, então, a chorar. “Velho não serve pra nada, nem para jogar fora”, desabafa. Dona Sebastiana está aflita: não enxerga mais com o olho direito, mas tem medo de fazer a operação para livrar-se da catarata.

Algumas casas mais à frente, a médica encontra Nair Vicente da Silva Santos, de 68 anos. Responsável por cuidar da irmã Antônia, de 98 anos, que teve um dos lados do corpo paralisado depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral, Nair desenvolveu uma bursite (inflamação na articulação) no braço direito, justamente com o qual mais emprega força ao tirar e colocar a irmã na cadeira de rodas. Numa das visitas à dona Antônia, a equipe de saúde percebeu o problema e chamou uma fisioterapeuta para dar dicas de como realizar o trabalho com menos esforço.

O papel do médico da família tem se mostrado essencial em áreas de grande vulnerabilidade social, como o Capão Redondo. Ao andar pelo bairro, a médica lembra os pacientes de que devem tomar seus remédios. E sabe de cor o caso de muitos deles. “Ali, descobrimos que a mulher era diabética. Sabe como? Depois que ela foi achada desmaiada no chão, rodeada de caixas de leite condensado vazias”, conta. “Naquela casa morava um senhor hipertenso, que vivia nesse bar com um copo cheio de um líquido preto. Eu chegava e perguntava: ‘ô seu fulano, o que é isso que o senhor tá bebendo aí?’. Ele respondia: ‘é café, doutora’. Eu pegava o copo, cheirava e era Caracu [cerveja negra], vinho... Logo morreu”.

Apesar da popularidade que têm na região, a médica não pode circular nas ruas sem estar acompanhada da agente de saúde. É uma regra do posto para proteger seus profissionais. Moradora do bairro, é a agente que sabe por quais ruas, dominadas pelo tráfico de drogas, não se pode circular.

“Tenho amigos que trabalham em outras áreas que já foram assaltados durante as visitas domiciliares. Você entende o estresse que é trabalhar na periferia?”

A relação dos funcionários com a criminalidade é delicada. Os profissionais se sentem protegidos das ações de criminosos, que sabem que a unidade é importante para a população. Mas sabem também que é necessário tratar de forma diferenciada os chefes do tráfico e suas famílias. “As mulheres dos bandidos são atendidas na hora que chegam, nunca marcam consulta”, conta uma paciente, na frente de dois profissionais de saúde, que concordam.

“Infelizmente existe um poder paralelo. As mulheres dos bandidos chegam com arrogância, sabem que ninguém pode mexer com elas. As pessoas que estão ali sabem disso. Quem vai pagar para ver? Violência também é um problema de saúde”, explica Thiago de Castro Menezes, 31 anos, gerente da unidade.

Entre as famílias atendidas pelo posto estava a de um ex-chefe do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que domina os presídios de São Paulo, assassinado recentemente, conta a médica. Depois disso, a área ficou sem liderança por um tempo, e o posto sofreu o primeiro assalto: com uma arma em punho, criminosos abordaram um médico, dentro do estacionamento da unidade, às 16h. Levaram a camionete dele. Logo depois, o médico pediu demissão.

“Aqui essas coisas não costumam acontecer”, explica Navarrete. “Tenho amigos que trabalham em outras áreas que já foram assaltados durante as visitas domiciliares. Você entende o estresse que é trabalhar na periferia?”.

É esse tipo de estresse, provocado pela violência e pela precária estrutura, que afasta os médicos das áreas periféricas mesmo quando os salários pagos chegam a 14.000 reais (6.070 dólares), alegam as entidades de classe.Essas mesmas associações médicas criticam o Mais Médicos, que não exige que estrangeiros façam uma prova no Brasil para poder validar seus diplomas antes de atuar no programa, como é exigido dos demais profissionais que vêm de fora. Mas até agora, mesmo sob as fortes críticas, 6.664 médicos formados no exterior já chegaram, sendo 5.400 cubanos, que vieram ao país por meio de um convênio especial. Há, ainda, argentinos, espanhóis, venezuelanos, bolivianos, entre outras nacionalidades. Mas o programa precisaria ainda de, pelo menos, mais 6.336 médicos nas áreas pobres.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

UBM na Luta Pelo Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas


“25 de Novembro - Dia Internacional de Luta pelo fim da Violência contra a Mulher”

A União Brasileira de Mulheres (UBM), com 25 anos de história de lutas pela defesa dos direitos

e emancipação da mulher, completados neste ano, reafirma seu compromisso pelos direitos

humanos, pela saúde das mulheres e pela construção de um mundo justo, fraterno e solidário. A

data de 25 de novembro, dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher definida no I

Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em 1981, em Bogotá, Colômbia,

como homenagem às irmãs Mirabal (Pátria, Minerva e Maria Teresa), assassinadas pela ditadura

de Leônidas Trujillo na República Dominicana foi reconhecido pelas Nações Unidas (ONU) em

1999, como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher.

Em todo o mundo o combate à violência contra a mulher se constituiu em uma preocupação

fundamental dos movimentos sociais, principalmente assumido pelo movimento feminista e de

mulheres em meados da década de 1970.

A Campanha “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres” acontece em 159

países. Começa no dia 25 de novembro (Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres) e

termina no dia 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). O Brasil antecipou o

início desta campanha para o dia 20 de novembro - Dia Nacional da Consciência Negra. A

inclusão desta data se dá pela importância da história e da cultura negra no Brasil e também pela

dupla discriminação sofrida pela mulher negra, que se baseia em uma opressão de gênero e raça.

UMA VIDA SEM VIOLÊNCIA É UM DIREITO DAS MULHERES

A Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres é realizada no

Brasil, entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro (Dia dos Direitos Humanos). Procura dar

visibilidade às diferentes formas de violência, ainda presentes no cotidiano de muitas mulheres,

em particular a violência contra as mulheres negras.

A questão do direito humano a uma vida sem violência e do enfrentamento à violência contra as

mulheres combina uma discussão ampla, que nos permite desvendar e desconstruir as amarras

da cultura milenar que estruturou e consolidou as desigualdades de gênero.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a violência doméstica como um problema

de saúde pública, pois afeta a integridade física e a saúde mental. Portanto, a defesa do Sistema

Único da Saúde, garantindo a ampliação de uma rede de atendimento digno e eficaz, e o acesso

aos serviços com muito respeito ao nosso corpo é uma das questões centrais para a efetivação da

Lei Maria da Penha.

UMA REALIDADE QUE NOS INDIGNA

A pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA, com dados do Sistema de

Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (2001 a 2011), estima ocorrência de

mais de 50.000 feminicídios (cerca de 5.000 mortes por ano). Segundo este estudo, acredita-se

que grande parte dos óbitos decorre de violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez

que um terço deles teve o domicílio como local de ocorrência, ocorrendo um verdadeiro

"femicídio" ou "feminicídio", ou seja, crimes perpetrados por homens, - principalmente parceiros ou

ex-parceiros - e decorrem de situações de abusos no domicílio, ameaças ou intimidação, violência

sexual, ou situações nas quais a mulher tem menos poder ou menos recursos do que o homem.

A cada dia, 15 mulheres são assassinadas, de acordo com estudo do IPEA. A cada 90 minutos o

país registra um homicídio.

No Brasil (2009-2011), registrou-se no SIM, 13.071 feminicídios, equivalendo a uma taxa bruta

de mortalidade de 4,48 óbitos por 100.000 mulheres.

LEI MARIA DA PENHA – IMPORTANTE INSTRUMENTO DE DEFESA E PROTEÇÃO DAS



MULHERES.



A Lei Maria da Penha é um instrumento fundamental na luta pelo fim da violência contra as

mulheres, por isso precisamos estar vigilantes á sua efetiva aplicação. É preciso colocar em

prática todas as reivindicações do movimento feminista e de mulheres reforçada pela Comissão

Parlamentar de Inquérito – CPMI da Violência contra a Mulher que indica e exige: criação de

organismo de gestão de políticas para mulheres; a dotação orçamentária específica para políticas

e programas; a expansão e interiorização da rede de atendimento; a universalização do registro

das notificações compulsórias; a capacitação dos profissionais de saúde, gestores, educadores,

juízes, promotores de justiça, delegados, policiais e demais servidores públicos e funcionários e o

monitoramento do oferecimento dos serviços de atenção às vítimas de violência, entre outros.

Apoiamos a categorização do feminicídio no rol de crimes previstos no Código Penal Brasileiro,

conforme proposição da CPMI.

NÓS PODEMOS MUDAR ESTA REALIDADE

O silêncio é cúmplice da violência e pai da impunidade. Por isso mesmo, é fundamental que toda

sociedade denuncie a violência contra as mulheres e meninas que ainda ocorre em silêncio em

tantos lares e no conjunto da sociedade.

Vivemos num país patriarcal e machista, onde a violência contra as mulheres e meninas ainda é

naturalizada. Temos de reagir a isso. A mulher precisa confiar que pode mudar essa realidade.

A luta das mulheres e de todos que almejam um mundo livre de violência é fundamental.

Central de Atendimento à Mulher – Disque 180

União Brasileira de Mulheres:

Rua Barão de Itapetininga, 255 - 9º andar - sala 908.

CEP: 01042-001 São Paulo | Brasil

Telefone: 11 3105 8216

E-mail: ubmulheres@ubmulheres.org.br | ubmbrasil@gmail.com

UNIÃO BRASILEIRA DE MULHERES

Por um Mundo de Igualdade, Contra Toda Opressão!

Pelo fim da Violência contra Mulheres e Meninas!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

1954, 1964, 2014: as tramas da direita contra o povo. Por Saul Leblon






* do VIOMUNDO

A memória seletiva de O Globo sobre Getúlio
14/11/2013 – Copyleft. 

A resposta esmagadora


Cabe à campanha de Dilma incorporar o salto programático que os últimos acontecimentos ensejam, na esfera da democracia e do desenvolvimento.

A derrubada violenta de Jango em 1964 foi antecedida, a exemplo do que se fez com Vargas, dez anos antes, de uma campanha midiática encharcada de ódio e acusações de corrupção contra o seu governo e a sua pessoa.
A popularidade de Vargas revestiu o desenvolvimento brasileiro com travas de soberania  e direitos sociais inaceitáveis pelo dinheiro local e forâneo.
A mesma e dupla intolerância colidia com a aprovação popular às reformas de base de Jango, constatada então por pesquisas do Ibope sonegadas à opinião pública pelos veículos de comunicação.
Nos dois casos, a caça à corrupção se transformaria na única marreta disponível para a derrubada conservadora do governo.
Quis o destino que  49 anos depois do golpe de 64, quando a versão falsificada daquele período é desmentida pelo desagravo solene do Estado brasileiro a Jango, um novo ataque disfarçado  contra os mesmos objetivos se configure.
É pedagógico e inquietante.

As mesmas forças, os mesmos interesses, os mesmos veículos e o mesmo linguajar que levaram Vargas ao suicídio e violentaram a democracia em 64, agora se unem abertamente para golpear o esforço progressista de retomar a construção interrompida de um Brasil mais justo e soberano.
Contra Vargas, ergueram-se as manchetes do ‘mar de lama’.
Contra Jango, ‘o ouro de Moscou, ‘a República sindicalista’, ‘o naufrágio dos valores cristãos’, ‘falência do abastecimento’.
Nos dias que correm, ‘o mensalão’,  ‘a companheirada’, o  ‘intervencionismo estatal’, a ‘gastança’, o ‘abismo fiscal’, a implosão iminente da economia.
‘Se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’, reitera o necrológio diário do colunismo especializado em sepultar o interesse social na cova da república rentista.
Exacerbam-se  os decibéis do jogral que não desafina nunca.
A purga redentora dos livres mercados é a única solução para uma economia envenenada pela criação de 20 milhões de empregos em 12 anos.
A  prisão ‘exemplar’ dos ‘mensaleiros’ é o laxativo  indispensável à assepsia de uma política cúmplice do voluntarismo econômico, como diz o grão tucano FHC.
Não se releve aqui o ilícito cometido em um sistema eleitoral apodrecido pela hegemonia dos interesses que agora se  avocam os savonarolas da moralidade pública.
O dinheiro privado que dá à campanha o seu fulgor publicitário é o mesmo que desidrata projetos, amesquinha governos, aleija lideranças  e desacredita o voto e a política.
Importa, todavia, enxergar além da neblina  que subordina o principal ao secundário.
Em 54, em 64 e em 2014 o nome do jogo não é ética, como se constata da temperança  das manchetes — e togas inflamadas — quando se trata da corrupção conservadora.
Exemplos terminais de credibilidade em ruína, como o da ‘Folha de SP’,  já se prestam  ao estudo acadêmico de cases da manipulação informativa, em que o veículo deixa de ser referência para ser referido.
O que está em jogo é o comando do processo de desenvolvimento brasileiro.
O udenismo  de 54 e 64 ao contrário de atenuar  sua ganância e o entreguismo foi coagido  pela determinação das finanças globalizadas a radicalizar seu descompromisso com a sorte do desenvolvimento e o destino da sociedade brasileira.
Não se diga que a mesma asfixia não esgoelou em parte a agenda progressista.
Mas o fato é que  nem mesmo um programa moderado de reformas e oxigenação social  como o da coalizão centrista liderada pelo  PT é tolerável.
Avulta desse estreitamento histórico a sofreguidão estalada nas manchetes, que promovem o adestramento  circense das togas incumbidas de ocupar o picadeiro com degolas e sentenças profiláticas.
Contra o PT  e contra tudo o que ele representa.
Como se sabe, ele representa a corrupção sistêmica, sendo a do conservadorismo sempre um ponto fora da curva.
Ao comando de holofotes, a toga desempenhou seu número nesta quarta-feira, dando cambalhotas no enredo da indignação seletiva, com o qual se pretende vitaminar candidaturas rastejantes a 2014.
Cumpre assinalar não apenas as linhas de passagem que  unem o opróbio entre  1954,1964 e 2014.
Sobretudo, é imperativo iluminar a seta do tempo que não se quebrou  na atualidade de mudanças estruturais reclamadas pelo país e por sua gente.
Em 13 de março de 1964, Jango pronunciaria  um discurso memorável, que dava a agenda das reformas estruturais o lugar que ela ainda cobra na história brasileira.
É para a exumação dessa construção interrompida, que reafirma sua pertinência nos dias que correm, que Carta Maior chama a atenção nesse momento, especialmente de seus leitores jovens.
E o faz dando ao discurso da Central do Brasil o espaço de atualidade que a narrativa conservadora sempre lhe sonegou.
Sobre aquele pronunciamento, o leitor de Carta Maior, Fausto Neves Ribeiro da Silva, comentou:

 “ Ouvi este discurso com o radinho de pilha debaixo do travesseiro. Eu tinha 14 anos. Estava numa juventude atenta, que não acreditava em esperança mas em ações. Quem se manteve atento guarda na memória, ou aprendeu, o que e quanto perdemos” 

.
Leia, a seguir, a íntegra do comício na Central do Brasil:
Devo agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício, ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.


Dirijo-me a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a grandeza deste país.


Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.


Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios, mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente.


Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.


Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas.
Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.


Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.


A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.


A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.


Ainda ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais.
Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.


Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.


Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reinvindicações.


Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua.
Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.


O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.


É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.


O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.


Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.


Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços.


Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.


Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.


Não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação.


Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.


Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.


Está nisso o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da nossa emancipação.

É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.


São certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de seu povo brasileiro.


De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas do progresso.

E podeis estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo – operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e social deste país.


O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.


A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.


Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos frutos deste desenvolvimento.


Não, trabalhadores; sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo. Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.


O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.



Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.

Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.


Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.


Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro.


O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.


Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve bemeficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.


Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.


Reforma agrária com pagamento prévio do latifundio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.


Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.


Graças à colaboração patriótica e técnica das nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar.
Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição.
Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.


No Japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?


Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.


No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.


Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.


Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.


Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.


A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo.
Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.


A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.


Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade.
Ao mesmo tempo em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.


Assim, a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e melhor remuneração ao trabalhador urbano.


Interessa, por isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.

Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?


O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.


Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo daprodução, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra.
Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social. No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do valor da produção.
O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele trabahou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso país.


A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um miseravel padrão de vida.


E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente aproveitáveis.
E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária, para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.


Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não form efetuadas as reformas de estrutura de base exigidsa pelo povo e reclamadas pela Nação.


Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo.


Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal.
Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou.
Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.


Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo. Espero que os senhres congressistas, em seu patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é pelo caminho reformista.


Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reinvindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas destes país.
Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares.


A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.


Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.


Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.


O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particurlamente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.


Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo.
O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.


Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil.
Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.


Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando outras providências de fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes populares.


Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.


E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder, perante a lei, pelo seu crime.


Aos servidores públicos da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso afirmar que suas reinvindicações justas estão sendo objeto de estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para com o país.


Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever.
À medida que esta luta apertar, sei que o povo também apertará sua vontade contra aqueles quenão reconhecem os direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.


Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista.


Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios.
Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.


Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira.
Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.
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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Ricardo Antunes: Um capitalismo ainda mais selvagem


publicado em 10 de novembro de 2013 às 1:01 - VIOMUNDO




Insaciável

O país deve liberar terceirização para qualquer atividade?

Espectros, falácias e falésias
por Ricardo Antunes, na Folha, sugerido pelo Caio Toledo

NÃO

Um espectro ronda o Brasil: o da terceirização total, não só das atividades-meio, como já existe, mas também das atividades-fim, como propõe o projeto de lei nº 4.330, do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO).

Sua justificativa é singela: “A empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço”. Mas a propositura é eivada de falácias, como vamos indicar neste espaço.

Primeira falácia: a terceirização cria empregos. Como hoje temos aproximadamente 12 milhões de terceirizados no Brasil, ela cumpriria papel de relevo na ampliação do mercado de trabalho.

Mas esse argumento omite que os terceirizados têm jornada de trabalho em média bem maior do que o conjunto dos assalariados contratados sem tempo determinado.

Assim, o que ocorre é que onde três trabalham com direitos e por tempo não determinado, aproximadamente dois terceirizados acabam por realizar o mesmo trabalho, padecendo de maior intensificação e jornadas mais longevas. Desse modo, em vez de efetivamente empregar, a terceirização desemprega.

Segunda falácia: os terceirizados percebem salários, assim devem agradecer pelo emprego que obtêm.
Mas esse argumento “esquece” que os salários dos terceirizados são bem menores do que os dos demais trabalhadores, especialmente os que estão na base da indústria e dos serviços.

O que as pesquisam mostram, quando realizadas com rigor científico, é que os terceirizados trabalham mais e recebem menos.

Terceira falácia: os terceirizados têm direitos. Esse argumento omite que é exatamente neste âmbito das relações de trabalho que a burla e a fraude se expandem como praga. E quanto mais na base da pirâmide estão os assalariados terceirizados, maiores são as subtrações.

Bastaria dizer que, na Justiça do Trabalho, há incontáveis casos de terceirizados que não conseguem nem sequer localizar a empresa contratante, que não poucas vezes desaparece sem deixar rastro.
Muitos terceirizados estão há anos sem usufruir as férias, pois a contingência e a incerteza avassalam o seu cotidiano.
E, vale lembrar, só uma minoria consegue ir à Justiça do Trabalho, pois o terceirizado não tem nem tempo nem recurso e quase sempre carece do apoio de sindicatos para fazê-lo. E sabemos que, nos serviços, setor no qual se expande celeremente a terceirização, viceja também a ampla informalidade e a alta rotatividade.

Quarta falácia: terceirizar é bom, pois “especializa” e “qualifica” a empresa. Mas seria bom explicar por que essas atividades terceirizadas são as que frequentam com mais constância as listas de acidentes de trabalho. E mais: no serviço público, elas não raro aumentam os custos, sendo fonte inimaginável de corrupção.

Bastaria lembrar as empresas terceirizadas que fazem a coleta do lixo urbano. E a brutalidade sem limites que é ver um trabalhador correr como louco atrás dos caminhões para manter as “metas” e a “produtividade” na coleta privada dos lixos nas cidades.

O essencial que o PL 4.330 tenta esconder, em meio a tantas falácias, é que a terceirização, especialmente para os “de baixo” que não dispõem do capital cultural que sobra aos estratos superiores, têm dois objetivos basais.

Primeiro, reduzir salários, diminuindo direitos.

Segundo, e não menos importante: fragmentar e desorganizar ainda mais a classe trabalhadora, agora convertida em classe “colaboradora”.

Se aprovado esse PL 4.330, ele terá um efeito erosivo ainda maior na nossa já gigantesca falésia social.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira. Por Renato Santos de Souza

Republico neste blog o instigante texto sobre a classe média. Vale a leitura e a reflexão.
LCOF
-Do sítio Fundação Maurício Grabois (31/10/2013)

Desvendando a espuma: 
o enigma da classe média brasileira. 
Por Renato Santos de Souza (UFSM/RS)


O pensamento único da categoria médica provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito.


A primeira vez que ouvi a Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente. Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base. A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão. Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”. Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? E mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social. Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação para isto.
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui. Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia.
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora.
Assim, boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito.
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras? Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar. O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais, etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada. Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática. Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios. Acho que isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média.
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte; se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época. Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas. A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa. Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida. Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas.
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais.
Aliás, tenho certeza de que todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas. Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social. Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social.
a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos.
c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo. Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia.
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.
Publicado em Luis Nassif Online.